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4 FAMÍLIA, MATERNIDADE E CONJUGALIDADE

4.1 O IDEAL DA FAMÍLIA MODERNA

O advento da modernidade, junto das mais variadas transformações sociais e dos diferentes padrões de relações que fez florescer, trouxe consigo um modelo específico de família – a família moderna ocidental. Essa acabou se sedimentando e prevalecendo de tal maneira no imaginário social que hoje não apenas figura no senso comum como um ideal a ser perseguido, mas também passou a ser percebido, por nossa sociedade, enquanto uma forma natural e universal de organização, tendo a sua materialização, sobretudo, no estereótipo da família nuclear – caracterizada pela tríade isolada e autocentrada de pai, mãe e filhos, vivendo de forma independente em uma residência monofamiliar (cf. DUARTE, 1995, p. 29 e 32).

Como nos explica Claudia Fonseca,

[...] o ideal da família “moderna” que surgiu em torno do século XVII é caracterizado pelos seguintes elementos: a) a livre escolha do cônjuge e a incorporação do amor romântico ao laço conjugal; b) o aconchego da unidade doméstica (“lar doce lar”) que se torna um refúgio contra as pressões do mundo público; e, finalmente, c) a importância central dos filhos e da mãe enquanto principal socializadora deles. [...] A maioria dos estudiosos da história social tratam- no [...] como a consequência social de um determinado contexto histórico que implica, entre outras coisas, um nível mínimo de segurança econômica, um Estado central capaz de controlar e disciplinar seus sujeitos, e a proeminência da instituição escolar. (FONSECA, 1995a, p. 72).

Tal contextualização, como salienta Fonseca, “demonstra que este ideal familiar não é nem natural, nem universal” (FONSECA, 1995a, p. 72), contudo, como nos adverte o historiador Eric Hobsbawm, vivemos em um período marcado pela “destruição do passado”, onde é comum ver a opinião pública atrelada a uma visão de um “presente contínuo”, ocasionada por uma perda de relação com o passado público (HOBSBAWM, 1995, p. 13), o que faz com que a nossa capacidade de análise crítica se torne muito reduzida, de modo que frequentemente tomamos elementos do mundo à nossa volta, assim como as instituições sociais que conhecemos – como a família –, como se fossem totalidades atemporais, que sempre existiram e existirão, tal qual a imagem que temos delas no momento atual. Quando não é isso, é comum nos contentarmos com explicações históricas reducionistas que tomam os modelos de organização social que se estabelecem como dominantes (não necessariamente do

ponto de vista de sua existência factual, mas, principalmente, de seu apelo ideológico e de sua força para condensar a nossa compreensão sobre a realidade), enquanto consequências necessárias de uma marcha evolutiva linear e inequívoca. A partir de tais posturas, não é de se espantar que o ideal da família moderna seja unanime no senso comum, enquanto um modelo explicativo da realidade, ainda que a família seja um fenômeno multifacetado e totalmente recente na história da humanidade.

Por outro lado, dentro dos círculos acadêmicos existem diferentes pesquisadores que buscam dessacralizar a visão idealizada existente sobre a família, trabalhando para demarcar com maior acuidade os vínculos históricos que originam a noção que temos sobre essa instituição, assim como para demonstrar as específicas e diferentes formas que ela toma em contextos sociais singulares, como veremos adiante.

Em confluência com a perspectiva trazida por Claudia Fonseca, Luiz Fernando Dias Duarte, explica que a conformação do ideal de família que se estabelece no ocidente moderno está vinculada à afirmação da individualidade enquanto valor norteador de nossa sociedade (DUARTE, 1995). De modo a corroborar o seu argumento, o autor alude um trecho do texto A

política da saúde no século XVIII (1979), onde Michel Foucault disserta sobre como a política

de saúde que se desenvolve no século XVIII – com preocupações específicas sobre a infância e a gerência familiar da vida infantil para a promoção do indivíduo adulto – acarreta em uma reestruturação da família ocidental. No trecho recortado por Duarte (1995), Foucault (1979) afirma que a partir do século XVIII,

A família não deve ser mais apenas uma teia de relações que se inscreve em um estatuto social, em um sistema de parentesco, em um mecanismo de transmissão de bens. Deve-se tornar um meio físico denso, saturado, permanente, contínuo, que envolva, mantenha e favoreça o corpo da criança. [...] O que acarreta também uma certa inversão de eixo: o laço conjugal não serve mais apenas (nem mesmo talvez em primeiro lugar) para estabelecer a junção entre duas ascendências, mas para organizar o que servirá de matriz para o indivíduo adulto. (FOUCAULT, 1979, p.199 apud DUARTE, 1995, p. 28-29).

O trecho destacado chama a atenção para uma ressignificação do laço conjugal, bem como para uma mudança no entendimento da “função social da família” (DUARTE, 1995, p. 29), a qual, no mundo moderno, passa a ser menos associada às noções levistraussianas de “aliança” e “reciprocidade” entre grupos consanguíneos distintos que, através do casamento de duas pessoas, estreitam os seus laços, e tende a estar centrada cada vez mais no casal e na promoção dos filhos. Assim, a ascensão da família moderna promove um conflito e uma ruptura com uma concepção de família onde a consanguinidade teria precedência sobre a

conjugalidade. Em outras palavras, com o ideal de família moderna surge uma noção de família mais restrita e unitária, onde, a partir do casamento, se configurariam novas unidades familiares, as quais estariam apartadas da parentela. Conforme explica Duarte (1995), este efeito de “fragmentação” se apresenta enquanto uma das “características sóciomórficas” da individualização nas sociedades modernas, tendo em vista uma “redução das unidades sociais à sua forma ‘indivisível’, fazendo com que a própria ‘família nuclear’ possa corresponder a uma espécie de Indivíduo (indiviso) coletivo” (DUARTE, 1995, p. 32).

Duarte ainda acrescenta que

Uma das estratégias de “higienização” da nova família incidia exatamente sobre todas as aderências consideradas perversas, perturbadoras da “paz doméstica”, e isso incluía a residência monofamiliar perseguida pelos planejadores urbanos e imposta paulatinamente às classes médias e aos trabalhadores de indústria. (DUARTE, 1995, p. 32).

A preocupação com uma organização espacial baseada em residências monofamiliares está diretamente relacionada à afirmação do núcleo familiar, a partir de sua simbolização em uma estrutura física que o envolva e o separe do mundo exterior, ou seja, uma unidade no espaço, onde o casal e seus filhos possam viver sem a presença e a interferência de demais pessoas. Assim, dentro do ideal da família moderna, a casa não apenas representa um espaço de habitação, mas, sobretudo, passa a ser percebida enquanto lugar sagrado da família, como um elemento de afirmação da sua unidade, a partir do qual se estabelece uma separação estrita entre o privado e o público. Podemos notar a eficácia de internalização no imaginário social da importância desse espaço para a identidade familiar em expressões populares correntes, como “lar, doce lar” – onde é frisada a singularidade da casa da família enquanto um espaço único de segurança e aconchego – ou “quem casa quer casa” – enunciado que lembra que a união conjugal pressupõe a saída da casa dos pais e o estabelecimento dos cônjuges em um novo espaço físico, constituindo um novo grupo doméstico e a sua própria família.

E a mulher, como fica nessa situação? Quais as consequências da forma de organização da família moderna e da individualização para a mulher trabalhadora? A estruturação da família moderna no núcleo conjugal pressupõe também uma forma de organização da vida cotidiana baseada em uma lógica de hierarquia familiar e “complementaridade de papéis entre os sexos” (HIRATA; KERGOAT, 2007, p. 603), onde o homem, compreendido como “provedor” e chefe de família, seria responsável pela manutenção econômica do grupo doméstico e pelas principais tomadas de decisões no núcleo familiar, enquanto a mulher, percebida como mãe-educadora dos futuros homens da nação

(COSTA, 1983) e dona de casa, ficaria encarregada da criação das crianças, do cuidado da família e das tarefas domésticas. Dentro dessa lógica, as mulheres seriam percebidas como figuras coadjuvantes ou, pelo menos, com pouca autonomia em relação aos homens e estariam destinadas às atribuições do universo doméstico, sendo o trabalho externo ao lar não considerado como algo propício para elas, estando a sua realização condicionada à permissão do marido e ao exercício de funções que não prejudicassem o desempenho das “obrigações” de mãe, esposa e dona de casa, bem como à baixa valorização salarial. Portanto, ao instituir uma separação estrita entre o ambiente da casa e o mundo exterior, o modelo da família conjugal moderna também pressupõe a identificação da mulher com o espaço doméstico e do homem com a esfera pública, possibilitando ao universo masculino maiores instrumentos de controle sobre o sexo feminino. Assim, o ordenamento das relações na família conjugal moderna é totalmente indissociável da lógica de divisão sexual do trabalho que se estabelece no mundo moderno, a qual é baseada, como já vimos, em dois princípios organizadores: “o princípio de separação (existem trabalhos de homens e trabalhos de mulheres) e o princípio hierárquico (um trabalho de homem ‘vale’ mais que um trabalho de mulher)” (HIRATA; KERGOAT, 2007, p. 599).

De toda forma, como alertado por Duarte (1995, p. 36), o imperativo hierárquico presente no ideal da família moderna entra em conflito com o projeto individualizante com o qual é combinado, tendo em vista que a penetração cultural da ideologia individualista, somada à sua assunção por parte do universo feminino, às modificações no mercado de trabalho, à paulatina adaptação das instituições à igualdade formal regularmente prevista nas ordenações jurídicas e ao fortalecimento do feminismo, faz com que o mundo moderno seja palco de fortes transformações nas relações sociais entre os sexos, com a mulher alcançando maior autonomia individual, deixando de ser vista como dependente da figura masculina e, paulatinamente, conseguindo maior participação no espaço público e no mercado de trabalho. Estas transformações vão impactar a organização doméstica da família conjugal moderna, porém, sem acarretar em mudanças significativas na lógica estrutural da divisão sexual do trabalho.

Como nos mostram Helena Hirata e Danièle Kergoat (2007, p. 603-604), em lugar da tradicional divisão de tarefas – em que a atuação da mulher se limitaria exclusivamente à esfera doméstica, enquanto o homem se ocuparia da manutenção econômica da família – vemos surgir, no último século, diferentes modelos que se propõem enquanto soluções para uma gestão mais equânime dos encargos profissionais, domésticos e familiares entre homens e mulheres em contextos em que a participação feminina no mercado de trabalho e na

manutenção da renda familiar é cada vez maior. Porém, como é possível perceber a partir da abordagem das autoras, tais modelos acabam não passando de embalagens mais softs para apresentar dinâmicas que continuam a prolongar a ideia de subordinação feminina ao lar e à família presente no ideal da família conjugal moderna.

Um deles é o “modelo de conciliação”, a partir do qual se sugere uma recomposição e uma nova divisão de papéis, que beneficiaria tanto homens, como mulheres, visando articular as atividades domésticas com a vida profissional. Porém, como ressaltado por Hirata e Kergoat (2007), entre modelo e realidade há uma grande distância, sendo que nas práticas familiares cotidianas fica quase que exclusivamente por conta das mulheres o ato de articular a vida profissional com os encargos da vida familiar. Outro modelo proposto é representado pelo “paradigma da parceria”, o qual, ao invés de sugerir uma nova divisão de papéis entre os sexos, presume a igualdade de status sociais entre homens e mulheres, acreditando, assim, no desenvolvimento de práticas igualitárias de divisão de tarefas domésticas entre o casal. De qualquer forma, tal qual no primeiro modelo, trata-se de algo que ainda não é verificado na realidade de forma recorrente. Por fim, as autoras nos apresentam o “modelo da delegação”, que estaria substituindo ou se sobrepondo ao “modelo da conciliação”, tendo como fundamento a transferência do trabalho doméstico a outras mulheres (HIRATA; KERGOAT, 2007, p. 603-604), seja por meio da contratação de mão-de-obra feminina para realizar tarefas dentro de casa ou pela externalização do trabalho doméstico a partir do acesso a serviços e produtos fornecidos por estabelecimentos comerciais ou públicos – como creches, lavanderias, restaurantes etc. – que terceirizam as atividades reprodutivas, sobretudo a partir do emprego de mão-de-obra feminina.

Como explicam Hirata e Kergoat (2007), a externalização do trabalho doméstico a mulheres em condições precárias aparece como uma forma de apaziguamento das tensões nos casais burgueses, possibilitando que as esposas possam investir em suas carreiras sem ter que arcar com todo o peso das atribuições da vida familiar, assim, gerando a falsa impressão de uma vivência mais igualitária. Uma atenuação de tensões que acaba sendo acompanhada de uma intensificação de precarização para as mulheres dos setores populares (HIRATA; KERGOAT, 2007, p. 601-602), ou seja, tudo muda para algumas mulheres, mas nada muda para a coletividade, pois o trabalho doméstico perpetua-se como uma responsabilidade feminina, através de uma dupla exploração: de gênero e de classe.