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O bom trabalhador não é mais aquele que permanece estável, em uma única tarefa ou emprego por longos períodos, mas aquele que se especializa, sob a perspectiva da polivalência e da multiplicidade de tarefas

(Jussara Maria Rosa Mendes, 2003a)

A atividade de calçados em Franca é uma atividade antiga na cidade, onde a base da economia é a própria produção de calçados. As oportunidades em relação a empregos nessa cidade se restringem ao trabalho com calçado, ou seja, muitas pessoas tornam-se dependentes desse tipo de trabalho para sobreviver.

A maioria dos trabalhadores revelou que iniciou o trabalho com calçados com funções mais simples, como colar peça e dentro do ambiente laboral aprendeu outras funções, com os colegas e esse aprendizado pôde facilitar a mudança de ocupação, ou seja, mudança de função e um salário melhor.

Atualmente, um trabalhador não apenas tem o conhecimento de sua própria função, mas tem o conhecimento de outras atividades, pois acaba executando outras funções dentro das fábricas. Isso pode ocorrer a partir do desvio de função. Os depoimentos indicaram que os operários não têm uma função certa dentro da empresa, pois realizam as atividades que lhes são ordenadas pelo chefe. Mesmo sendo registrados em carteira, o devido cargo não corresponde àquilo que o trabalhador realmente executa. Em um único dia, podem executar diversas funções, explicando que ao terminarem o seu ofício, no processo produtivo, para não ficarem sem exercer nenhuma atividade, o chefe pede para auxiliarem algum colega, que esteja com serviço um pouco atrasado.

Essa prática dentro das indústrias de calçados de Franca é muito comum. Porém, de acordo com Seligmann-Silva, o desvio de função, às vezes sem o necessário treinamento, resulta tanto em falhas de produção quanto em maior risco de acidente (SELIGMANN- SILVA, 1994, p. 262).

Assim, se eu tenho um ponto fixo dentro? (...) não tenho. Até então, hoje, às vezes, meu chefe me põe para moldar, intertelação, revisão de pesponto, chanfração (...). Tem muita coisa que eu faço dentro da fábrica (T. B. S.). (...) eu sou coladeira de peças, só que assim o que tem lá eu faço. Nessa última empresa que eu entrei, eu não entrei na firma para colar peça, eu entrei em serviços gerais na esteira que foi aonde que eu machuquei. (...) Acabo fazendo de tudo, porque assim (...) serviços gerais, você não tem um serviço certo, de repente eu estou lustrando, depois vou ajudar a menina colar. Estou ali para ajudar no que tiver (H. C. S.).

Eu ajudava outras funções sim. Rebaixar a ponta do dedo, fechar lado, passar cola na sola. Onde precisava ajudar, a gente ajudava. Eles que decidiam o que fazer. Eu fazia quase de tudo dentro da fábrica (M. A. O. S.). (...) Eu fui coringa na fábrica. [...] Coringa é uma pessoa que aprende a fazer tudo. Se falta uma pessoa é substituir aquela pessoa. Então, não é todo mundo que aprende tudo. Se tem alguém que quer ir ao banheiro, eu fico no lugar (F. E. S. A.).

[...] se eu termino antes eu fico ajudando os outros, é serviço mais de auxiliar, às vezes colo um metal no sapato, faço um enfeite (N. S. S.).

Fazia sim, quando era fora da esteira (...) aí você fica fazendo outras funções, você acaba ajudando as meninas da mesa, o que dá para você pespontar a seco, a gente faz para ajudar e ser mais rápido e colaborar com as meninas. E se precisar aparar, colar, porque quando você trabalha em grupo é desta forma. Nesse caso, a gente acaba ajudando, faz de tudo para ajudar o outro. Agora quando é esteira é mais difícil fazer isso, porque a esteira ela roda, aí não tem como você ficar saindo do seu lugar (I. I. G.). Nessa função, eu estou há cinco anos. [...] eu sou escaladora na esteira. [...] eu faço várias coisas. Eu auxilio as meninas na passação de cola, aponto sola, reviso. Ali, você tem que fazer de tudo, então, você acaba aprendendo um pouco de cada coisa (S. A. S.).

Dentro das fábricas de calçados, os trabalhadores exercem várias funções além daquilo que está em sua carteira profissional. Eles auxiliam colegas de trabalho, em outras funções, principalmente quando terminam de realizar a sua. A própria organização exige que eles continuem o serviço, mesmo que não seja a sua função. A maioria deles já realizou outras atividades, além da sua função e, muitas vezes, não percebem os riscos e nem a intensificação do trabalho que estão sofrendo durante a jornada laboral.

De acordo com Navarro, “essa forma de se organizar o trabalho pressupõe uma polivalência ou multifuncionalidade do trabalhador, ou seja, a tendência é de cada trabalhador se ocupar não mais de uma única operação, mas de um grupo delas” (NAVARRO, 2006, p. 256).

Dessa forma, é muito comum, dentro das indústrias de calçados, os trabalhadores exercerem mais de uma função. A questão do desvio de função também é um fator determinante para a ocorrência dos acidentes e para as doenças relacionadas ao trabalho, uma vez que um trabalhador passa a realizar mais de uma função dentro das fábricas, mesmo não estando preparado, muitas vezes, para executar tal especialidade dentro da produção de calçados, colocando em risco a sua saúde.

Muitos trabalhadores que se acidentam ou são acometidos por doenças relacionadas ao trabalho, ao voltarem para a fábrica, depois de um afastamento, às vezes não voltam para a sua função, e acabam exercendo outras funções no processo de fabricação do sapato. A questão do adoecimento no trabalho também é um fator que contribui para a mudança de funções dentro da organização e, assim, o trabalhador passa a ter o conhecimento de outras funções, tornando-se um trabalhador polivalente. Como relatou a trabalhadora que realizou uma cirurgia na mão e precisou mudar de função, ainda continua exercendo outras atividades dentro da fábrica, mesmo que sejam aquelas que não necessitam de grandes esforços, devido ao problema nas mãos e à cirurgia a que se submeteu.

Sou revisora. Você olha a qualidade e os defeitos do sapato. Se tiver ruim você tira e manda arrumar. Se tiver bom, manda embora a peça. Eu conserto algum defeitinho do sapato, (...) se precisar fazer eu faço. Mas atualmente eu estou como revisora, porque já tem um funcionário adequado. (...) eu ponho na caixa, eu lustro, coloco calcanheira. Só que eu estou evitando porque minha mão, depois que eu fiz a cirurgia, eu evito fazer função repetitiva, porque o serviço que eu faço agora, o sapato é mais leve. Então, eu evito fazer força para não prejudicar minha mão (S. A. B.).

A polivalência exigida do trabalhador resulta na exploração e na intensificação do trabalho. A mudança de função dentro do processo do calçado pode ser, por um lado, positiva para o trabalhador, na medida em que ele tem oportunidades de crescimento dentro da fábrica, obtendo um cargo e um salário melhor e conhecimento de outras atividades do calçado, mas por outro lado, há a sobrecarga do trabalho, que se intensifica pelo fato de às vezes realizar mais de uma tarefa dentro da fábrica, pelas atividades serem repetitivas, realizadas em pé e isto gera um desgaste físico e psíquico no trabalhador. Assim, esse ritmo intenso desencadeia várias doenças no trabalhador, colocando sua vida em risco, estando sujeito à ocorrência de acidentes ou de alguma doença relacionada ao trabalho.