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3. A Lei 8.884/94 e seus ditames constitucionais

3.2 Livre concorrência

Pela ótica do saudoso Prof. Miguel Reale, a livre concorrência tem caráter instrumental; trata-se de princípio econômico de acordo com o qual a fixação dos preços das mercadorias e serviços não deve resultar de atos de autoridade, mas do livre jogo das forças em disputa da clientela na economia de mercado75.

André Ramos Tavares define a livre concorrência como “a abertura jurídica concedida aos particulares para competirem entre si, em segmento lícito, objetivando o êxito econômico pelas leis de mercado e a contribuição para o desenvolvimento nacional e a justiça social”76. No entanto, o professor ressalta que a intervenção estatal deve manter as “regras do jogo”, para garantir um equilíbrio mínimo entre os “jogadores”, não deve prevalecer a liberdade pura.

Tércio Sampaio Ferraz Junior traz à baila outra faceta da livre concorrência: a de que esse princípio visa não só à existência de vários agentes econômicos concorrendo entre si, mas a existência de oportunidades iguais a todos eles, garantindo, por fim, uma sociedade mais equilibrada, in verbis:

“A livre concorrência de que fala a atual Constituição como um dos princípios da ordem econômica (art. 170, IV) não é a do mercado concorrencial oitocentista de estrutura atomística e fluida, isto é, exigência estrita de pluralidade de agentes e influência isolada e dominadora de um ou uns sobre os outros. Trata-se, modernamente, de um processo comportamental competitivo que admite gradações tanto de pluralidade quanto de fluidez. É este elemento comportamental – a competitividade – que define a livre concorrência. A competitividade exige, por sua vez, descentralização de coordenação como base da formação de preços, o que supõe livre iniciativa e apropriação privada dos bens de produção. Neste sentido, a livre

75 REALE, Miguel apud GRAU, Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica). p.166. 76 Direito Constitucional Econômico. p. 259.

concorrência é a forma de tutela do consumidor, na medida em que a competitividade induz a uma distribuição de recursos a mais baixo preço. De um ponto de vista político, a livre concorrência é garantia de oportunidades iguais a todos os agentes, ou seja, é uma forma de desconcentração de poder. Por fim, por um ângulo social, a competitividade deve gerar extratos intermediários entre grandes e pequenos agentes econômicos, como garantia de uma sociedade mais equilibrada.”77

Segundo Ferraz o objetivo da livre concorrência é “é cuidar para que o desenvolvimento econômico ou técnico do sistema de mercado livre não seja comprometido por comportamento de agentes que possam levar a distorções, como o impedimento do afluxo de recursos a certos setores ou o bloqueio da possibilidade de expansão de concorrentes, ou a mera afirmação da prepotência econômica que, sem maiores justificações, seja manifestação de um poderio arbitrário, individualista e egoísta”78.

Para Varella Bruna, a livre concorrência é a liberdade de exercer a luta econômica sem a interferência do Estado ou de outros obstáculos impostos pelos demais agentes econômicos privados79. Conclui ainda o autor que a livre iniciativa e a livre concorrência são princípios intimamente ligados, representam liberdades que não são absolutas, regradas pela justiça social, da existência digna e da valorização do trabalho humano. Bruna entende que a Constituição privilegia o valor social da livre iniciativa, ou seja, quanto ela pode expressar de socialmente valioso. Da mesma forma, a livre concorrência não é uma liberdade anárquica, mas limitada em razão de seu valor social80.

77 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio apud GRAU, Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988

(interpretação e crítica). p. 194.

78 Direito Constitucional: liberdade de fumar, privacidade, Estado, direitos humanos e outros temas. p. 365/366. 79 O poder econômico e a conceituação do abuso em seu exercício. p.135.

O Prof. Fábio Ulhoa Coelho também entende que os princípios da livre concorrência e da livre iniciativa são conexos: todos têm direito de se estabelecer no exercício da atividade econômica, desde que o façam competitivamente. Mas afirma que a diferenciação entre livre concorrência e livre iniciativa não importa para a aplicação da Lei 8.884/94, pois, se alguma prática anticompetitiva atingir uma ou outra, as repercussões jurídicas serão as mesmas:

“Há quem distinga entre a livre concorrência e a livre iniciativa, definindo a primeira como o princípio norteador dos limites desta última. Assim, afirma-se que todos têm direito de se estabelecer no exercício da atividade econômica, desde que o façam competitivamente. Para os fins operacionais da aplicação da legislação antitruste, não se tem maior importância a distinção entre livre concorrência ou liberdade de iniciativa. Se a limitação, falseamento ou prejuízo atingiu a liberdade de concorrer ou a liberdade de empreender, as repercussões jurídicas serão rigorosamente idênticas.”81

O Prof. João Bosco Leopoldino da Fonseca, por sua vez, afirma que o princípio da livre concorrência previsto pelo constituinte de 1988 é uma afirmação da adoção do regime de economia de mercado, o qual não existe sem esse princípio82.

Embora os princípios da livre concorrência e da livre iniciativa estejam intimamente interligados, não significa que um seja decorrência direta do outro. Segundo ensinamento de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, o princípio da livre concorrência traduz a possibilidade de auto-regulação do mercado, mas da auto-regulação nem sempre decorre a livre iniciativa. Explica-se: o mercado auto-regulado pode vir a limitar a livre iniciativa, cabendo ao Estado intervir para implementá-la em sua totalidade em um contexto de livre mercado:

81 Direito antitruste brasileiro – Comentários à Lei n. 8.884/94. p. 56. 82 Direito Econômico. p.128/129.

“Mas isso não que dizer que livre mercado propicie imediatamente livre iniciativa. Há uma diferença entre as duas coisas – é dizer livre mercado, em certo sentido, deve ser neutro perante a livre iniciativa. Livre mercado, regido pelo princípio da livre concorrência, significa apenas, em um primeiro momento, a possibilidade de auto-regulação do mercado, que este se regula. Regular-se significa, entre outras coisas, que é no mercado que se formam os preços conforme as suas próprias regras e é no mercado que se dá a boa alocação de recursos. Nesse sentido é que o mercado se auto-regula. Mas dessa auto-regulação nem sempre decorre a livre iniciativa. O mercado auto-regulado pode, no limite, vir a cercear a livre iniciativa, e por isso há a proibição do abuso do poder econômico. E a livre iniciativa é mais forte no mandamento constitucional porque, além de ser fundamento da ordem econômica, é fundamento da República. Mas, se do livre mercado não decorre necessariamente a livre iniciativa, cabe ao estado proporcionar medidas capazes de implementá-la no contexto do livre mercado”.83

Conclui-se, portanto, que os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência representam uma restrição recíproca, isto é, a livre iniciativa encontrará seu limite na livre concorrência e a livre concorrência não existirá sem a livre iniciativa e, ainda, que o regime econômico definido pela nossa Constituição não poderia existir sem ambos.