• Nenhum resultado encontrado

Maiêutica na reflexão teológica da modernidade 137

 

Neste período a reflexão teológica já enfrentou vários processos críticos colocados pela nova mentalidade do mundo e sua racionalidade, incluindo sua ênfase científica, além da teologia evangélica também ter sido apresentada às teologias das religiões que, de certo modo, estabeleceram um novo ritmo nas reflexões teológicas com visões e compreensões diversas da divindade. Neste cenário moderno foi necessário considerar outros interlocutores, mesmo em temas que até então mantinham certa autonomia, como era o caso da teologia cristã.

Um bom exemplo de diálogo e também de críticas, foi Karl Barth, um dos mais importantes teólogos protestantes modernos que deu sua colaboração sobre o processo de releitura e construção teológica diante dos novos conhecimentos. Apesar do traço mais radical que apresenta ao negar qualquer possibilidade como meio auxiliar para alcançar o conhecimento teológico, Barth auxilia com objetividade a necessidade da Escritura como ponto de partida e fundamentação da experiência com Deus. Ao manter a centralidade da Escritura como ponto de partida, pode-se dizer que, mesmo em tese, Barth oferece suporte àquilo que Queiruga propõem sobre o processo “maiêutico”, partindo da revelação original fundante, sem negar a importância que este processo confere à história como elemento renovador e iluminador de novas possibilidades de compreensões. Ao colocar o fato da “compreensão” como uma necessidade diante da crise de sentido existencial detectado em seu tempo, ele oferece um caminho para uma nova retomada diante da situação que requer avançar “ em direção àquele ponto em que a palavra viva e o ato criativo vêm novamente à

tona”.331 No contexto dessa afirmação, podemos inferir que este avanço pode ser alcançado ao

se ter a Escritura (revelação) como ponto de partida para novos entendimentos e,

                                                                                                                         

330 - QUEIRUGA, Ibid., p.166. 331

consequentemente, novas respostas às demandas do mundo moderno e sua indefinição de um conteúdo suficiente para o sentido da vida.

Este fato colabora, mesmo como hipótese, para o esforço de se perceber o uso da “maiêutica histórica” na tradição teológica, pois ela afirma, como o próprio Barth, a valorização da situação, da história com elemento atualizador. Compreender a situações e as propostas que serão oferecidas é “compreender em Deus o sentido de nossa época, entrar portanto, na inquietação através de Deus, [...], significa dar à nossa época seu sentido em

Deus.”332 Nada mais maiêutico no sentido que Queiruga o apresenta, vindo de um dos

maiores críticos sobre o uso de qualquer outra forma para se alcançar o conhecimento de Deus que não fosse a própria revelação na Escritura, embora ele mesmo sinalize que a Escritura não pode esgotar a revelação sobre Deus. Tais constatações não somente reafirmam o processo da “maiêutica histórica” na teologia moderna, como também apresenta-a favorável ao princípio de que a renovação do sentido da revelação não pode ter como fundamento experiências autônomas em relação à Escritura. O próprio Barth esclarece melhor o assunto ao dizer que ,

...agora precisamos resguardar-nos contra a ilusão de que criticando, protestando, reformando, organizando, democratizando, socializando e revolucionando se poderia satisfazer o sentido do reino de Deus, por mais radicais e amplas que sejam essas medidas. Disso realmente não se trata por aqui. Nada de ingenuidade irrefreada neste éon, mas também nada de crítica desenfreada. A problemática à qual somos lançados por Deus não pode se transformar numa abstração, tampouco a ordem da criação na qual fomos por ele colocados. Mas, sim, uma deve ser compreendida através da outra, e ambas a partir de Deus. De outra forma nós apenas estaremos trocando um sabedoria do mundo por outra.333

Analogamente se propõe o processo da “maiêutica histórica” como categoria de reinterpretação e releitura da revelação. Além disso, a propósito de clareza em sua natureza e finalidade na releitura da igreja acrescentamos o seguinte:

                                                                                                                         

332 - Ibid., p. 30. 333

O que faz a maiêutica é explicar o caráter intrínseco – não heterônomo- do esforço da subjetividade humana por realizar-se autenticamente, reconhecendo e prolongando em si mesma a ação criadora de Deus. Pois o processo maiêutico, exatamente porque se apoia na ‘descoberta’ do que já se é a partir de Deus, não é algo estático, que remete a um passado perfeito ou deixe as coisas com estavam.334

Outro representante da teologia cristã que marca sua presença fundamental na reflexão moderna é Karl Rahner, importante teólogo católico é também proponente de uma teologia tradicional, mas fortalecida por um novo alento de vida e cultura moderna, que a coloca como referência para releituras teológicas em nossos dias. Sua colaboração para a afirmação do processo proposto pela “maiêutica histórica” vem de sua preocupação com a situação cultural e teológica em uma “sociedade secular e pluralista , na qual os enunciados da fé perderam sua objetividade, e no pluralismo das convicções e das mundividências, próprio de uma

sociedade aberta que torna mais difícil transmitir a verdade cristã.”335 A isso acrescenta-se

ainda como desafio aos discursos da fé “o aumento dos conhecimentos em todos os campos do saber”, “uma espécie de endurecimento e de incrustação dos conceitos teológicos que, permanecendo imutáveis ao longo do século, não correspondem mais à situação

completamente mudada da vida e da cultura do homem moderno.”336

Devido a esta situação, como o faz posteriormente Queiruga, Rahner propõe um método que envolve uma nova forma de compreender o processo de revelação e, consequentemente da teologia. Rahner define como “abordagem antropológica, que parta da experiência pessoal e se interrogue sobre a maneira como a verdade cristã corresponde a ela”. Este método também conhecido como antropológico- transcendental”, compreende a experiência do homem em duas fases distintas: um a priori e um a posteriori. A experiência humana dentro de seu mundo é visto como um conteúdo “a posteriori”, uma experiência categorial, diversificada, com múltiplas possibilidades de algo “a priori”, não adquirido, mas

“sempre dado com a existência humana”, uma experiência transcendental.337 Essa experiência

transcendental, consiste na busca do espírito humano pelo que lhe trás sentido e sustentabilidade existencial. Busca que exige um meio para se realizar sendo que “a transcendentalidade é a estrutura apriórica do espírito humano com abertura radical para a

                                                                                                                         

334

- QUEIRUGA, Ibid., p.125-126.

335 - RAHNER, Karl. Curso Fundamental da fé. São Paulo: Paulus, 2008, p.15-20, Cf. GIBELLINI, Rosino. A teologia do século XX. São

Paulo: Loyola, 1998, p.226.

336 - GIBELLINI, Ibid., p.226. 337

Transcendência e como condição de possibilidade da experiência em sua variedade

categorial”.338

Nesta experiência a priori e transcendental, o conceito de graça como “realidade sobrenatural indevida e gratuitamente dada como comunicação pessoal de Deus à sua

criatura”339, corresponde analogamente ao conceito de “revelação originária” e primeiríssima

em Queiruga, também vista como concedida para toda humanidade. O conceito de “experiência categorial” por sua vez tem sua contraparte no que Queiruga entende com “releitura” da revelação, que em Rahner é uma experiência categorial a posteriori de algo

comunicado a priori.340 O elemento “categorial” em Rahner, corresponde ao elemento

“maiêutico” em Queiruga. A compreensão da revelação, refletida, tematizada, onde o

contexto histórico tem papel importante, mas sempre “subtendido por um a priori”341

(Rahner), tem um ponto de partida, “algo que já é a partir de Deus” (Queiruga).342 Em síntese,

Queiruga afirma que “por pouco que se conheça seu pensamento, não será difícil compreender que a relação na qual funda a essência do processo revelador, a saber, a relação entre a revelação transcendental e a revelação categorial, constitui inegavelmente uma

estrutura maiêutica”.343

A maiêutica histórica, por “sua própria situação estrutural delimita o sentido preciso e

a função concreta do aspecto maiêutico”344, por seu reconhecimento do conteúdo a ser

compreendido como sendo algo já aí habitando o ser humano, como uma verdade mais íntima de toda pessoa em sua situação real. Algo similar ao que propôs Sócrates, mas sempre aberto a renovações e novos entendimentos. Juntamente com esse foco no já existente na intimidade de cada um em busca de realização, vem o aspecto histórico, que ao lidar com esse conteúdo já presente, o fará dentro da dinâmica da experiência humana.

Do que foi dito, o específico do pensamento de Rahner que colabora com o processo da maiêutica histórica proposto por Queiruga, é o acolhimento da concepção de eternidade de Deus mas ao mesmo tempo considera-lo aberto e se manifestando à realidade humana em um mundo evoluindo em todos os seus aspectos, incluindo a própria natureza humana. É um                                                                                                                          

338 - Ibid., p.227. 339 - Ibid., p.231. 340

- RAHNER, Ibid., p.210-212.

341 - QUEIRUGA, opus cit., p.127, Cf. RAHNER, opus cit., p.198. 342 - Ibid., p. 126.

343 - Ibid., p.131. 344

processo no qual tudo o que há torna-se participante de sua revelação, especialmente os processos que envolvem a própria natureza do ser humano, ou seja, “a revelação divina

acontece na realização humana”.345 Tal situação mostra a validade e coerência do uso da

maiêutica histórica para compreendê-la e nos remete a busca de entendimentos do modo dessa revelação desde seu acontecer originário, até as múltiplas formas de configurações que ela assume, especialmente em novas traduções e versões do texto bíblico deste os primeiros séculos da igreja cristã, até as versões e atualizações contemporâneas, que ocorrem com mais frequência entre os evangélicos.