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4. A coletividade como titular dos bens jurídicos protegidos pela Lei 8.884/9

4.2 Os interesses protegidos pela Lei de Defesa da Concorrência: concorrentes

Conforme já mencionado, as normas de defesa da concorrência visam à implementação de políticas públicas econômicas, as quais variam de acordo com os objetivos do Estado. Essas políticas podem defender o interesse do mercado, o interesse do consumidor, o interesse nacional, o bem comum, a eficiência alocativa ou o interesse público, dentre outros. Nesse sentido, dependendo do objetivo da política pública econômica adotada, o órgão julgador de defesa da concorrência tomará a decisão mais adequada a cada caso110.

Embora um mesmo fato jurídico possa desencadear a incidência de normas de defesa do consumidor e de defesa da concorrência, não há por que confundir os dois interesses. O interesse protegido imediatamente pelas primeiras normas é o consumidor e o segundo é a livre iniciativa e a livre concorrência, mesmo que o interesse do consumidor seja protegido mediatamente na maioria dos casos por essas normas111.

Um exemplo muito ilustrativo dessa diferença é a prática de preços predatórios. Se um supermercado está vendendo produtos abaixo do preço de custo, configurando a prática de preços predatórios, as normas concorrenciais condenarão tal prática em defesa da livre concorrência, pois outros agentes econômicos podem ser prejudicados, com danos, ao fim, para todo o mercado. No entanto, do ponto de vista do consumidor, essa prática não é ruim, uma vez que permite aos consumidores o acesso aos produtos por preço menor.

110 Os Fundamentos do Antitruste. p. 266/267. 111 Os Fundamentos do Antitruste. p. 293.

O posicionamento de que a Lei 8.884/94 visa defender e preservar a estrutura competitiva e não de interesses privados é esposado pela Maria Cecília Andrade:

“Em outras palavras, a Lei 8.884/94 não se destina à proteção de interesses privados, mas sim à defesa e preservação da estrutura competitiva do mercado, o que irá, conseqüentemente, beneficiar o consumidor.

Observa-se, por conseguinte, uma evolução no ordenamento jurídico brasileiro em relação à política de defesa da concorrência. Da sua utilização deturpada como instrumento controlador de preços no passado, ou ainda como defesa direta dos direitos do consumidor, passou-se a buscar a defesa dos mercados e da atividade econômica em um novo contexto, no qual os benefícios para o consumidor constituem não apenas os efeitos diretos da sua atuação, mas sim uma vantagem que atinge uma dimensão muito mais extensa, ao ser proporcionada maior transparência dos mercados, a possibilidade de ingresso de novos operadores econômicos, de produtos ou serviços, de inovações tecnológicas, da modernização da indústria e, finalmente um aumento da competitividade dos operadores econômicos nacionais”112.

O Prof. Fábio Ulhoa Coelho condivide a opinião, que a legislação antitruste visa garantir o funcionamento do livre mercado, mas, ao zelar pelas estruturas fundamentais do sistema econômico da liberdade de mercado, acaba refletindo os interesses dos consumidores, in verbis:

“A rigor, a legislação antitruste visa tutelar a própria estruturação do mercado. No sistema capitalista, a liberdade de iniciativa e a de competição se relacionam com aspectos fundamentais da estrutura econômica. O direito, no contexto, deve coibir as infrações contra a ordem econômica com vistas a garantir o funcionamento do livre mercado. Claro que, ao zelar pelas estruturas fundamentais do sistema econômico da liberdade de mercado, o direito da concorrência acaba refletindo não apenas sobre interesses dos empresários vitimados pelas práticas lesivas à constituição econômica, como também, sobre os dos consumidores, trabalhadores e, através da geração de riquezas e aumento dos tributos, os interesses da própria sociedade”113.

Franceschini também concorda com esse posicionamento e ainda afirma que qualquer pendência entre as partes privadas deverá ser dirimida pelo Poder Judiciário e não pelo CADE: não cabe ao Conselho dirimir controvérsias ou interesses particulares ou mercantis:

112 Controle de concentrações de empresas: estudos da experiência comunitária e a aplicação do artigo 54 da lei nº

8.884/94. p.71 e 72.

“A finalidade da legislação de defesa da concorrência, portanto, é unívoca, qual seja, a defesa e a viabilização do princípio maior da ‘livre concorrência’ (art. 170, inciso IV), não podendo, portanto, ser utilizada pelo Estado para alcançar objetivos diversos.

(...)

Portanto, as pendências comerciais surgidas entre as partes privadas hão de ser dirimidas exclusivamente pelo Poder Judiciário, não dispondo o CADE de competência para resolvê-las. (...)

A legislação antitruste não visa proteger os agentes econômicos unitariamente considerados, mas preservar o mercado como instituição de coordenação das decisões econômicas, adequada ao modo de produção capitalista”114.

Sérgio Varella Bruna afirma que a disciplina antitruste não é estabelecida em favor dos interesses individuais dos concorrentes, mas sim da sociedade como um todo. O direito de defesa da concorrência não protege os interesses individuais dos concorrentes, mas a preservação dos mecanismos de mercado. Não protege os capitalistas, mas o capitalismo. Essa característica do direito antitruste é o que o diferencia da concorrência desleal, que protege interesses individuais115.

Nesse sentido, vale ler a discussão travada entre o Prof. Ricardo Sayeg e o Dr. Franceschini durante o Seminário de Defesa da Concorrência realizado pelo IBRAC. Sayeg afirma que a Lei 8.884/94 é instrumento de defesa do consumidor, conforme esmiuçou em dissertação de mestrado na PUC/SP, e Franceschini, por sua vez, defende a livre concorrência:

“DR. RICARDO SAYEG, ADVOGADO

A observação que eu tenho a fazer, inicialmente, é, em que pese a profunda admiração que tenho pelo Dr. Franceschini, já vem da história da nossa amizade, do convívio, essa sintonia de convicções. Tenho para mim que a Lei 8884 é instrumento direto de defesa do consumidor. Primeiro, quando fala do consumidor lá no início e depois quando faz remissão ao Código de Defesa do Consumidor em seu Artigo 29 demonstrando, inclusive, o nítido entrosamento entre eles. Vejo que, quando o consumidor vai se proteger contra um pequeno comerciante que não se enquadra na titularidade de posição dominante, ele tem o Código de Defesa do Consumidor

114 Introdução ao Direito da Concorrência. p. 19, 23/24.

como defesa, mas, quando o consumidor vai se proteger de uma grande empresa que se enquadra na titularidade de posição dominante, ela tem essa legislação em seu favor. Inclusive, esse é o critério que tem sido utilizado pela Promotoria de Defesa do Consumidor em São Paulo, que já proporcionou alguns resultados, como o caso de um remédio cujo nome não me lembro bem agora (Diabinese ou Diabenzine), no qual houve uma condenação à indústria farmacêutica, conforme o que foi divulgado pelos jornais e pelo próprio clipping do IBRAC. Ou seja, a lei, da forma que foi colocada, é instrumento de defesa do consumidor (inclusive defendi tese que foi aprovada nesse sentido pela PUC: como esse tipo de instrumento em favor da tutela jurídica do consumidor, de modo que a matéria é única nesse sentido, além da defesa da concorrência, de que a lei também trata).

Dr. FRANCESCHINI

Em primeiro lugar, só posso dizer que me sinto honrado pelo comentário que me foi dirigido por um colega de tal escopo e lamento discordar, porque não acho que seja pelas inconstitucionalidades que são introduzidas na lei que se pode dizer que essa lei tem o mesmo objetivo de outra lei. Acho que a interpretação deve ser clara: qual é a finalidade de uma lei de concorrência? A finalidade da lei de concorrência é o mesmo conceito de defesa do consumidor; temos bens jurídicos distintos, titulares de bens jurídicos distintos, as matérias são distintas e sabemos perfeitamente que essa tentativa de inserção do direito do consumidor na lei de defesa da concorrência foi uma tentativa de desvio da finalidade social. Não estou dizendo que não deva haver – como há – uma Lei de Defesa do Consumidor, como há uma Lei de Defesa da Concorrência. A própria inserção do conceito de aumento abusivo de preços (que, na minha opinião, é uma excrescência jurídica tal como redigida) é inócua, tal como a remissão genérica à defesa do consumidor. O conceito de aumento abusivo de preços é inócuo porque, como todos sabemos, aquela relação didática do artigo 21 da lei se remete diretamente ao artigo 20 – ali estão os tipos puníveis e apenas aqueles – portanto, o aumento abusivo de preços só pode ser uma infração à ordem econômica na medida em que gere uma dominação de mercado (o que é difícil de imaginar), ou uma eliminação de concorrente (o que é difícil de imaginar) haver um conceito de aumento arbitrário de lucros, que é um conceito inteiramente diverso do aumento abusivo de preço – não tem absolutamente nada a ver. Portanto, com todo respeito à tese do colega, que foi brilhantemente defendida – e vão aqui os meus respeitos profundos – mas acho que a tentativa de utilização das normas para fins diversos não serve ao progresso da ciência jurídica e muito menos do direito positivo brasileiro. Agradeço, de qualquer forma, a sua observação, com muito respeito”116.

Pela análise dos dispositivos constitucionais e da legislação de defesa da concorrência atualmente em vigor, não há dúvida de que o interesse protegido é a livre iniciativa e a livre concorrência, pois é dessa proteção que advirá um bem-estar à coletividade.

116 Aplicação da legislação antitruste: política de estado e política de governo. RevIBRAC, São Paulo, v. 3 n.6, 1996,

p.136 e 137,.Transcrição das palestras apresentadas no II Seminário Internacional de Direito da Concorrência em maio de 1996.