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3 LABIRINTOS: RECORTE E METODOLOGIA

4 UMA EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO MUSICAL: “OUTRAS PALAVRAS” 1 Bourdieu e os conceitos de habitus e campo

4.2 Músico educador, educador musical ou professor de música?

Sócrates Mas que educação lhes proporcionaremos? Será possível encontrar uma melhor do que aquela que foi descoberta ao longo dos tempos? Ora, para o corpo temos a ginástica e para a alma, a música. Adimanto – Certamente.

Sócrates – Não convém começarmos a sua educação pela música em lugar da ginástica?

Adimanto – Sem dúvida (PLATÃO, 1997, p. 75).

Para os gregos a Música era algo inerente ao cultivo da “boa educação” e junto à Ginásticafaziaparte indissolúvel da formação do caráter e do temperamento de seus cidadãos. A máxima mens sana in corpore sano38, encontra-se aqui resumida em um dos diálogos da República de Platão. Todavia, podemos concluir através desse breve diálogo que a música ocupava um lugar de destaque naquela sociedade, inclusive sobressaindo-se a ginástica em grau de importância.

Osistemamusicaldos gregos, baseado na “doutrina do ethos”, que atribui qualidades e efeitos morais à música segundo antigas leis pitagóricas, corrobora com o papel formador da música na sociedade grega. Entretanto, apesar de ressaltar sua importância na constituição de uma sociedade ideal, Platão não faz referência a um profissional específico encarregado das instruções musicais; a educação musical parece, nesse contexto, ser uma atribuição de todos. Sócratesapareceno dialogo citado questionando se “Não convém começarmos a sua educação pela música em lugar da ginástica?”, isto é, nós e não um profissional específico para tal finalidade. Porém, sobre a educação musical ele sentencia:

Sócrates – E, decerto, por esta razão, meu caro Glauco, que a educação musical é a parte principal da educação, porque o ritmo e a harmonia têm o grande poder de penetrar na alma e tocá-la fortemente, levando com eles a graça e cortejando-a, quando se foi bem-educado (PLATÃO, 1997, p. 112). Em Rousseau, no seu “Emílio ou da Educação”, o autor também ressalta a importância da educação musical como elemento crucial na formação do indivíduo. No livro II desta obra, Rousseau destaca a importância de se adotar uma metodologia de ensino de música que se utiliza de alturas móveis, resumindo o sistema tonal em dois modos e apresentando os modos transpostos. No entanto, o autor se refere à educação musical como atribuição de todos, não de um indivíduo específico portador de legitimidade institucional ou acadêmica.

38 “Mente sã, corpo são”.

Adotemos com nosso aluno uma prática mais simples e mais clara; que ele só tenha para si dois modos, cujas relações sejam sempre as mesmas e sempre indicadas pelas mesmas sílabas. Quer cantando, quer tocando instrumento, que ele saiba estabelecer seu modo em cada um dos doze tons que lhe podem servir de base e que, quer se module em D, em C, em G, etc., o final seja sempre em lá ou dó, conforme o modo. Dessa maneira, ele sempre vos compreenderá; as relações essenciais do modo para cantar e tocar estarão sempre presentes em seu espírito, sua execução será mais clara e seu progresso mais rápido (ROUSSEAU, 2004, p. 189).

Apesar de Rousseau não sugerir a presença de um mediador para o conhecimento musical, ele é bastante claro ao ressaltar as vantagens de uma metodologia de “dó” móvel e solfejo relativo para o ensino de música, vocal ou instrumental.

No Brasil, Heitor Villa-Lobos emprega seu método de canto orfeônico como um grande projeto de educação musical na escola. O compositor pretendia expandir seu método portodoBrasilatravésdacriaçãodeumcurso dedicado à capacitação de professores de música e a elaboração de um guia prático como material de base. Como nos informa Ermelinda Paz:

Seus primeiros passos foram: a criação de um curso de pedagogia e canto orfeônico, cursos de especialização e aperfeiçoamento, além de cursos de reciclagemintensivos;apropagandajuntoaopúblicomostrandoaimportância e utilidade do ensino da música, inclusive com programas radiofônicos; criação do Orfeão de Professores do Distrito Federal; a seleção e preparação de material para servir de base de formação de uma consciência musical e, como não podia deixar de ser, o folclore brasileiro foi o esteio principal, resultado deste esforço o Guia Prático; criação da Superintendência de Educação Musical e Artística (SEMA), organismo responsável pela supervisão, orientação e implantação do programa de ensino de música, criando concertos populares didáticos, círculo de pais e professores, o teatro escolar, a criação de grupos de dança, discoteca e biblioteca de música nas escolas, para citar apenas algumas iniciativas (PAZ, 2000, p. 13).

Osideaisdeensinodemúsicainfluenciaramdiversas iniciativas ao longo da história doensinodemúsica no Brasil. Villa-Lobos acreditava, sobretudo na formação de profissionais bem preparados para a aplicação de sua proposta metodológica. Contudo, percebe-se ainda a ideia “romantizada” de um professor de música que seja “senhor” ou “portador” de um conhecimento privilegiado. Anos mais tarde, um grupo de educadores musicais irá repensar as ideias e os métodos de ensino de música, promovendo a socialização e a produção de um conhecimento musical que dialoga com o seu tempo.

Após a fundação da Associação Brasileira de Educação Musical (ABEM) em 1991 em Salvador, Bahia, começamos a ouvir com maior frequência o termo educador musical, e através de seus congressos nacionais e regionais amplia-se a rede de informações e discussões acerca do papel deste profissional e sua interferência na sociedade contemporânea. Desde a

“educação tutorial” ao “ensino coletivo”, passando por questões pertinentes à legislação que norteia a educação brasileira (LDB n. 9.394/96) e relatos de experiências, os congressos da ABEM concentram, em boa medida, parte significativa da produção acadêmica nesta área desde a sua criação em 1991.

Em artigo publicado no periódico de divulgação científica da ABEM, podemos observar um bom exemplo da definição do termo educador musical e sua área de atuação, a partir do discurso de Claudia Bellochio:

No caso específico da educação musical, a formação e a prática musical do professor precisam ser constantemente realizadas junto à sua formação pedagógica. Trata-se do saber disciplinar correspondente ao campo da música e do saber pedagógico da educação sendo vividos e contextualizados por meio de experiências variadas. O educador musical precisa fazer/pensar música e ter condições de repensá-la com base em situações experienciadas e internalizadasnocotidianodesua prática educativa. Particularmente, defendo que a formação de professores seja realizada em cursos de licenciatura envolvidos com trabalhos de ensino, pesquisa e extensão (BELLOCHIO, 2003, p. 20).

A autora, assim com muitos associados, utiliza o termo “educador musical” e define claramente seu campo e área de atuação, assim como os saberes necessários a sua formação ideal. Concordamos que os saberes pedagógicos precisam estar integrados à prática musical e que este profissional necessita ter condições para pensar e repensar sua prática mediante situações cotidianas. Contudo, necessita também conhecer e dialogar com o meio no qual atua, inteirar-se das particularidades culturais do lugar e tornar-se sujeito nas mudanças e transformações em seu campo de atuação.

Em outro artigo publicado pela Revista da ABEM, Maura Penna interroga no título: “Não basta tocar? Discutindo a formação do educador musical.” Maura apresenta-nos uma crítica severa ao modelo de educação musical canônico e reforça a necessidade de se pensar um currículo mais abrangente para a formação do educador musical. Segundo Penna:

Sem dúvida, a ideia de que, para ensinar, basta tocar é correntemente tomada como verdade dentro do modelo tradicional de ensino de música, caracterizado pela ênfase no domínio da leitura e escrita musicais, assim como da técnica instrumental, que, por sua vez, tem como meta o ‘virtuosismo’.Presenteemmuitasescolasespecializadas – dos conservatórios a bacharelados e pós-graduações –, este tipo de ensino, baseado na tradição, é bastante resistente a transformações, mantendo-se como referência legitimada para o ensino de música. Nesse contexto, costumamos ‘ensinar como fomos ensinados’, sem maiores questionamentos, e desta forma reproduzimos: a) um modelo de música – a música erudita, notada; b) um modelo de fazer musical; c) um modelo de ensino. E a verdade é que tais modelossãobastanterestritos,secomparadosàlargae multifacetada presença da música na vida cotidiana (PENNA, 2007, p. 51).

A ordem dos fatores não altera o produto? Podemos identificar em alguns trabalhos, sobretudo publicados em outros periódicos, alguma incidência do termo “músico educador”. Em que implicaria esta inversão? Seria esta uma inversão de valores ou hierarquização de saberes? O “músico educador” traria a música em primeiro lugar em uma noção linear de pensamento? Podemos afirmar que para nossos depoentes nesta pesquisa o “músico” vem em primeiro lugar. Todos os depoentes se afirmam músicos antes de serem educadores e apontam sua passagem pelo curso de música da UFCA como um momento de apropriação de saberes pedagógico-musicais e vivências docentes “legitimadas” através do estagio supervisionado e da monitoria.

Em dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal Fluminense (UFF) em 2008, Mirelle Borges defende o título: “Heitor Villa-Lobos, o músico educador.” Neste trabalho a autora desenvolve uma reflexão sobre as ideias do maestro e sua participação na gestão do ministro Gustavo Capanema e a implantação do canto orfeônico nas escolas brasileiras. Contudo, antes do educador, o músico Villa-Lobos se evidencia.

O projeto “A Música na Escola”, em alusão a Lei n. 11.769, promovido pelo Ministério da Cultura em parceria com a empresa VALE, disponibiliza uma publicação homônima e gratuita na internet. O livro, lançado em 2012, traz um artigo de Ricardo Breim intitulado “O músico educador e o educador músico” inserido em um capítulo que se chama “O educador músicoouomúsicoeducador?”(JORDÃOetal.,2012).

Será esse um dilema real problemática suscitada no título e detém-se exclusivamente de propostas e discussões acerca da inserção da música como componente obrigatório na escola básica com base na Lei n. 11.769. Existe, contudo uma discussão ampla e aprofundada sobre os conteúdos e metodologias aplicadas na escola; o que e como ensinar. No texto de Breim, ele trata músicos e educadores como categorias distintas e depois apresenta uma síntese do que seria uma formação ideal unindo os saberes destas áreas. No primeiro momento Breim ressalta:

No início, as diferenças de formação musical ou educacional entre músicos e educadores, embora enormes, teriam que ser assumidas como necessidades de um planejamento compatível com as dimensões do país, diante das quais não se pode abrir mão de nenhuma das alternativas existentes (JORDÃO et al., 2012, p. 167).

Em seguida, o mesmo autor apresenta uma proposta de formação de “músicos educadores” e não justifica a escolha deste conceito, apesar do termo “educador musical” ser predominante na obra como um todo.

Nessehorizontedaspossibilidadesde um projeto em longo prazo, a formação dos professores é a questão mais dramática e fundamental. Por isso, tendo em vista a possibilidade de a música desempenhar seu papel na formação humana como uma espécie de escola da sensibilidade, este texto se conclui com uma proposta. As disciplinas de formação de músicos educadores podem se dividir em três módulos: linguagem, expressão e educação (JORDÃO et al., 2012, p. 169).

Ao todo, na obra “A Música na Escola” encontra-se dezenove referências ao termo “educador musical” contra apenas duas que se referem ao “músico educador”. Este é um indicativo de que este termo ainda carece de discussão e a Educação Musical ainda encontra- se em um processo de sedimentação enquanto área de conhecimento; embora, em boa medida, podemos defini-la como uma área interdisciplinar.

Em nosso estudo entendemos que qualquer ação artística, política e social é, em boa medida, um uma ação educacional e que tais ações se entrecruzam em diversos momentos da vida social gerando episódios de aprendizagem. Cremos que é ingênuo se pensar em uma “separação” das identidades de músico e educador.

Fazer música, preparar um espetáculo, ensaiar, eleger um repertório são ações que guardam em si uma intencionalidade; uma ação pedagógica. De algum modo estamos construindo um currículo, elencando saberes que se compartilha com o público. O artista, de modo geral, é um ser crítico que apresenta sua arte como um posicionamento social e político para uma plateia que representa uma fração da sociedade que compartilha, de certa maneira, sua visão de mundo.

Contudo, resolvemos adotar o termo “músico educador” por entendermos que esta é uma expressão que agrega valores e identidades os quais acreditamos que nossos sujeitos compartilham. Posto que, o termo “educador musical”, em nosso entendimento, restringe a educação ao campo da música e não contempla a ação educacional de forma ampla e irrestrita. Ao passo que o termo “professor de música” remonta ao ensino conservatorial e sugere a centralidade do conteúdo; a música como fim.

Portanto, elegemos o termo “músico educador” porque acreditamos que este sugere uma relação menos “verticalizada” entre educador e educando, termos adotados por Paulo Freire ao referir-se a estes como “sujeitos socioculturais”. Músicos educadores na nossa concepção são pessoas comprometidas com uma educação democrática onde a diversidade cultural e a liberdade de expressão fazem parte da prática diária dos educadores; cientes de seu papel como agentes transformadores da realidade social na qual estão inclusos, fazem de seu fazer artístico uma ação pedagógica constante. Em sintonia com o perfil do egresso do Curso de Música da UFCA e o Projeto Pedagógico do Curso:

O músico educador formado pelo Curso de Música – UFCA, além do domínio e competência das técnicas musicais e pedagógicas, deverá: ser consciente da cultura musical global e regional; ser capaz de realizar uma leitura de mundo coerente com as demandas da sociedade contemporânea; ser comprometido com o fazer musical da realidade na qual está inserido; estar apto a desenvolver pesquisas no âmbito acadêmico; ser incentivador e multiplicador de uma postura inclusiva, democrática, solidária, crítica, participativa e criativa, de maneira que a música possa ser compreendida como uma atividade fundamental para o desenvolvimento do ser humano em todas as suas dimensões (UFCA, 2014, p. 11).

No tópico seguinte traremos um panorama dos estudos relacionados à formação do músico educador e o estado atual das pesquisas realizadas no âmbito estadual e nacional nos últimos anos no programa de Pós-Graduação da FACED (Faculdade de Educação da UFC) em seu eixo ensino de música.