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Lugar, formação socioespacial e mundo atravessados por circuitos espaciais produtivos

A formação socioespacial no período de globalização e as transformações na economia política da saúde

1.3 Lugar, formação socioespacial e mundo atravessados por circuitos espaciais produtivos

As relações entre a economia política e o território são múltiplas, sendo apreendidas parcialmente conforme o recorte e o método que lhe deu sentido e que, por sua vez, foi estabelecido pelo pesquisador segundo seus objetivos, expectativas disciplinares e epistêmicas. Mais importante do que essa constatação sobre o método científico é reconhecer que o aprofundamento de qualquer conhecimento nas ciências sociais resulta em compreender melhor a dinâmica da totalidade, ou, em outros termos, o processo de totalização que caracteriza o presente.

Conhecer a economia política da urbanização é fundamental para qualquer investigação disciplinar interessada nas variadas formas das divisões social e territorial do trabalho. Por essa razão, é importante estabelecer relações entre a economia política da urbanização e a economia política da cidade, pois é nas cidades que essas divisões especializadas (como a saúde) são mais intensivas, produzindo uma hierarquia entre as próprias cidades – basicamente, entre o comando e a produção e comercialização de insumos e produtos.

A análise dos serviços relacionados à saúde e de toda a produção industrial que lhes dá suporte proporciona um conhecimento mais acurado sobre os elementos do espaço (Santos, Milton, 1985) que estabelecem relações interescalares (lugar-mundo, lugar-formação socioespacial, lugar-região e globalização) implicadas hoje na divisão territorial do trabalho.

Assim, a análise detida do complexo econômico-industrial da saúde fornece material empírico reunido e organizado segundo uma dada perspectiva teórica para uma interpretação mais acurada do processo de totalização em que estamos inseridos e que interessa não só para compreendermos a saúde no mundo contemporâneo, como para refletirmos sobre todo o processo econômico, político, social e cultural do período.

É um dado constituinte da urbanização a formação de necessidades humanas que demandam cuidados e intervenções para proporcionar saúde aos indivíduos, seja porque adoecem, seja para evitar que adoeçam. Obviamente, o mundo rural e agrário

também tem suas demandas específicas de saúde que exigem esforços de interpretação diferentes daqueles relativos ao mundo urbano. Se hoje há estimativas de que podemos ser até 80% urbanos (Farias et al., 2017), serão esses os serviços de saúde que nos fornecerão mais elementos para compreender a totalidade em que estamos inseridos, considerando sua dinâmica espacial mais abrangente: lugar- formação socioespacial-mundo.

Tendo em conta tais pressupostos do método geográfico, reafirmamos, com Milton Santos (1994b), que a economia política da saúde não pode prescindir do dado espacial. Aprofundar o entendimento dessa economia política da saúde conduz, a todo momento, o pesquisador interessado em conhecer as causalidades que afetam as estruturas dos serviços de saúde a transitar do lugar ao mundo e, nesse caminho, a considerar o papel da formação socioespacial no processo de mediação entre esses polos. Ou, parafraseando Latour (1994), ponderar o papel de tradução que a formação socioespacial exerce nas conexões entre essas duas dimensões espaciais que são categorias do método geográfico.

As informações e os conhecimentos teóricos para demarcar características e limites de um circuito espacial produtivo são definidos pelo escopo teórico que entende o espaço como uma instância social, e tais circuitos constituem um conceito dentro de um sistema de conceitos:

Assim, por exemplo, “cobrar” de um geógrafo como Milton Santos “outra” concepção de “paisagem” pode significar quebrar toda uma cadeia de significados no interior da qual esse conceito está inserido e dentro da qual precisa ser lido. Dentro desse sistema, constelação ou família (ou, para os mais pretensiosos, “teoria”) mais ampla é que o conceito adquire sua consistência, e não isoladamente. Eventuais controvérsias devem ser construídas a partir do conjunto; não em propostas conceituais dissociadas (Haesbaert, 2010, p. 159).

Assim, o circuito espacial produtivo pode ser entendido como resultado da formação histórica da rede, constituído por sistemas de objetos técnicos que tanto estão fixados em várias formações socioespaciais como, por meio dos fluxos globais que são capazes de gerar, estabelecem nexos relacionais entre diferentes regiões produtivas e especializadas, como é o caso do complexo econômico-industrial da saúde. Esse relacional que se constela é uma forma do mundo que se estabelece.

Então, conhecer os fluxos de objetos técnico-científicos para a saúde pode explicar melhor por que adotar uma medicina tecnológica cara, quando ainda persistem em vários territórios doenças que uma medicina preventiva e menos custosa poderia extinguir. Também pode explicar o intenso e acelerado processo de medicalização da

sociedade (Dupuy; Karsenty, 1980; Illich, 1975), que teve início no pós-guerra, em

algumas regiões de países mais industrializados e urbanizados, e hoje se alastra para a maior parte do planeta e, ao que tudo indica, continua se expandindo e intensificando.

Um pressuposto fundamental do qual partimos é o de que os circuitos espaciais produtivos nascem de necessidades estruturais das sociedades. Desse modo, a questão de fundo que nos parece basilar é que a indústria da saúde nasceu, cresceu e se fortaleceu fundada na crença da sociedade moderna na capacidade da ciência, conjugada com a tecnologia, para intervir nos corpos como a principal forma de combater os males (Porter, 2004).

Do mesmo modo, é preciso entender que daí se formou todo um poder corporativo que faz o possível para reforçar essa forma de proporcionar produtos para a saúde e, frequentemente, decorre daí que o controle e o uso político dos circuitos espaciais produtivos da saúde pode reforçar consumos não obrigatoriamente necessários ou não necessariamente os únicos de fato úteis à saúde humana.

Assim, os circuitos espaciais produtivos têm a capacidade de transportar as “crenças do mundo” que, ao longo de um processo de convencimento, são transformadas em necessidades nos lugares. Também vemos como têm a força de instrumentalizar metrópoles e cidades de vários portes para acolherem suas necessidades de acumulação, o que frequentemente reforça a urbanização corporativa, fundamento da produção do espaço onde se testemunham altas taxas de urbanização com diversificação de atividades econômicas.

Nessa perspectiva, é importante reforçar que o conceito de circuito espacial produtivo é operacional para analisar metodologicamente as dinâmicas efetivas do que se denomina globalização, de modo detalhado e a cada momento da história recente. E também permite compreender melhor por que nem sempre ela é

facilmente observável, o que geralmente leva a duvidar de sua própria existência, isto é, a supor que não há diferenças radicais entre a produção industrial do presente e a de outros períodos do modo de produção capitalista.

Entendemos que isso decorre da complexidade da divisão territorial, onde somos todos, forçosamente, alienados quanto a seus mecanismos e estratégias de produção e acumulação, uma vez que os maiores agentes desse processo – as corporações transnacionais – operam com um mecanismo relativamente novo e pouco visível, que é o uso da simultaneidade dos processos econômicos, isto é, o que realiza a sincronia das ações na divisão técnica, social e territorial do trabalho. E os demais agentes, produtivos ou não, mas de menor porte, alcance e potência, não são capazes de atuar nesse mesmo diapasão e restam na dependência do comando do poder corporativo.

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APÍTULO

2

A cidade e o urbano na economia política da saúde

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