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Prelúdio 2 E começa o recreio! E como a música entra?

6.1 O cantar

O canto é a principal forma de manifestação musical das crianças no recreio, fazendo parte de várias brincadeiras apresentadas. É por meio dele que as crianças criam músicas, acompanham suas danças, fazem trilha sonora para diversas brincadeiras, enfim, o canto mostra-se como o principal instrumento para as crianças praticarem música no recreio.

Além de o canto fazer parte das brincadeiras, as crianças também cantavam outras canções, algumas inteiras, sendo que, às vezes, repetiam pequenos trechos. Outras vezes cantavam apenas sons onomatopaicos, vogais, consoantes sonoras, ou sílabas entoadas com alturas definidas ou não. Um exemplo disso se refere aos meninos do 5º ano que “no final do recreio voltaram para a sala de aula cantando todos juntos Lelelelele...” (Caderno de campo, 13 de dezembro de 2011, p. 56).

O canto também aparece quando a escola “leva música para o recreio”, isto é, quando ligam o aparelho de som com canções escolhidas por responsáveis ou crianças e conhecidas (ou não) por elas.

Algumas crianças do 5º ano disseram que cantam juntas em duas situações no recreio: quando a professora “coloca música” e/ou “ficam cantando”, ou quando alguém “lembra de uma música e vai cantando” (Entrevista, 8 de agosto de 2012, p. 282-283). Elas disseram que a professora “pega o som, o microfone, coloca o CD e todo mundo canta” e “faz uma fila e cada um vai cantando uma frase”.

Vitória (Entrevista, 12 de dezembro de 2011, p. 159), do 5º ano, disse que canta Rebelde70 em casa e no recreio, junto com dois amigos. Segundo ela, “todos gostam do grupo Rebeldes”. Outro exemplo foi dado por Alana (Entrevista, 12 de dezembro de 2011, p. 178), do 5º ano, a qual disse que sua “colega gosta muito de Restart e as meninas também gostam [...]. Ficam cantando, tudo. Só música do Restart. Só Restart!”.

Novamente, a relação que as crianças têm com a mídia televisiva em suas casas aparece no recreio. Elas trazem as músicas que aprenderam para a escola e as compartilham com seus colegas. São canções que carregam “as marcas” dos seus intérpretes e isso, muitas vezes, apresenta elementos que possibilitam a identificação das crianças com eles. Ramos (2002, p. 89) destaca que “os alunos vão construindo seu repertório a partir de suas vivências musicais nos ambientes da família, na mídia e na escola”.

Apesar de cantarem juntas no recreio com muita frequência, as crianças também cantam sozinhas. Tal ação pode se dar de duas maneiras: cantar para elas mesmas, ou seja, sem interação com os colegas, ou cantar individualmente, mas para os amigos.

Luciana (Entrevista, 13 de dezembro de 2011, p. 216), do 5º ano, conta que ela canta no recreio “quando vem uma música na cabeça”; então, ela começa a cantar. Também, segundo a maior parte das crianças, a música que elas cantam durante o recreio se referem àquelas que “estão na cabeça” naquele momento. Geralmente, elas estão presentes na mídia ou são outras escolhidas por elas na ocasião.

70 Grupo musical surgido na telenovela brasileira Rebelde, produzida pela Rede Record em parceria

Elas cantam sozinhas, geralmente, “no pensamento, baixinho” (Entrevista, Daiane, 1º ano, 8 de agosto de 2012, p. 267), ou cantam distraidamente pelo pátio, como registrei no caderno de campo: “Uma menina passa cantando bastante afinada. Ela canta enquanto anda sozinha. Logo em seguida, foi ficar com as amigas e parou de cantar” (Caderno de campo, 19 de outubro de 2011, p. 10).

Quando estão nos grupos, as crianças também cantam sozinhas, como por exemplo:

uma menina do 5º ano estava na roda com as colegas e percebi que ela não estava concentrada na conversa e sim em uma música que cantava baixinho e dançava discretamente mudando o equilíbrio de uma perna para a outra. Logo depois ela foi se sentar na muretinha. Lá ela continuou cantando, e passou a se acompanhar com percussão corporal, batendo as mãos na coxa. Ela cantava bem baixinho, não consegui nem identificar qual música era. Ela estava apenas cantando pra ela mesma, não queria mostrar para ninguém, nem mesmo para as colegas que estavam ao seu lado (Caderno de campo, 26 de outubro de 2011, p. 19).

Nesse caso, ao contrário do anterior, a menina não parou de cantar quando chegou ao grupo, mas saiu dele para poder continuar cantando. Mesmo no grupo, ela cantava sozinha – para continuar essa ação e fazer percussão corporal, ela se afastou do grupo.

A partir desse exemplo, pode-se trazer para discussão o canto acompanhado de percussão corporal. Essa combinação entre tais elementos parece se dar de forma bastante espontânea para as crianças, tanto que Luiza (Entrevista, 8 de agosto de 2012, p. 286), do 5º ano, coloca que as meninas ficam, de vez em quando, “fazendo só o ritmo da música, as vezes só cantam, ou fazem os dois”.

Algumas vezes, cantar para os colegas era uma forma de se apresentarem. Cantavam com a intenção que os amigos os vissem, queriam mostrar sua música, sua dança, como “um dos meninos na fila do jogo pênalti que cantava para os colegas: Eu quero tchu, eu quero tchá. Eu quero: tchu tchá tchá thu thu tchá, tchu tchu tcha tchá tchu tchu tchá, trecho da música Eu Quero Tchú, Eu Quero Tchá71. Ele ria enquanto cantava” (Caderno de campo, 11 de abril de 2012, p. 88).

Além de cantarem músicas conhecidas, as crianças também faziam improvisações no recreio72. Isso acontecia quando cantavam sozinhas “para elas

mesmas” e quando elas cantavam para chamar atenção dos colegas.

Tais crianças improvisavam cantando enquanto andavam e saltitavam. Uma das cenas que presenciei foi quando vi “uma menina do 3º ano passar andando, saltitando e cantando baixinho te, te, te, te, re, te, te” (Caderno de campo, 1 de novembro de 2011, p. 24) e um menino do 1º ano que se “dirigia ao banheiro e cantava uma escala descendente em oh, oh, oh, oh, oh” (Idem, 23 de novembro de 2011, p. 34).

As crianças se utilizavam de diversos tipos de fonemas e sílabas entoadas de maneiras variadas no decorrer das brincadeiras. Algumas vezes, improvisavam trechos musicais que passavam a compor uma trilha sonora, a qual acompanhava a brincadeira.

Outras vezes, pude ver que as crianças improvisavam cantando para “dizer algo”, como no caso das meninas que “ficavam em um cantinho ao lado do palco que batia sol para se aquecerem e uma delas falava de forma cantada: Solzinho, repetidas vezes” (Caderno de campo, 18 de outubro de 2011, p. 7). Ou ainda quando um menino do 1º ano estava sentado no balcão comendo e falava [cantando] para o colega “Toma cuidado”, dando ênfase na sílaba “to” e cantando com voz grave (Caderno de campo, 21 de novembro de 2011, p. 30).

Além do canto improvisado, também apareceram formas de composição no recreio. Composição, diferente de improvisação, será considerada como a “criação de peças revisada”73 (BURNARD, 2000, p. 227). A composição passa, portanto, por

um processo de criação e após este por revisões, pensando e repensando o produto final. Assim, as músicas criadas pelas crianças se repetiram da mesma forma e apresentaram um processo de elaboração e revisão da música, sendo consideradas como composição.

Essa forma de elaboração musical apareceu quando um menino começou a cantarolar assim que passava correndo pelo caracol pintado no corredor: “Vic, vic, vic, caracol enquanto cantava batia palmas marcando no tempo. Depois cantava a mesma música com outra letra, repetindo os gestos” (Caderno de campo, 13 de

72 Improvisação é considerada segundo a definição colocada por Burnard (2000), como

“criando performances espontâneas em eventos únicos (creating spontaneous single-event performances)” (p. 227, tradução minha).

73 No original:

março de 2012, p. 69-70). Helena (Entrevista, 8 de agosto de 2012, p. 287), do 5º ano, contou que havia uma menina em sua sala que queria montar uma dupla com uma amiga dela. Para isso, pediu auxílio à colega que, no recreio, ajudou-a na criação das músicas.

Além de no recreio comporem suas próprias músicas, as crianças também criavam novas letras para músicas já existentes: são paródias, letras novas para melodias já existentes.

Lili, do 2º ano, explica que “cria uma música” de vez em quando e diz que no lugar da letra da música Chocolate com Pimenta, pode colocar “Chocolate com Sorvete. É aí que eu troco as palavras” (Entrevista, 8 de agosto de 2012, p. 308). Da mesma forma, Igor, também do 2º ano, diz que trocou o “Kuduro74 por outra coisa,

outro nome” (Idem, p. 308). Além disso, as meninas do 4º ano fizeram uma música para o ídolo do grupo Rebeldes, utilizando a melodia de uma brincadeira musical de mão Fui à China75. Elas disseram que a música ficou assim: “Fui ao Diego, saber o que era Diego, todos eram... hehehe” (Entrevista, 13 de agosto de 2012, p. 308). Diante disso, Marsh (2008) coloca que

o poder de invenção das crianças é rapidamente exercido em materiais adquiridos por fontes midiáticas. Em várias escolas, crianças criaram jogos de mãos ou rotinas de dança para acompanhar canções populares, refletindo a influência global nos ambientes de auditório (MARSH, 2008, p. 175, tradução minha)76.

Com esses exemplos, é possível notar as várias maneiras com as quais o canto aparece no recreio, em que crianças cantaram tanto juntas quanto sozinhas, para si mesmas ou para os colegas. Elas se acompanhavam com percussão corporal, improvisavam, compunham melodias e faziam paródias de músicas já existentes. O canto fez-se com frequência no recreio e mostrou-se, assim, um veículo versátil e acessível para que a música se faça presente nesse contexto.

74 Referindo-se a música Dança Kuduro composta por Daddy Kall, Potento Sento e Carlos J. e

interpretada por Latino.

75 Fui à China está descrita com detalhes no site <http://mapadobrincar.

folha.com.br/brincadeiras/palmas/412-fui-a-china>. Acesso em: 21 jan. 2013.

76

No original: “Children’s powers of invention are rapidly brought to bear on other material acquired from mediated sources. In several schools, children created clapping games or dance routines to accompany popular songs, reflecting the global influences on their auditory environments”.