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Núcleo de significação “O aluno é carente de tudo”

5.1 Núcleos de significação do grupo focal dos professores

5.1.4 Núcleo de significação “O aluno é carente de tudo”

“Quantas vezes eles vêm pedir conselho de vida pra gente, porque eles não têm uma pessoa que possa conversar com eles, né?” (Professora Lisa)

O título deste núcleo foi extraído de uma das colocações dos professores, os quais consideraram os alunos das “Unis da vida” como indivíduos carentes em muitos aspectos, tal como fica visível no depoimento da professora Augusta: “é um aluno carente de tudo. Não é um aluno carente de dinheiro, não. Falta dinheiro, mas, especialmente, falta educação, educação de base e, aí, é que vem a falta de postura, o não saber estar junto. Não que eles sejam mal-educados, tem alguns mal-educados”. Essa carência faz com que o professor acredite que seu trabalho extrapola os limites da docência, como relata a professora Augusta:

Essa coisa do aluno chegar e conversar: “olha, o meu marido me bateu em casa e eu não posso voltar pra casa e, por isso, não vim pra prova ontem”. Isso é um fato comum pra gente. Isso, pra mim, hoje, eu estou aqui há nove anos, hoje é como se lecionar fosse um serviço social.

De acordo com Cunha (2006), os saberes relacionados à realidade do aluno também devem fazer parte do cabedal de saberes do professor. Ao verificar que os estudantes vivem e convivem numa realidade muitas vezes difícil, a universidade precisa ajudar o professor a compreender essa situação, para que possa auxiliar seus alunos a lidar com sua vida árida e, sobretudo, para que possa ajudá-los a apropriar-se de novos modos de agir, pensar e sentir, a adquirir uma boa formação, capacitando-os a transformar a realidade na qual estão inseridos. Mas o problema é mais profundo e difícil de ser superado se a instituição também não fizer sua parte:

Professora Lisa: o aluno vem e você sabe que, dependendo da instituição que você está trabalhando, ele vem numa defasagem que o cara chega pra gente sem saber ler e escrever e [...] com comportamentos que não são do ensino superior.

Professora Raquel: o nível ou o baixíssimo nível de conhecimento que os alunos chegam, de comportamento, de conduta, nem se fala! No sentido de não conseguirem transmitir uma informação. Eles leem um texto e você pede: contem esse texto. As pessoas não conseguem. Isso piora muito quando você pede que eles escrevam. Aí, a dificuldade é ainda maior. Então, o que eu vejo é que os estudantes vêm com uma deficiência extremamente grande do nível médio, né? Isso faz com que a gente tenha dificuldades aqui, na graduação.

Professor Tarso: não dá pra ser diferente: os caras não vão acompanhar, porque falta base!

A falta de base dos ingressantes na educação superior é uma queixa constante do professor. Diante desses alunos que não possuem as condições mínimas básicas, o docente encontra um enorme desafio: o de conseguir trabalhar o conteúdo necessário para a formação profissional sem que os alunos preencham os pré-requisitos necessários. O que fazer? As professoras Mafalda, Lisa e Rosa dão exemplos de situações em que a falta de base prejudica inteiramente o processo de ensino na educação superior:

Eu vou, na disciplina História da Educação, porque o currículo diz que tem que ir do primitivo ao Lula. Só que, numa outra universidade, o conceito de História ele já tem, o aluno de lá já vem com isso. Então, aqui, antes de eu falar da Constituição de 1824, eu tenho que explicar pra ele o que é a diferença de um Brasil Colônia, de um Brasil Império. Nisso, o que eu já andei lá, eu aqui não andei e não porque eu não quero: EU NÃO CONSIGO! (Fala com ênfase e com tom elevado).

Aqui é diferente. Os alunos daqui e de algumas Unis falam: “professora, você fala difícil!” Eu falo: “não, vocês têm que entender, vocês têm que ampliar o vocabulário de vocês e vocês não vão ampliar se vocês não se esforçarem”. Então, o tempo que eu gasto aqui pra fazer essa explicação de minúcias, nessa outra instituição, eu consegui deslanchar e aprofundar bem mais.

[...] “Ah, mas a Sra. tinha que ter ensinado isso”. Eu disse: “Ensinar a ler é no primário. Eu não tenho que ensinar a ler na faculdade. Ler você sabe. Agora, se você não sabe interpretar, isso é outra coisa, né”? Em uma sala inteira, apenas dois alunos conseguiram resolver o problema.

Pimenta e Anastasiou (2002/2005) afirmam que é importante para o professor a identificação desses alunos, conhecendo, inclusive, seu nível de conhecimento. Isso pode ajudar o docente a elaborar estratégias de capacitação dos alunos quando o problema está na falta de base. Quando se tem uma turma em que uma parte conta com ela e a outra não, fica difícil estabelecer um processo de ensino-aprendizagem que contemple as necessidades de todos. Nesse contexto, um dos grupos acaba sendo prejudicado. Como a professora Lisa exemplifica: “a dificuldade e o desnível que nós temos entre os alunos, porque a gente, muitas vezes, tem bons alunos e a gente não consegue desenvolver tão bem esses, em virtude da dificuldade dos demais em termos de conhecimento, de nível mesmo.” Sem essa identificação e sem um trabalho que capacite o aluno a construir a base que lhe falta, sua formação fica prejudicada e os próprios docentes reconhecem isso ao indicar as condições nas quais se graduam os alunos na universidade:

Professora Mafalda: eu as coloco no mercado e eu falo o que pra elas? Que eu não vou fazer delas uma arma, porque as vítimas podem ser meus netos. Porque elas vão alfabetizar os meus netos. Então, isso vem virando uma bola de neve.

Professora Rosa: aí, pra mim, isso é quase um crime, porque você está colocando no mercado de trabalho uma pessoa com diploma e que não tem a menor capacidade pra estar lá, exercendo a profissão. A maioria dos alunos é jogada no mercado de trabalho e vai trabalhar num departamento pessoal qualquer, sem a menor capacidade pra estar ali! Ele é um analista de sistema, mas que mal sabe programar alguma coisa. Só vai pegar certificado pra continuar na empresa em que ele já está. Eu converso com os professores de tecnologia: o pessoal não tem a menor capacidade de programar nada, de analisar nada! Simplesmente fez o curso, pagou e levou o diploma.

Quando afirma que considera quase um crime titular, sem formar devidamente os alunos, a professora Rosa sabe que a maioria daqueles que estudam nas “Unis da vida” apresentam algumas características peculiares bastante positivas. Uma delas é que muitos desses estudantes são os primeiros de sua família a fazer um curso superior. Para eles, trata-se de um sonho realizado à custa de muitos sacrifícios, de muita economia, de muita privação da

companhia de amigos e familiares. São vencedores, não há nenhuma dúvida, mas não serão bons profissionais, porque eles não se formam em tempo tão exíguo; já para outros, ter passado pela universidade foi mero meio de consumo: “paguei e quero levar o diploma. Depois decido o que fazer com ele”.

Os professores preocupam-se com a qualidade do profissional que sai da universidade, mas parecem não saber como sanar a falta de base dos alunos ingressantes e, assim, a situação do aluno egresso é vista com plena desesperança e preocupação. Apesar de todas as dificuldades que o corpo discente traz e passa no processo de formação, os professores consideram que os alunos sofrem algumas mudanças:

Professora Rosa: eu percebo que eles, ao longo dos anos, vão amadurecendo. No primeiro semestre, você tem alunos que parecem uns barraqueiros, eles gritam, eles chegam comendo na sala de aula, falando no celular, batendo portas. A partir do segundo semestre, eles arranjam um emprego melhor, eles começam a se vestir melhor, eles se vestem mais social, eles já falam diferente. Você percebe que eles vão mudando ao longo do semestre.

Professora Mafalda: eu acompanho o aluno do primeiro ao quarto semestre. [...]. Então, até, assim, na forma de esse aluno falar, na postura desse aluno, eu percebo uma diferença, um crescimento muito grande. Aí, você começa a olhar e até eles dizem: que eles estão diferentes, a própria forma de falar, de se vestir, de se portar, de se comportar... Eu percebo, sim.

De acordo com Leontiev (2004), as possibilidades humanas acontecem por meio da comunicação, nas relações estabelecidas entre os homens, sempre mediadas pela cultura material e cultural da humanidade. Segundo os professores, os próprios alunos reconhecem as modificações que acontecem ao longo do percurso da formação profissional. Essa mudança vai além da formação puramente técnica: um salto qualitativo também é visto na postura e no convívio. Esse processo de modificação do aluno não é fácil para os professores: avaliam que certas posturas dos discentes são provocadas por certas atitudes dos próprios docentes e da instituição, o que será discutido a seguir.

5.1.5 Núcleo de significação “Medidas institucionais necessárias para lidar com os