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A posição de João Calvino 134

2.   Presença maiêutica na leitura da Escritura da Patrística à Reforma 130

2.3. A posição de João Calvino 134

De valor fundamental para a sugestão da existência do processo maiêutico histórico na história da reflexão teológica, são as reflexões de João Calvino (1509-1564). No mesmo sentido que os filósofos e teólogos, ele também se preocupou com a interpretação dos textos bíblicos tendo em vista a sua compreensão adequada dentro do contexto histórico, não apenas

                                                                                                                         

322

- Ibid., Livro XII, 31, 42.

323 - TERRY, Milton S. Biblical hermeneutics. Grand Rapids-Michigan: Zondervan Publishing House, 1983, p.163-164. Segundo Terry,

haviam dois métodos principais: Alegórico e místico. Porém, Clemente de Alexandria dividia a interpretação da lei em quatro modos diferentes: o natural, o místico, o moral e o profético. Para Orígenes o ser humano era constituído em três partes e por isso deveria haver três formas de interpretar do texto: literal (para o corpo), psíquico ou moral (para a alma), e espiritual (para o espírito).

para a experiência pessoal, como também para afirmação da revelação como palavra de Deus

e “fundamento da teologia evangélica”.324

Em relação à sua hermenêutica, um pensamento que coopera com a pesquisa que fazemos, é seu conceito de acomodação. Embora seja comum o fato de que a origem desse conceito deriva da teoria retórica grega e acolhida por filósofos e teólogos anteriores, como

Orígenes325, o uso mais desenvolvido aplicado à compreensão do texto bíblico surge mediante

a reflexão que Calvino faz sobre o sentido da Escritura para os contextos históricos e mentalidades críticas nestes ambientes. Para Calvino, Deus, ao se revelar, se acomodou ao conteúdo da sua revelação em formas cognitivas próprias do ser humano, ou seja, “acomodação possui aqui o sentido de ‘adequar-se ou adaptar-se, visando atender às

necessidades da situação e à capacidade humana de compreendê-la”.326

É este conceito de acomodação que aproxima a categoria de Calvino à maiêutica histórica de Queiruga. Em que sentido isso acontece? No processo mesmo do conteúdo da revelação assumir tanto expressões conceituais como manifestações fenomenológicas

naturais327 que servem de formas para sua compreensão. Enquanto estes conceitos e

fenômenos respondem à necessidade de sentido requerido pela revelação, eles se mantém. Porém, com o decorrer do tempo e devido ao desenvolvimento cultural e dos conhecimentos, muitas dessas formas de expressão do sentido da revelação são questionadas e não mais realizam a coerência devida ao sentido da revelação, exigindo mudanças.

Nesse momento uma atualização da compreensão da revelação é necessária para mantê-la coerente com seu propósito primordial, confirmado historicamente e pela experiência vivencial religiosa e cultural dos receptores. O processo se dá ao se acolher novas formas conceituais e fenomenológicas que permitem a releitura da revelação nesta nova situação. Um exemplo dessa necessidade de releitura ocorreu com a mudança na cosmologia no século 16 e posteriormente com as implicações conceituais da teoria darwiniana no século 19. Seguindo o pensamento de Queiruga, pode-se afirmar que estas informações podem funcionar como elementos maiêuticos para uma nova releitura da revelação. Assim, o que

                                                                                                                         

324 - CALVINO, João. As Institutas, ou tratado da religião cristã; trad. Waldir Carvalho Luz. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1985, v.

1. McGRATH, opus cit., p.103. No volume 1 das Institutas é evidente que o foco de Calvino era a defesa da teologia evangélica em toda a construção de seu pensamento, sendo mais enfático no início da obra.

325

- McGrath, Ibid., p.308.

326 - Ibid., p.308.

327 - Entre os fenômenos naturais que são formas de expressão da revelação estão a própria história da criação humana, a concepção

cosmológica geocêntrica antiga, o tempo da criação do mundo, o diluvio, etc. Entre os conceitos estão a própria encarnação e ressurreição de Jesus, o de tempo e eternidade, o conceito de moral, entre outros.

deve ser revisto numa situação como esta não é a revelação primeiríssima em si, que sempre está aberta à novas compreensões na história das experiências humanas em sua dinâmica, mas a sua compreensão. O que deve ser acentuado é a apropriação dessa novidade dos conceitos e fenômenos como elementos iluminadores que atualizam a compreensão da revelação. Embora a preferência em Queiruga seja o uso de “palavras” maiêuticas e não diretamente sobre conceitos e fenômenos maiêuticos, mesmo assim os fenômenos e conceitos podem se tornar maiêuticos.

Não obstante, não se pode reprimir a pergunta elementar: isso é suficiente? Há algo forte e profundo, há verdade ‘interna’ em todo o movimento da narração, que não permite descansar no mero positivismo dos fatos. 328

Veja que Queiruga chama a atenção para a insuficiência de um olhar apenas na exterioridade dos fatos. Ele indica que os elementos iluminadores e maiêuticos responsáveis pela possibilidade de percepção de uma verdade que transcende o positivismo dos fatos está numa verdade interna, que devido à conaturalidade com a busca de sentido existencial humano em Deus, desperta para a compreensão pretendida na revelação.

O que João Calvino pretendeu com o uso de sua teoria da acomodação foi mostrar que a compreensão da revelação bíblica requer que seja admitido que a sua linguagem não pode ser tomada em sua forma literal. Havia uma acomodação do conteúdo numa linguagem que utiliza elementos do mundo natural e da cultura com o objetivo de ser compreendida. Ao

teólogo e interprete era necessário “avaliar a natureza e extensão dessa acomodação”. 329 Por

conta de seu processo de se dar e manifestar na história, transformando quem a recebe e, consequentemente crescendo diante de novos entendimentos e possibilidades, a revelação se abre para novos sentidos e entendimentos. Esse dinamismo crescente é resultado de sua manifestação por meio da acomodação, que permite a sua visibilidade. Ao ser tornar visível, desencadeia o nascimento de novas reflexões, tendo como novo ponto de partida a situação que lhe deu visibilidade.

Este processo mostra similaridades entre a teoria de Calvino com a categoria de Queiruga. A revelação assume formas e linguagens próprias à capacidade cognitiva do ser                                                                                                                          

328 - QUEIRUGA, Ibid., p.53. 329

humano em etapas específicas da história de seu desenvolvimento. A revelação torna-se maiêutica na sua forma de expressar-se em linguagem comum e não literal. Mas, tão importante quanto isso, é o fato da revelação jamais poder ser contida em estruturas fixas ou adequar-se totalmente a realidade. É por isso que devemos considerar que a estrutura

maiêutica e acomodativa é sempre dinâmica e em contínuo processo de transformação.330