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O Ouvido Relativo em relação ao Ouvido Absoluto e à Educação Musical

4. CAPÍTULO 4 – Algumas considerações sobre o Ouvido Relativo

4.2 O Ouvido Relativo em relação ao Ouvido Absoluto e à Educação Musical

enumerar algumas questões (questões cujas respostas, ainda que parciais, poderão fornecer indícios para pesquisas futuras):

1- Por quais motivos existe a preocupação (observável em diversos artigos sobre o OA) de isolar a habilidade do OA da habilidade do OR? Quando o assunto principal é o OR, o contrário acontece?

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2- Será que o OR e o OA envolvem, de fato, modos diferentes de processar alturas? Se sim, quais são as principais diferenças?

3- Como funciona neurologicamente o OR?

4- Por quais razões músicos não se propõem, de fato, a pesquisar a fundo a habilidade do OR?

Ao refletir sobre essas questões, pode-se constatar que o OA é notoriamente mais estudado do que o OR. Este dado pode se dever ao fato de que o OA é tido, desde o século XIX, como um mistério a ser desvendado. Este mistério está relacionado à constatação de que o OA aparenta ser, segundo a maior parte dos pesquisadores, uma habilidade incomum tanto entre músicos como entre não músicos, e que é em geral considerada inata, não sendo aparentemente possível de ser adquirida através do treinamento musical. Por outro lado, a habilidade do OR, em seu sentido geral, pode ser encontrado em praticamente todas as pessoas (embora se manifeste em diferentes níveis de acuidade de acordo com a experiência pessoal); em seu sentido restrito, a habilidade do OR pode simplesmente ser adquirida através de um treinamento musical auditivo especializado. Esta distinção poder ser vista em Burns e Campbell:

O OA é uma habilidade relativamente rara. No entanto, muitos trabalhos recentes consideram que a habilidade pode ser hereditária, mas a maior parte das evidências mais fortes indica que o OA é aprendido. Isso é o oposto do OR. Parece ser visivelmente impossível para a um adulto adquirir o OA no mesmo grau de proficiência dos melhores portadores (BURNS e CAMPBELL, 1994).

Muitos dos estudos sobre o OA apresentam grande preocupação em separar as duas habilidades cognitivas, devido à necessidade de isolar o OA do OR. Este procedimento é de extrema importância, tanto para psicólogos, neurocientistas, ou outros pesquisadores, pois a interferência do OR poderia comprometer os resultados obtidos com experimentos, impossibilitando uma real avaliação das características do OA. Por outro lado, essa preocupação em separar habilidades cognitivas não é normalmente vista no sentido oposto, ou seja, pesquisas voltadas para o OR, em geral, não demonstram necessidade ou preocupação aparente em não deixar o OA intervir em seus procedimentos. Isto pode ser observado tanto na realização de teste quanto nos métodos de educação musical voltados para o ensino de percepção intervalar.

É fato que o OR não é efetivamente estudado por músicos (em relação ao seu funcionamento cerebral, enquanto fenômeno cognitivo). A maior parte das pesquisas

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sobre a habilidade são realizadas por neurocientistas e psicólogos. Além disso, quase sempre tais pesquisas estão atreladas a outro fenômeno cognitivo. Conjuntamente, esses fatos nos fazem refletir sobre o motivo de músicos aparentemente não demonstrarem interesse em estudar o fenômeno do OR. Dentre músicos, é fato notório que o OR é uma habilidade indispensável para profissionais, sendo muito mais importante que a habilidade do OA: é através do OR que músicos se tornam capazes de realizar tarefas básicas de percepção musical, que são essenciais para o aprimoramento profissional.

Em todos os cursos de música, da educação básica ao ensino superior, a matéria intitulada percepção musical normalmente faz parte da grade curricular. Em percepção musical se ensina a reconhecer auditivamente diversos intervalos, tríades, tétrades, progressões harmônicas, escalas e pequenos trechos musicais (sendo que a realização de todas estas tarefas independe de qualquer habilidade de reconhecimento de notas por rótulos ou tonalidade, encontrada em portadores de OA). A matéria também contempla a prática do solfejo, incluindo exercícios de transposição intervalar e reconhecimento de funções harmônicas em melodias tonais. Em seu sentido restrito, é portador de OR um sujeito que, após algum tempo de aula e muito estudo, é capaz de realizar essas tarefas básicas de percepção musical.

Em geral, nas classes de percepção musical, o estudo e treinamento de cada uma das tarefas acima mencionadas é feito a partir de um único método (escolhido pelo professor diante de muitas opções), adotado com todos os alunos. Este método é fruto da experiência prática de professores, incluindo seu conhecimento teórico sobre o funcionamento de repertórios específicos como o sistema tonal, por exemplo, mas, na grande maioria dos casos, não tem um sólido embasamento científico em relação ao funcionamento cognitivo do OR, conhecimento este que possibilitaria um melhor atendimento à demanda diversificada dos alunos. Se o processamento cerebral relativo ao OR fosse melhor estudado e compreendido, poderiam ser desenvolvidos novos métodos capazes de atender de forma mais eficiente as diferentes necessidades dos variados alunos. Seguindo esse raciocínio, seria possível não só adequar métodos e exercícios diferenciados de acordo com as necessidades de cada tipo de indivíduo, mas também, criar um método de ensino de percepção musical que isolasse ao máximo a possível intervenção do OA nas atividades, o que seria de grande valia para músicos portadores de OA adquirirem com maior destreza a habilidade do OR.

Além disso, cabe ressaltar que o aspecto mais importante no ensino de percepção musical são os resultados finais, ou seja, não importa os caminhos traçados pelos alunos

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para alcançar os resultados propostos (incluindo dificuldade, facilidade, destrezas e conhecimento prévio), o que importa é que os alunos atinjam resultados satisfatórios. É esse tipo de abordagem, voltada para os resultados finais sem uma consideração efetiva sobre o conhecimento heterogêneo dos alunos, que tende a inibir o interesse dos músicos em conhecer e estudar o OR neurologicamente: o estudo de percepção de melodias, de acordes, de progressões harmônicas, de tríades, tétrades e intervalos é feito, em grande medida, sem o estabelecimento de uma efetiva relação destas habilidades com o processamento neurológico que subjaz ao fenômeno cognitivo do OR.

Além dessa possível defasagem nos cursos de percepção musical64, existe a visão

de que músicos treinados em percepção musical, ou seja, que possuem OR, se saem melhor em todos os tipos de teste de percepção do que músicos com pouco treinamento e não músicos; da mesma forma, músicos com pouco treinamento se sairiam melhor nestes testes do que não músicos. Contudo, Dowling (1986) apontou em seu estudo que não músicos às vezes se saem melhor em certo tipo de tarefa do que músicos com pouco treinamento.

Dowling (1986) aponta diferenças entre três níveis de sofisticação em um estudo de memória para melodias originais de sete notas. Dowling apresentou as melodias em um contexto de acordes que definia cada melodia como construída em torno da tônica (o primeiro grau de uma escala, Dó) ou a dominante (o quinto grau, Sol). Os ouvintes deveriam dizer se haviam notas alteradas quando a melodia era apresentada outra vez. As melodias dos testes eram também apresentadas em um contexto cordal, e esse contexto poderia ser o mesmo ou diferente na repetição. As melodias dos testes eram ou transposições exatas ou alteradas (mas com o mesmo contorno das melodias originais). A performance dos ouvintes sem treinamento musical foi igualmente boa independentemente do contexto cordal. Ouvintes com uma quantidade moderada de treinamento musical (cerca de cinco anos de aulas quando eles eram jovens)65 obtiveram

performance muito pior quando havia mudança do contexto cordal. Isso sugere que esses

64 Falaremos melhor sobre essa defasagem no item 4.3.

65 O autor não define exatamente o nível de conhecimento musical dos sujeitos, uma ambiguidade que

afeta especialmente os sujeitos enquadrados como tendo uma quantidade moderada de treinamento musical. É sabido que existe uma grande variedade de tipos de treinamento musical, assim como há uma grande variedade em relação ao tempo real de dedicação diária de cada estudante ao aprendizado musical. Porém, a escolha do autor leva em conta a necessidade de estabelecer um critério mínimo para separar os sujeitos nas categorias necessárias para comparar sujeitos com experiências musicais distintas e avaliar os resultados para o delineamento de conclusões e a elaboração de hipóteses para futuras pesquisas.

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ouvintes inicialmente codificaram as melodias em termos de valores escalares tonais fornecidos pelo contexto cordal, de forma que quando o contexto foi alterado, tornou-se muito difícil de recuperar a melodia de memória. Em contraste, não músicos simplesmente se lembraram da melodia independentemente de sua relação com o contexto cordal. A performance de músicos profissionais foi muito boa em ambos os casos (quando o contexto cordal era repetido ou alterado). A sua sofisticação perceptiva forneceu-lhes a flexibilidade para ignorar o contexto cordal quando este não era útil.

(DOWLING. In: DEUTSCH, 1999).

4.3 Ouvido Absoluto versus Ouvido Relativo: importâncias reais das duas