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Linguagem, significado e sentido

3.1 Algumas categorias da teoria sócio-histórica

3.1.3 Linguagem, significado e sentido

A linguagem está presente em todos os campos da atividade consciente do homem. Os processos de apreensão do mundo exterior são reorganizados pelo homem por meio da linguagem, implicando a constituição de outros, voluntários, como os de designação, discriminação, abstração, classificação e generalização. Por modificar os processos de atenção e memória, a linguagem permite ao homem desligar-se da ação imediata, recuperando-a via imaginação. Por meio de seus sistemas de códigos, a linguagem nomeia e qualifica os objetos, as relações e as ações do mundo exterior, e, portanto “é realmente o meio mais importante de desenvolvimento da consciência” (LURIA, 1979, p. 81).

A relação entre indivíduo e meio físico e social é mediada, pois o indivíduo, sujeito do conhecimento, não tem acesso imediato aos objetos, mas a sistemas simbólicos, de origem histórica e social, que representam a realidade. Como sistema simbólico, a linguagem cumpre um papel de destaque nessa relação, pois é a mediadora por excelência, permitindo que o homem interaja como o objeto. Elaborada no curso da história social, a linguagem é um

importante sistema simbólico para todos os grupos humanos. Não é por outra razão que a comunicação verbal se dá entre indivíduos.

A linguagem utiliza signos como recursos para o estabelecimento da comunicação humana. Os signos remetem a outra coisa, “são estímulos instrumentais convencionais, de natureza social, que, na convivência social, são introduzidos no psicológico pelo homem e, portanto, não são nem orgânicos, nem individuais” (MOLON, 2003, p. 115). Embora atue sobre o indivíduo, o signo é uma criação humana, específica dessa espécie, e responsável pelo salto qualitativo na maneira de ser e agir de seus membros. O uso social de signos demarca nitidamente, na filogenia, o ponto de ruptura entre o comportamento animal, de caráter natural ou biológico, e o comportamento cultural, tipicamente humano.

A linguagem estabeleceu-se nas relações sociais como fruto da necessidade de comunicação, de planejamento e de autorregulação da conduta: “as condições que originaram o fenômeno devem ser procuradas nas relações sociais de trabalho, cujos primórdios de surgimento remontam ao período de transição da história natural à história humana” (LURIA, 1979, p. 25). Nessa esteira, quando um professor qualifica o comportamento dos alunos com o adjetivo “indisciplinado”, essa qualificação provavelmente tem origem em experiências históricas e sociais, vivenciadas por outros professores e alunos, em diferentes momentos da história das relações que ocorrem no ambiente escolar. Esse processo de constituição acontece porque “o homem assimila a experiência do gênero humano, construído no decorrer de milhares de anos de história” (LURIA, 1979, p. 124). Segundo Luria (1979, p. 124), as experiências das gerações anteriores só podem ser adquiridas e utilizadas com o uso da principal função da linguagem, que é a de generalização. Entretanto, o autor afirma que, além de permitir a possibilidade de generalizar, a linguagem “é, ao mesmo tempo, a base do pensamento”.

Quando significa o que é um comportamento indisciplinado, o professor passa a tirar conclusões de suas próprias experiências com relação a esse conceito. A capacidade de refletir, formular conclusões e até mesmo de regular o comportamento a partir do processo de generalização envolve duas importantes categorias da Psicologia Sócio-Histórica: o significado e o sentido. Ao apropriar-se de sua realidade e vivenciá-la por meio de significados constituídos historicamente, o sujeito constrói, simultaneamente, sentidos particulares. Entender os processos de constituição de significados e sentidos é o caminho para se aproximar do sujeito e ficar, assim, em posição de compreendê-lo.

A palavra tem um significado dicionarizado, resultante do sistema de relações que se forma objetivamente ao longo do processo histórico da humanidade. A palavra “indisciplina”

nomeia determinadas ações que foram se constituindo ao longo do tempo no ambiente educacional. Dessa maneira, a palavra nomeia e conceitua um determinado objeto, colocando- o em um conjunto de enlaces e interações objetivas:

O significado só é um fenômeno de pensamento na medida em que o pensamento está relacionado à palavra e nela materializado, e vice-versa: é um fenômeno de discurso apenas na medida em que o discurso está vinculado ao pensamento e focalizado por sua luz. É um fenômeno do pensamento discursivo ou da palavra consciente, é a unidade da palavra com o pensamento. (VYGOTSKI, 2001, p. 398).

O significado da palavra é, portanto, definido pela possibilidade de o indivíduo analisar o objeto, assinalar seus atributos essenciais e relacioná-los a determinadas categorias do patrimônio cultural constituído historicamente. Como exemplo, pode-se afirmar que os docentes da universidade concordam que existem alunos indisciplinados, que perturbam e dificultam a convivência daqueles que nela transitam e convivem. Apesar de dicionarizados, os significados das palavras não são estanques ou eternos: eles podem sofrer modificações ao longo da história de uma determinada sociedade.

Desse ponto de vista, o significado da palavra, uma vez estabelecido, não pode deixar de se desenvolver e sofrer modificações. A associação que vincula a palavra ao significado pode ser reforçada ou debilitada, pode ser enriquecida por uma série de vínculos com outros objetos da mesma espécie, pode, pela aparência ou contiguidade, estender-se a um círculo mais amplo de objetos ou, ao contrário, pode restringir esse círculo. (VYGOTSKI, 2001, p. 399).

Um bom exemplo de como o significado das palavras muda é o da palavra salário, utilizada no passado para determinar a quantidade de sal que se dava como pagamento aos trabalhadores. Com o tempo, essa palavra passou a significar o soldo dado às tropas para comprar sal. Atualmente, um dos únicos significados encontrados para essa palavra é o de ordenado (HOUAISS, 2005). À medida que o indivíduo vai mudando, também se alteram os significados das palavras que emprega e, nesse mesmo movimento, seus próprios processos psicológicos também acabam por se transformar: a consciência de um novo significado mobiliza as funções intelectuais de classificação, comparação e generalização, modificando-as substancialmente.

Ao passo que o sentido é muito mais amplo do que o significado, porque envolve a dimensão afetiva, que o faz, portanto, ser impulsionado pelas emoções. Quando se trata de sentidos, deve-se ter claro que, nessa categoria, o sujeito subverte, emocionalmente, o que

está instituído do ponto de vista sócio-histórico. Nesse processo subjetivo, implicam-se fatores cognitivos, afetivos e biológicos e toda a vivência do indivíduo, que é sempre social e histórica (AGUIAR; OZELLA, 2006). Assim:

O sentido é sempre uma formação dinâmica, fluida, complexa, que tem várias zonas de estabilidade variada. O significado é apenas uma dessas zonas de sentido que a palavra adquire no contexto de algum discurso e, ademais, uma zona mais estável, uniforme e exata. (VYGOTSKI, 2001, p. 465).

A palavra indisciplina tem, inegavelmente, um significado dicionarizado, mas seu sentido é particular para cada professor e aluno, nos espaços institucionais em que atuam. A indisciplina vivenciada pelo professor do ensino fundamental, cujo público é formado por crianças, não é a mesma com a qual o professor de adultos, estudantes da educação superior, depara-se. Desse modo, apesar de nomear condutas consideradas inadequadas ao ambiente escolar, a palavra indisciplina apresenta sentidos diferenciados por parte dos professores. O mesmo pode-se dizer dos alunos: no processo de constituição dos sentidos, entrecruzam-se, o tempo todo, afetos, desejos, histórias, memórias e emoções.

Em cada cena de indisciplina, o professor encontra-se em um momento particular de sua trajetória profissional, que lhe permite determinadas possibilidades de interpretação, o que permite afirmar que “o sentido real de uma palavra é inconstante. Em uma operação, ela aparece com um sentido, em outra, adquire outro.” (VYGOTSKI, 2001, p. 465). O sentido da palavra depende da situação concreta que o indivíduo tem perante si, a qual pode lhe ser total e completamente distinta de todas as demais, embora seja possível que, do ponto de vista externo, o da palavra, essa drástica mudança não seja perceptível aos demais. Por exemplo, um professor pode considerar indisciplinado o aluno que chega atrasado e sequer esboça uma justificativa. Outro professor já não vê indisciplina nessa mesma conduta: entende que, a despeito do horário estipulado pela instituição, o aluno que trabalha o dia todo se atrasa em virtudes das dificuldades vividas por todo trabalhador nas grandes metrópoles. Nesse exemplo, a mesma conduta adquire diferentes sentidos, de modo que a palavra indisciplina nomeia várias e diferentes condutas, as quais são sempre, vale ressaltar, constituídas histórica e socialmente. Entretanto, a atribuição, por parte do indivíduo, do sentido de indisciplina será sempre particular e emocionalmente constituída.

Para Rey (2004, p. 125), “a categoria sentido permite visualizar a especificidade da psique humana e incorporar um atributo ao social: o caráter subjetivo dos processos sociais”. Os fenômenos produzidos em quaisquer sociedades são produções subjetivas, que revelam as

condições de vida dos sujeitos em cada momento histórico e em cada sociedade concreta. Contudo, esses sujeitos dispõem de processos de subjetivação formados na cultura que fazem com que uns se diferenciem dos outros, sem deixar, no entanto, de orientar suas ações. No caso da indisciplina, as ações dos professores são orientadas por configurações de sentido, as quais são inseparáveis de seu contexto social.

Finalmente, cabe lembrar que os sentidos também não se separam dos significados: um contém o outro, a despeito de, segundo Vygotski (2001), o primeiro aproximar-se mais do sujeito, quando subverte o significado por ter a emoção como elemento constitutivo. Pode-se afirmar que toda ação do indivíduo é motivada sempre por uma tendência afetivo-volitiva. Quando a emoção diz não, por mais que o pensamento diga o contrário, o indivíduo tende a seguir sua necessidade afetiva, que é “o estado emocional do sujeito, que se gera, de forma constante, no curso de suas atividades; portanto, a emocionalidade do sujeito responde a processos afetivos, que acompanham suas ações nos diversos contextos dos quais participa” (REY, 2005, p. 245-246).

4 MÉTODO

Neste capítulo, são descritos os procedimentos metodológicos utilizados na identificação dos sentidos e significados atribuídos à indisciplina por docentes e discentes da educação superior privada. Buscou-se entender os problemas de indisciplina que o professor universitário enfrenta e como tais problemas manifestam-se e são explicados pelos docentes e discentes. A orientação metodológica adotada inclui-se na abordagem qualitativa e empregou a técnica denominada grupo focal, justamente porque pretendia conhecer e aprofundar as questões relativas à indisciplina, conhecendo melhor como ela se configura no espaço da educação superior particular.