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2.   Presença maiêutica na leitura da Escritura da Patrística à Reforma 130

2.1. Os Pais e a releitura 131

Neste período pode-se afirmar que a maioria dos grandes pensadores e intérpretes da Escritura procuraram fazê-lo considerando a importância da compreensão da revelação bíblica mediatizada por elementos que tinham a finalidade de conferir ao conteúdo revelado a possibilidade de ser lido, ou mesmo relido para a situação vigente. A fim de situar neste período o interesse de compreensão e releituras do texto pela igreja, um dos mais influentes filósofos, ou seja, Justino no segundo século depois de Cristo, que afirmou que Deus, para ser compreendido, utiliza de elementos comuns do dia a dia através dos quais ele comunica sua

revelação num procedimento que permite seu acesso às pessoas.317 Estes elementos

funcionariam como elementos iluminadores da compreensão.

Entre outros filósofos/teólogos que partilhavam o mesmo pensamento de Justino, estavam Orígenes (ca.185- ca.284) e Crisóstomos (ca.347- 470). Nenhum deles fez uso tão desafiador dessa categoria de acomodação como Crisóstomos. Uma de suas afirmações fundamentais é de que Deus mesmo se acomodou na humanidade por meio da encarnação de

Cristo para que pudesse ser compreendido.318 Essa afirmação aponta para a possibilidade de

equivalência entre a maiêutica e a acomodação de modo claro. De acordo com a proposta da maiêutica histórica, elementos não apenas linguísticos, mas também naturais e históricos, podem tornar-se iluminadores. Neste sentido a encarnação de Deus na natureza humana seja o fato que mais ilumina a compreensão de sua pessoa e sua obra. Por meio dela os cristãos têm a possibilidade de uma releitura da teologia em níveis inimagináveis em relação ao pensamento até então tido como válido, apesar das controvérsias ocorridas e discutidas nos concílios ecumênicos. Ela também se transforma no exemplo fundamental daquilo que a

                                                                                                                         

317 - CHADWICK, Henry. Early Christian thought and the classical tradition. Oxford: Clarendon P., 1966, p.92.

318 - Origen, Homily, 18.6: In BENIN, Stephen D. The footprint of God: divine accomodation in jewish and christian thought. Albany,NY:

proposta maiêutica tem para novas compreensões da revelação em contexto diferentes daqueles aos quais foi constituída.

Para acentuar a equivalência de elementos do processo de acomodação com a maiêutica histórica no período do Pais, faz-se também necessário observar os processos

estruturadores dos concilio ecumênicos,319 principalmente sobre as controvérsias

cristológicas. Ao se fazer uma leitura diacrônica, fica evidente que alguns elementos chave que serviam de bases para as argumentações, têm semelhança ao que Queiruga define como maiêutico. Lembramos que os seus elementos desencadeadores da iluminação eram normalmente uma intuição ou palavra de um profeta ou líder da comunidade que, ao ser dita, desencadeava as compreensões pessoais ou comunitárias da revelação a partir situação histórica dos ouvintes e de suas expectativas pessoais sobre a revelação constitutiva com a qual tiveram contato.

O que se evidencia nas argumentações conciliares está dentro dessa categoria, embora sejam conceitos em sua grande parte filosóficos que, ao serem considerados em relação aos fatos da revelação, abriam espaços para a crítica ou para a confirmação de afirmações sobre determinado objeto ou assunto. As controvérsias giram em torno da pessoa de Jesus, ou seja, se ele era igual a Deu, o Pai, ou era um humano com alguma divindade, se tinha ou não competência para perdoar, entre outras. Essas controvérsias levaram a liderança no período patrístico a uma série de discussões, e reflexões na tentativa de resolver essas questões. O que nos interessa neste momento acerca dessas discussões são os conceitos que utilizaram como meio para firmar ou negar as compreensões que foram propostas. São conceitos filosóficos propostos a partir dos quais novas entendimentos eram esperados. Para compreender melhor a relação entre a natureza de Jesus e a de Deus, conceitos como “homoousios” – mesma substancia; “logos”- fonte suprema, palavra, verbo; “dokeo” parecer ou aparentar. Todos foram utilizados como ponto de partida e como princípios maiêuticos que podiam esclarecer e

iluminar o conhecimento sobre a constituição da natureza de Jesus,320 por representarem e

situarem as reflexões teológicas da igreja num momento especifico de sua história.

                                                                                                                         

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- McGRATH, Alister E. Teologia Sistemática, história e filosófica. São Paulo: Shedd Publicações, 2005 p. 55-57. São conhecidos como concílios ecumênicos as assembléias gerais de todos os bispos, cujas decisões eram consideradas normativas para a igreja. O primeiro deles foi o de Niceia em 325 convocado por Constantino para tratar das questões cristológicas, e o quarto foi o de Calcedonia em 451, onde se confirmou as decisões tomadas no concilio de Niceia.

320

Com este procedimento a discussão conciliar procurou tornar a revelação compreensível a partir de informações presentes na reflexão mais atual de seu tempo. A filosofia grega serviu de ponto de partida para o encontro de um explicação teológica que agregasse à experiência pessoal e histórica da igreja um entendimento que desse conta das expectativas naquele momento. E esse processo, ao ser visto em sua continuidade histórica até o dias atuais, reafirma o quanto dele pode ser comparado ao que Queiruga propõe na maiêutica histórica para novas releituras da revelação. A utilização de conceitos e informações se repete ao longo da história para esclarecer antigas concepções epistemológicas permitindo que novas luzes sejam adicionadas e distancias sejam diminuídas entre os diversos campos do conhecimento. Incluímos estes elementos com maiêuticos pela forma como eles desencadeiam novas compreensões por adicionar outras formulações ao objeto da compreensão em questão. Consideramos que não apenas fenômenos físicos, mas também conteúdos verbais e ideias são próprios para essa finalidade como foram as expressões oferecidas pela filosofia, as quais já nos referimos.