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Música como Linguagem no Processamento de Alturas

2. CAPÍTULO 2 – Reflexões sobre o Ouvido Absoluto pós-1950

2.1 Ouvido Absoluto e o Funcionamento Cerebral

2.1.3 Música como Linguagem no Processamento de Alturas

A hipótese de uma conexão entre o processamento de alturas em portadores de OA e o processamento da linguagem verbal tem sido levantada por uma série de pesquisadores. Já foi apontado anteriormente a possível correlação entre o processamento de alturas entre portadores de OA e o processamento de alturas por falantes nativos de línguas tonais (DEUTSCH, 2002). A autora reforça a possível correlação entre OA e linguagem ao apontar que seus resultados indicam que falantes de mandarim e vietnamita possuem um extraordinário OA. A autora ainda levanta a hipótese de que a aquisição do OA pode ter início no primeiro ano de vida, uma vez que este é um período crítico para a aquisição de certos aspectos da linguagem (JUSCZYK et al., 1993).

Crianças falantes de línguas tonais possuem maior propensão em adquirir OA quando comparadas a crianças não falantes, o que sugere que a atenção precoce aos atributos acústicos da fala facilita a aquisição do OA. Os dois experimentos supramencionados realizado por Deutsch (1999) são completados por Deutsch et al. (2004), em que foi realizado um terceiro experimento com a mesma tarefa dos dois primeiros, mas dessa vez, com falantes de língua inglesa ao invés de falantes de línguas tonais. Como resultado, os falantes de língua inglesa demonstraram menor estabilidade do que os falantes de línguas tonais quanto à altura de enunciação de palavras. Com base nesses resultados, e levando em consideração as discussões sobre período crítico para a aquisição da linguagem, os autores propõem uma teoria segundo a qual o OA teria

30 A memória de longa duração chamada de explícita (ou declarativa) se refere a situações nas quais

relembramos tanto eventos específicos (como ter encontrado inesperadamente um amigo nas férias do ano passado) quanto fatos ou informações sobre o mundo (por exemplo, o significado de palavras ou a cor de uma banana madura). A memória explícita é dividida em duas sessões: memória semântica (conhecimento geral de mundo) e memória episódica (memória para eventos que ocorrem em momentos e locais específicos). É importante notar que a memória semântica sempre está envolvida em eventos que acionam a memória episódica (BADDELEY et al., 2011).

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evoluído como um traço associado à fala, análogo à percepção das qualidades acústicas que permitem a distinção de vogais. Deste modo, falantes de línguas tonais naturalmente adquiririam este traço durante o período crítico de aquisição da linguagem. Para falantes de línguas não tonais, a aquisição do OA estaria associada à sobreposição do período crítico para a aquisição da linguagem e o início dos estudos musicais. Os autores indicam que o potencial para a aquisição do OA é universalmente presente em todas as crianças, de modo que sua aquisição demandaria apenas a associação de alturas a rótulos verbais durante o período crítico para a aquisição da linguagem.

Peng et al. (2013) estudaram os efeitos da experiência linguística na percepção de alturas. Os autores apontam evidências de que a experiência auditiva afeta diretamente a percepção auditiva. Seus resultados mostram uma maior prevalência de portadores de OA entre estudantes de música que também eram falantes nativos de línguas tonais quando comparados a estudantes de música que eram falantes nativos de línguas não tonais.

Deutsch et al. (2009) pesquisaram o âmbito de alturas presente na fala de mulheres em duas vilas relativamente isoladas na China. O âmbito era bastante estreito em cada vila, mas havia diferenças significativas entre as vilas, de forma que os autores indicam a presença de um molde de alturas absolutas que seria desenvolvido por falantes de línguas tonais através da exposição duradoura à fala em seu ambiente. Estes resultados reforçam a tese de que a altura da fala, ao menos para falantes de línguas tonais, é determinada por uma representação mental de longo prazo que é adquirida por meio da exposição à fala de outras pessoas.

Além disso, Deutsch (2002) aponta que falantes de mandarim identificam o significado de palavras através do rótulo verbal e da combinação de alturas, por isso quando um portador de OA identifica uma nota associando nomes como dó ou ré, ele está associando a altura a um rótulo verbal. Para Bossomaier e Snyder (2004), o treinamento musical precoce pode levar o cérebro a ser “enganado”, levando-o a acreditar que tons relacionados harmonicamente constituem uma linguagem, conduzindo à constituição de estruturas cerebrais especiais dedicadas ao processamento de alturas.

Braun (2001, 2002) reforça esta correlação entre OA e linguagem ao apontar que a cada dia que passa fica mais evidente que a linguagem parece estar associada com o fenômeno do OA. Segundo Zatorre et al. (1998), o plano temporal (área crítica para a compreensão da fala) é uma área do cérebro mais utilizada por portadores de OA no processamento de alturas quando comparado a não portadores. Schlaug et al. (1995) observaram que músicos portadores de OA geralmente apresentam uma área cerebral

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incomum no plano temporal, em favor do hemisfério esquerdo (ou seja, esta região é maior no lado esquerdo do que no direito) significativamente maior do que em indivíduos que não possuem OA. Complementarmente, Keenan et al. (2001) também reportam esta assimetria, mas ressaltam que em portadores de OA, o lado direito do plano temporal é significativamente menor quando comparado ao grupo de controle.

Em um estudo recente, pesquisadores desconfiam que a voz é processada automaticamente por um mecanismo específico (associado à linguagem), o que pode interferir na identificação das notas nesse timbre (VANZELLA e SCHELLENBERG, 2010)31. Segundo Boggs (1907), notas naturais são mais facilmente identificadas do que

notas alteradas (sustenidos e/ou bemóis), sendo que o autor atribui esse fato às notas naturais terem nomes próprios simples, enquanto as alteradas não têm.

Dados sobre a prevalência do OA indicam que existe uma maior taxa de asiáticos portadores de OA (WELLECK, 1963; CHOUARD e SPOSETTI, 1991; GREGERSEN et al., 1999)32. Entretanto, este fato não pode ser atribuído unicamente a variáveis

socioculturais, já que também há uma grande prevalência de portadores de OA em americanos descendentes de asiáticos (GREGERSEN et al., 2000). Além disso, esta prevalência em asiáticos também não pode ser explicada unicamente pela língua, uma vez que nem todas as línguas asiáticas são tonais (O’GRADY e ARCHIBALD, 2000).

Uma das principais questões sobre o OA é estimar quantas pessoas na população em geral e na população de músicos possuem a habilidade. A desconfiança de que a habilidade do OA possa ser algo extremamente raro parece ser comum entre os pesquisadores. A proporção de portadores na população em geral é grosseiramente estimada em 1 a cada 1.500 pessoas (Profita e Bidder, 1988) ou até mesmo 1 em cada 10.000 pessoas (Bachem, 1955), embora não se saiba se essas estimativas baseiam-se em dados empíricos (Miyazaki e Ogawa, 2006).

Entre músicos, a habilidade não parece ser rara, pois a estimativa proporcional de OA entre músicos varia de 3.4% (Révész, 1953), 8.8% (Wellek, 1963) para cerca de 15% (Baharloo et al, 1998). A variação nessas estimativas deve-se provavelmente à variação de critérios na definição de OA, além de poder indicar variações nas amostras colhidas (Miyazaki e Ogawa, 2006).

31 A questão do timbre e suas dificuldades será melhor abordada no item 2.2.2.

32 Gregersen et al (1999) realizaram um estudo com 2.707 estudantes de música através de um

questionário de duas páginas. Na população de etnia não asiática, 7% dos voluntários se autodeclararam portador de OA, enquanto que na população de etnia asiática 32.1% dos voluntários se autodeclararam portadores de OA.

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Em uma entrevista recente realizada com músicos autodeclarados portadores de OA, foi possível obter algumas informações importantes sobre a influência da linguagem no processamento de tons. Muitos portadores entrevistados afirmaram que, ao ouvir certa altura, sentiam como se a nota estivesse “falando” seu nome:

Eu comecei os meus estudos musicais no piano, qualquer nota que eu ouvia, eu conseguia identificar: vinha na minha cabeça o nome da nota (Voluntário F. M., em GERMANO, 2011).

Para resolver os exercícios de percepção, eu ouço o nome da nota e nada mais (Voluntário M. S., em GERMANO, 2011).

A entrevista supramencionada, que compôs a parte final do trabalho de Iniciação Científica, teve como foco um questionário que abordava muitas questões da vida musical dos voluntários. Alguns voluntários autodeclarados portadores de OA afirmaram que algumas vezes “confundem” a nota mi com a nota si, ou a nota fá com a lá. O motivo deste tipo de engano para eles parece óbvio: ambas as notas terminam com a mesma vogal. Quando questionados sobre o modo como diferenciam notas homônimas (que apresentam o mesmo nome base; ex.: dó e dó#), muitos afirmaram que associam imediatamente o som ao rótulo dó, mas quando percebem que a frequência não corresponde ao dó natural, então automaticamente sabem que aquela nota é, por exemplo,

dó#.

2.2 Problemas e dificuldades no estudo do Ouvido Absoluto