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PENSANDO OS ARRANJOS FAMILIARES DE CLARA, MÔNICA E JOANA

4 FAMÍLIA, MATERNIDADE E CONJUGALIDADE

4.3 PENSANDO OS ARRANJOS FAMILIARES DE CLARA, MÔNICA E JOANA

Bem como o modelo da família conjugal moderna, as abordagens alternativas recém- apresentadas propõem modelos interpretativos sobre a organização familiar na sociedade brasileira que, como destacado por Claudia Fonseca (1995a, p. 76), são “criações abstratas” cunhadas para ajudar a dar sentido aos fenômenos sociais. Assim, por mais que tenham lastro na realidade social, apresentam-se como tipos ideais (WEBER, 1979) que servem como meios – e não como fins – para operacionalizar o trabalho compreensivo do pesquisador. De tal forma, pretendo aqui utilizar desses constructos como pontos de referência para propor algumas análises sobre os arranjos familiares das professoras acompanhadas neste estudo.

Ainda que os arranjos familiares de Clara, Mônica e Joana apresentem disposições e dinâmicas bem particulares e mesmo que nenhum deles chegue a ser um exemplo de reprodução fiel do modelo da família moderna, é interessante perceber o quanto esse modelo perpassa os seus projetos de família, confirmando a tese que aponta para o seu prevalecimento enquanto um ideal dominante que baliza as práticas sociais.

No caso de Clara, ainda que em seu discurso a professora se oponha à família tradicional (principalmente no que diz respeito à hierarquia entre homem e mulher), é possível perceber que, pelo formato de vida que tem com o seu marido, Francisco, ela é quem mais se aproxima do modelo da família conjugal moderna entre as três professoras. A organização familiar de Clara e Francisco é marcada pela ênfase no laço conjugal, bem como pela independência econômica do casal e pela individualização do grupo doméstico, havendo um afastamento de ambos os lados em relação à parentela, de modo que a vida dos dois se fundamenta justamente na constituição de um núcleo familiar emancipado da rede de consanguinidade, sendo todas essas características exemplares do modelo tradicional da família moderna. O único ponto que faz com que a família de Clara não se apresente enquanto

um exemplo característico desse modelo é a ausência de filhos. Contudo, é importante ressalvar que ter filhos era algo desejado e planejado pelo casal, mas que não pode ser realizado em função de problemas de saúde da professora, fazendo com que eles acabassem se adaptando a uma dinâmica familiar a dois, onde acabou realçando o aspecto do amor romântico.

No que diz respeito à organização familiar de Mônica, vemos uma situação que pode ser tomada como quase oposta à situação de Clara: uma família que, em seu princípio, correspondia à imagem do modelo nuclear – na tradicional formatação pai, mãe e filha – e que com o falecimento do marido da professora teve que se rearticular. Quando da união conjugal, Mônica constituiu com o seu marido um grupo doméstico próprio, porém, sem que esse tenha deixado de estar fortemente vinculado à rede de parentesco e de vizinhança de origem da professora, com o casal até mesmo construindo a sua casa no terreno em que já moravam os pais da professora, desfrutando de uma vida cotidiana em relação orgânica com os mesmos, assim como com a vizinhança, em uma dinâmica que já fazia parte da vida familiar de Mônica, já que ela se criou no bairro. Vale lembrar que, ao falar sobre as organizações familiares na periferia, Sarti (1994) afirma que os laços cultivados com a rede de vizinhança ao longo de gerações são tão estreitos que acabam se assemelhando aos da rede de consanguinidade (SARTI, 1994, p. 163-164).

A organização familiar de Mônica, portanto, caminha no mesmo sentido da dinâmica notada nas classes populares por Cynthia Sarti (2015), onde,

Ainda que em nível ideal o projeto de casar venha junto com o de ter uma casa, com o núcleo independente [onde do grupo doméstico reproduz a imagem do modelo de família conjugal], os vínculos com a rede familiar mais ampla não se desfazem com o casamento, pelas obrigações que continuam existindo em relação aos familiares [...] (SARTI, 2015, p. 39).

O que houve com o falecimento de Pedro (marido de Mônica) foi a dissolução da imagem da família conjugal que a tríade pai-mãe-filha representava, acompanhada de uma rearticulação da rede de solidariedade mútua já existente, no intuito de suprir as lacunas das figuras de marido e pai.

A presença de diferentes pessoas auxiliando a professora no cuidado de sua filha – como vimos pela constante presença do avô e de diferentes mulheres da rede de consanguinidade materna na vida de Mônica e Aurora – demonstra uma coletivização das responsabilidades pelas crianças por parte da rede de sociabilidade em que a família está

envolvida, tal qual observado por Claudia Fonseca (1999) e Cynthia Sarti (2015) em organizações familiares em setores populares.

A professora Joana, por sua vez, se defrontou em sua juventude com a difícil experiência de ser mãe solteira, vindo mais tarde a desenvolver um relacionamento estável, a partir do qual teve outro filho. É interessante chamar a atenção de que a sua busca por “achar alguém que pudesse ser [seu] companheiro e que fosse bom pro [seu] filho”, pode ser percebida como um reflexo da importância atribuída à relação do casal e ao objetivo de socialização dos filhos no ideal de família moderna, sendo, dessa forma, a sua busca por um companheiro também uma forma de tentar se encaixar nos parâmetros pressupostos por esse ideal ou, ao menos, de se aproximar deles. Contudo, ainda que exista a valorização do laço conjugal, a organização familiar de Joana está totalmente ancorada na manutenção de laços estreitos de solidariedade com a rede de parentesco materna, tanto pela importância de sua mãe – Dona Lis – na criação dos netos e na manutenção econômica do grupo domestico, como pelo prolongamento dessa relação na proximidade de Joana com a sua irmã e o seu irmão.

A importância de Dona Lis para a sua filha e os seus netos – assim como do Vô Adão para Mônica e Aurora – aparece como uma demonstração do protagonismo assumido pelos avós em determinados arranjos familiares, nos quais desempenham não apenas um papel lúdico no acompanhamento dos netos, mas também são reivindicados a auxiliar no suprimento das necessidades do grupo familiar, assumindo, em muitos casos, o papel de provedores e não de dependentes, como nos chama a atenção Maria Amalia Faller Vitale (2015). Como ressalta a autora, em decorrência das políticas sociais deficitárias em nosso país, acompanhadas de diferentes formas de vulnerabilidade que atingem as famílias, acaba se conformando uma maior interdependência geracional em prol da manutenção do grupo. Em muitos casos, avós passam a morar junto de seus filhos – ou abrigam filhos e netos em suas residências –, assumindo compromissos tanto com a renda familiar, como com o cuidado e a socialização dos netos, havendo com a coabitação uma frequência de contatos que cria maior proximidade entre as gerações, bem como proporciona relações privilegiadas entre avós e netos (VITALE, 2015, p. 96).

Vitale (2015) também nos alerta de que, quando ocorrem separações conjugais ou as famílias estão na condição de monoparentalidade, os avós frequentemente são convocados a assumir – temporariamente ou não – parte das responsabilidades das figuras parentais. Algo que pode fazer com que se crie, entre avós e pais, a formação de um par educacional ou provedor mediado, por suas condições culturais e socioeconômicas (VITALE, 2015, p. 103).

Algo que coincide plenamente com a situação de Joana, onde a sua mãe, Dona Lis, desempenha um papel central na socialização do primeiro neto, assim como figurando enquanto principal provedora econômica do grupo familiar durante muito tempo, sendo também a base de sustentação afetiva não apenas para os netos, mas também para a filha.

Um aspecto importante que pude perceber a partir dos diferentes arranjos familiares das três professoras é que, ao que parece, a criação de filhos se apresenta como um aspecto que fomenta a manutenção de laços de consanguinidade e afinidade, pois, para que seja possível que o homem e a mulher trabalhem fora, frequentemente avós e outros membros da parentela e/ou da vizinhança – sobretudo mulheres – são acionados para contribuir no cuidado das crianças, dada a preferência e confiança a familiares e amigos como cuidadores em relação à contratação de pessoas externas52.

Tendo isso como pressuposto, podemos inferir que, talvez, se Clara e Francisco tivessem filhos, os seus vínculos com a rede de parentesco seria mais estreita. Sobre isso, cabe parafrasear uma reflexão trazida por Claudia Fonseca (1995a, p. 83-84) a respeito do estudo de Tânia Salem (1989) sobre o “casal igualitário”. Fonseca (1995a) explica que neste estudo sobre jovens casais que almejam, entre outros ideais, o ideal de igualdade total entre os sexos, Salem (1989) percebeu que, antes de terem filhos, os casais viviam de forma relativamente independente dos pais, mantendo-se uma relativa “igualdade” até a primeira gravidez. No entanto, o nascimento de um filho, dentre outros aspectos, acentua a desigualdade de papéis entre os sexos, assim como acarreta em uma volta da família extensa, passando os parentes – especialmente do lado materno – a estarem mais inseridos na organização familiar, através de atividades ligadas ao cuidado do nenê (FONSECA, 1995a, p. 83-84).

Mesmo nas conformações diversas dos arranjos familiares de Clara, Mônica e Joana, é possível perceber que o ideal de família conjugal moderna continua aparecendo enquanto um padrão de referência que guia imaginários e práticas, assim, confirmando o pressuposto defendido por Luis Fernando Dias Duarte, de que, ao mesmo tempo em que o modelo da família moderna adaptou-se aos numerosos contextos em que se atualiza a cultura ocidental moderna, também influencia outras tantas formas de organização familiar que ela baliza sem necessariamente conformar (DUARTE, 1995, p. 32). De qualquer forma, é visível que, enquanto no caso de Clara existe um formato mais individualizado, autocentrado e independente, nos casos de Mônica e Joana o que se observar são arranjos familiares que

52

Ver mais sobre esse assunto a discussão feita por Cristina Veja Solis sobre familização e externalização do cuidado, no livro Culturas del cuidado en transición. espacios, sujetos e imaginarios en una sociedad de migración (SOLIS, 2009).

possuem os seus lastros em redes de relações que extrapolam a nuclearização conjugal, assumindo uma forma de organização que se compara a que é identificada por Luiz Fernando Dias Duarte, Claudia Fonseca e Cynthia Sarti às camadas populares. Como no caso das professoras estamos falando de famílias de classe média, ainda que possamos pensar na terminologia classe média-baixa, acredito que é possível afirmar que as características de organização familiar em rede extrapolam as classes populares, estando vinculadas não apenas às classes populares e às situações de precariedade econômica, ainda que a fragilidade econômica seja um fator central para a articulação de redes de ajudas mútuas. É inegável que situações de maior poder econômico são favoráveis à individualização familiar no núcleo conjugal, assim como a vulnerabilidade econômica acarreta maior dependência de redes de solidariedade. De toda forma, podemos pensar em uma possível cultura de solidariedade familiar na sociedade brasileira que tende a perpassar os diferentes estratos econômicos (ainda que sendo mais reivindicada nas camadas populares), a qual pode estar relacionada tanto ao formato extenso de família que marcou a colonização do Brasil – incorporando parentes, afilhados e agregados à organização familiar –, como também pode representar existência de diferentes formas de vulnerabilidade que atingem as famílias, das quais nenhum estrato social está isento, como é o caso do abandono paterno, que registra altos índices em nosso país, sendo um fenômeno que, na maioria dos casos, acarreta na valorização dos laços de solidariedade entre parentes próximos, principalmente entre as mulheres da rede de consaguinidade. Algo que caracteriza bem as situações de Mônica e Joana, assim como nos demonstra que não só a “circulação de crianças” representa uma forma de manutenção de vínculos de solidariedade na organização familiar, como observado por Claudia Fonseca (1999), mas, antes disso, que a própria responsabilização coletiva pelas crianças, como abordada no parágrafo acima, trata-se de um mecanismo agregador na sociedade brasileira. A nossa tradição de cuidado familista, somada à precariedade de condições do Estado em prover cuidado infantil, faz com que a presença de filhos fortaleça a rede de solidariedade familiar, não apenas nos setores populares, como também nas camadas médias.

Como vemos, existem diferentes fatores dentro da trajetória familiar – presença de filhos, presença paterna e materna, apoio de avós, parentes e amigos, situação financeira, etc. – que irão influenciar na organização de cada grupo. Assim, nos dois subtítulos a seguir, discuto um pouco mais sobre as questões da conjugalidade e da maternidade em suas presenças e/ou ausências dentro da organização familiar de cada uma das professoras.