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MAGISTÉRIO: ESCOLHA, VOCAÇÃO OU FATALIDADE?

2 A PROFESSORA ENQUANTO MULHER TRABALHADORA

2.3 MAGISTÉRIO: ESCOLHA, VOCAÇÃO OU FATALIDADE?

Clara, Mônica e Joana: mulheres que, por relações diferentes, entraram no magistério. Até que ponto se fundamenta a ideia de escolha da profissão? E de vocação? E de fatalidade? Quais são os fatores que levam as mulheres a escolher a profissão docente? Trata-se de algo mais fácil? Trata-se de uma forma de ascensão social dentro de um contexto de situação econômica precária? Trata-se de uma forma de conciliar uma vida profissional com tempo para os filhos (finais de semana em casa e férias mais estendidas)?

A questão é que entre as três professoras é possível perceber diferentes causalidades que as levam à docência. Clara foi a única filha com Ensino Superior em uma família de uma cidadezinha pequena e com poucas oportunidades para mulheres. Fez isso contra a vontade do pai. Viu no magistério não só a profissão que gostava e pela qual luta até hoje, mas também uma possibilidade de sair do padrão esperado para uma mulher em seu meio. Mônica, por sua vez, se declara uma apaixonada pela profissão e afirma que sempre teve vocação para ser professora, mas, ao mesmo tempo, gosta é de ser professora de biologia (lembrando que não levou adiante o curso de Pedagogia), tendo um interesse especial pela parte de genética desde a faculdade. Já a Joana, por sua vez, afirma que não queria ser professora. Pelo contrário, seu sonho era ser repórter, mas, ao ter se tornado mãe ainda jovem, viu no curso de geografia uma forma mais fácil de entrar na universidade, e na profissão de professora uma forma de conseguir sustentar o filho e estar presente em sua criação.

Conversando com a minha mãe, naquela entrevista exploratória no fim de 2014, comecei a questionando sobre o porquê de ter se tornado professora, indagando se tinha alguma influência familiar (pois eu sabia que a sua irmã mais velha havia se formado como professora também), e ela me respondeu o seguinte:

Gisella – [...] Como eu te falei antes, naquela época [década de 70] tu [a mulher] não tinha muitas opções de trabalho e, daí, [eu] tinha umas quantas primas que tinham sido e que eram professoras. Era a primeira coisa que a mulher deslanchou para trabalho. Eu acho que tipo, isso... Sempre como eu gostava de “exatas” eu fui pra matemática. [...] E por causa da Angela [irmã mais velha] que já fazia faculdade [de matemática] também. Mas, assim, eu nunca quis ser professora de fundamental [Anos Iniciais]. Eu saí da escola, tinha 17 alunos [na turma], só eu não queria [fazer o curso de magistério]. Fui fazer, então, o científico e as outras [meninas] todas foram para o normal. Eu não queria dar aula para criança pequena, eu não tenho essa habilidade.

Eu – Mas tu queria dar aula?

Gisella – Sim, era o que eu tava pensando [na época]. Eu queria dar aula de matemática. Era isso que eu queria. Hoje em dia, tipo assim, com a facilidade que eu tenho pra matemática, não sei se eu não faria uma Ciência da Computação, sabe? Na época, por causa do tipo de sociedade que a gente vivia, isso nem se pensava muito em alguém [do sexo feminino] fazer engenharia. No caso, uma Gisella da vida, lá de

Cerro Branco [cidade interiorana, de pequeno porte, onde nasceu], pensar em fazer uma Engenharia Civil [era algo improvável]. E poderia ter sido, sabe, em função... dentro da área que eu gosto. E nem se cogitava isso, não se pensava, sabe? Então, como eu queria trabalhar, eu queria me sustentar, viver minha vida sem depender de alguém, foi isso. Mas não que eu não goste. Eu gosto muito. Tu sabe, eu sempre gostei bastante de dar aula. Eu me encontrei, foi bom [...]

Após ter realizado o trabalho de campo com as professoras e ter ouvido novamente o áudio da conversa que tive com a minha mãe, me perguntei o seguinte sobre Clara, Mônica e Joana: se elas não tivessem sido professoras, o que seriam? Se Clara não tivesse conseguido o apoio de sua mãe para continuar estudando, ainda quando era criança, o que teria acontecido, com o que estaria trabalhando? Com todo o seu gosto por biologia e genética (assim como minha mãe, por matemática), se na sua época Mônica tivesse a possibilidade de ser uma geneticista, tal qual hoje sua filha pode planejar ser uma neurocirurgiã, será que teria seguido para o magistério? Se Joana não tivesse ficado grávida sem planejar quando era mais jovem, será que teria sido repórter, como afirma que gostaria?

É impossível discutir sobre o que não aconteceu... Opa. Pera aí. Será? A partir das provocações que propus acima, tanto o que aconteceu, como o que não aconteceu ou poderia ter acontecido nos possibilitam, sim, uma boa discussão.

A questão, de maneira direta e objetiva, é que a divisão sexual do trabalho, em conjunto com a educação diferenciada de gênero, a cada época de forma diferente, coloca possibilidades e limites para a mulher no mercado de trabalho, de modo que o ingresso das professoras no magistério não se explica tão somente por razões individuais.39 À época de sua formação, cada uma das três professoras buscou fazer a melhor escolha para trabalhar e viver enquanto mulher dentro de seu contexto. Assim, mesmo para as que afirmam serem apaixonadas pela profissão (o que eu não desacredito), ser professora se construiu enquanto uma escolha dentro de um leque de possibilidades e limites existentes para a inserção da mulher no mundo do trabalho à sua época. É importante lembrar que tanto Clara, como Mônica e Joana, antes de se tornarem professoras, trabalharam em lojas, como atendentes, em setores de enquadramento funcional tipicamente feminino (principalmente às suas épocas). Portanto, antes de ser uma escolha, uma vocação ou uma fatalidade, o fato de serem professoras foi algo que se desenhou dentro da estrutura social em que estavam inseridas.

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Acredito que temos vivenciado progressos, em mudanças sentidas principalmente por mulheres de classe média para cima, com possibilidades de inserção em campos de atuação que antes eram restritos ao universo masculino, mas nada que tenha transformado de maneira gritante o essencial na lógica da divisão sexual do trabalho, que são os princípios de separação e hierarquização entre os sexos. Assim, ainda existem trabalhos de homem e trabalhos de mulher, como um trabalho de homem ainda é mais valorizado do que um trabalho de mulher.

Certo dia, em metade de 2016, em uma de nossas conversas de bar, inconformada com a falta de engajamento político por parte de muitas de suas colegas, após um intenso e prolongado processo de greve, que foi “murchando” aos poucos e terminou sem nenhuma conquista para a categoria, Clara fez o seguinte desabafo: “É que a maioria das professoras não escolhe a profissão por vocação, porque gostam, mas porque é mais fácil de conciliar com a profissão do marido, porque dá pra trabalhar meio turno e é mais fácil de cuidar das crianças e ser mãe”. Devo admitir que eu concordo com a visão da professora e que, em muitos casos, isso é uma verdade. Contudo, é nada mais, nada menos do que uma estratégia adotada para articular as obrigações de esposa, dona de casa e mãe, dentro de possibilidades e limites postos pela divisão sexual do trabalho vigente, tendo em vista a naturalização das obrigações de cuidado da casa e da família como atividades femininas. Não quero dizer que a situação apresentada pela professora não é um problema. Pelo contrário, ela é. De qualquer forma, é um problema que explicita os conflitos vivenciados pela mulher trabalhadora na articulação entre profissão e casa/família. Mesmo a professora que escolhe a profissão por julgar ser algo mais fácil de conciliar com as demandas de esposa e de mãe é uma expressão do que é ser professora e do que é ser mulher trabalhadora na atualidade, mesmo que isso implique em uma menor dedicação à profissão e às causas da categoria.