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A música como meio de provocar o colega

Prelúdio 2 E começa o recreio! E como a música entra?

4.2 Música permeando as relações no recreio

4.2.2 A música como meio de provocar o colega

Durante as observações na escola, foi possível perceber algumas divergências entre as crianças. Há aquelas que são excluídas pelos grupos e algumas que ficam com apenas um amigo e não se relacionam com outros colegas da sala. No recreio, não é possível entender os porquês desse tipo de acontecimento, os quais não são objetivo deste trabalho.

Contudo, as ações com a música, muitas vezes, estão presentes nas relações conflituosas. A música pode ser o que as desencadeia ou um mecanismo utilizado para aprofundar e intensificar as discussões. Houve um episódio em que dois meninos com um rádio estavam no canto do corredor da cantina, parecendo que não queriam compartilhá-lo com os amigos. Quando viram alguns meninos de sua sala, eles guardaram o rádio. Os colegas foram até aquele local e começaram a zombar deles.

Outro episódio que ilustra situações conflituosas entre as crianças foi um dia em que as meninas do 3º ano brincavam de Evolução, e os meninos da sala delas começaram atrapalhar a brincadeira, intervindo quando elas batiam as mãos. Trocavam a letra da música e quando elas tinham de dizer as palavras ao final da brincadeira, eles proferiam outras palavras e não aquelas combinadas. As meninas, então, ficavam bravas com eles.

Essas divergências entre as crianças se dão de maneira séria. Um dia, nas filas para entrar para sala, os meninos do 2º ano

começaram a brincar (até esse momento era um brincar, mesmo). Depois senti um conflito de um menino em contraponto com o restante dos meninos da turma. Ele estava agredindo um determinado colega e os outros defendiam o agredido. Ele primeiro o chamou de Neguinho (o menino é branco), que replicou com outros xingamentos e os colegas o ajudaram chamando-o de Babaca, Justin

Biba, Rei Start. O menino que iniciou a discussão chamou o colega

de gayzinho; os xingamentos continuaram de ambas as partes até entrarem na sala (Caderno de campo, 21 de novembro de 2011, p. 31).

Os conflitos aconteceram poucas vezes durante as observações, mas esse episódio foi bem significativo, pois as crianças se agrediram muito verbalmente. Interessante como o cantor Justin Bieber e a banda Restart são citados pelas crianças como xingamento; isso indica que os meninos não gostavam desses músicos e era uma ofensa ser comparado a eles.

Compartilhar interesses musicais determina, assim, os grupos musicais ou cantores que não são aceitos e os que podem servir até como xingamento por não serem benquistos pelo grupo. Há também a questão da identidade, em que as crianças se identificam ou não com músicos e projetam, nas suas relações sociais, as relações estabelecidas com esses artistas. São aspectos importantes que merecem estudos mais profundos.

Houve também casos de crianças que, algumas vezes, são discriminadas pelos colegas em virtude das diferentes relações que estabelecem com a música. Igor, do 1º ano, afirma que os colegas não aceitam a forma com a qual ele gosta de cantar. Diz:

não falo de música com meus colegas porque eu acho que eles não vão gostar das músicas que eu sei cantar. Quando eu faço a voz meiga perto deles eles saem correndo falando pra todo mundo: Que

é..., mas eles não conseguem (Entrevista, 8 de agosto de 2012, p. 308).

Acredito que ele faça voz de cabeça e atinja notas agudas, o que causa estranheza aos colegas que, assim, o discriminam quando ele canta.

Há também conflitos não declarados entre as crianças de idades diferentes, como coloca Daiane (Entrevista, 8 de agosto de 2012, p. 262), do 1º ano. Ela entende que os meninos do 5º ano podem levar o celular para a escola e ouvir música nele “porque são grandes. Eles são maiores do que a gente, eles têm 10, 11 anos e a gente não. Mas a gente tem responsabilidade pra deixar o celular desligado”. No entanto, a situação não é essa. As crianças têm essa impressão por verem os colegas maiores com aparelhos eletrônicos, mas isso acontece porque muitas vezes eles desafiam as regras e o que elas não percebem que há uma punição para isso.

São muitas as formas de conflitos que podem aparecer no recreio escolar em que a música permeia a situação. Importante destacar que, perto do número de relações sociais existentes no recreio e que são permeadas por música, o número de conflitos é bastante baixo. Não são todos os dias que eles ocorrem. Essas situações merecem ser melhor investigadas e estudadas, uma vez que as provocações podem adquirir dimensões bastante amplas.

5 APRENDENDO/ENSINANDO MÚSICA AO BRINCAR

A música não só está presente em algumas brincadeiras como faz parte de sua construção; as musicais de mão, por exemplo, não existem sem ela. No entanto, brincadeiras como pula corda nessa escola, apesar de existirem sem a música, na maioria das vezes, elas vêm acompanhadas da música.

Em todas as brincadeiras que a música se faz presente, as crianças estabelecem fortes relações com ela: são experiências ricas ligadas ao fazer musical. Estudar e compreender essas relações é importante para entendermos os processos de aprendizagem musical, isso porque

a aprendizagem não se dá num vácuo, mas num contexto complexo. Ela é constituída de experiências que nós realizamos no mundo. Dessa maneira, a aprendizagem pode ser vista como um processo no qual – consciente ou inconscientemente – criamos sentido e fazemos o mundo possível (SOUZA J., 2009, p. 7).

Enquanto brincam, as crianças adquirem experiências, constroem sentidos e, segundo Brougère (2004), atuam na “construção de seu ser social e cultural, na sua socialização”. Isso porque ela não recebe passivamente as “imagens, as mensagens, as normas e sim as interpreta”, e lhes “dá um sentido específico, o que faz com que o mesmo contexto produza indivíduos diferentes” (BROUGÈRE, 2004, p. 249).

As crianças, ao se envolverem com as brincadeiras, trocam experiências que serão interpretadas por cada uma de forma diferente. O brincar “constitui-se, dessa forma, em uma atividade interna das crianças, baseada no desenvolvimento da imaginação e na interpretação da realidade, sem ser ilusão ou mentira” (BRASIL, 1998, p. 23). Elas, com isso,

também tornam-se autoras de seus papéis, escolhendo, elaborando e colocando em prática suas fantasias e conhecimentos, sem a intervenção direta do adulto, podendo pensar e solucionar problemas de forma livre das pressões situacionais da realidade imediata (BRASIL, 1998, p. 23).

Portanto, é por meio das conexões feitas pelas crianças a partir das suas experiências musicais que se constrói conhecimento musical. A brincadeira na escola torna-se, assim, uma forma bastante expressiva para elas estarem em contato e articularem a música em suas vidas.