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A presença da “maiêutica histórica” na releitura da Escritura, pela Igreja neo-

 

Embora, na Escritura não esteja explícito o uso da “maiêutica” seguindo seu processo formal, sua presença na compreensão dos textos fica clara e deixa evidente que ela aparece gradativamente na prática dos leitores e em suas experiências de compreensão da revelação em contextos históricos específicos. Sua “presença vai aumentando à medida que a crítica bíblica se afasta do literalismo e desperta a sensibilidade para ver o enraizamento do religioso

no mais profundo da realidade humana...”306.

Por não haver necessidade de apresentar novidades, mas apenas mostrar o fato, reproduziremos os mesmos exemplos de Queiruga sobre a presença da maiêutica nas Escritura com algumas análises. O primeiro caso está presente no Evangelho de João no encontro de Jesus com a mulher Samaritana, que em síntese mostra que o conhecimento que ela teve sobre Jesus, é posteriormente compartilhado com seus compatriotas. Isso os leva mais além neste conhecimento, mantendo a liberdade de aplicarem o conteúdo de forma autônoma e renovada. Num primeiro momento a fé veio pela palavra da mulher Samaritana aos seu ouvintes: “ Muitos samaritanos daquela cidade creram nele por causa do seguinte testemunho dado pela mulher: ‘Ele me disse tudo o que tenho feito’”. O processo de                                                                                                                          

306

iluminação maiêutico aparece em seguida no momento em que os próprios ouvintes assumem que uma nova compreensão e fé se manifestam em suas experiências pessoais, quando dizem, “agora cremos não somente por causa do que você disse, pois nós mesmos o ouvimos e

sabemos que este é realmente o Salvador do mundo”. 307

Algo como a iluminação proposta no processo maiêutico é percebido na fala dos amigos da mulher que, por sua vez, foi portadora da palavra que desencadeia a iluminação e a certeza que obtiveram. Mas, essa certeza é alcançada porque a iluminação trás à luz conteúdos da revelação originária e primeiríssima que “já estava latente” nos ouvintes, aguardando atualização na novidade da situação que eles viviam. Quando eles têm a experiência com Jesus, já não é para eles um fato estranho porque a palavra que ouvem de Jesus tem a ver com as expectativas que tinham a priori. Esse exemplo mostra o processo de iluminação em todas as suas etapas: há uma palavra que é compartilhada, um primeiro esclarecimento que desperta o interesse, e posteriormente um salto de compreensão que confirma expectativas existenciais sobre a esperança do Salvador, que já não é mais a mesma da mulher, mas sim de cada um dos ouvintes. O papel da maiêutica foi “explicar o caráter intrínseco – não heterônomo- do esforço da subjetividade humana por realizar-se

autenticamente, reconhecendo e prolongando em si mesma a ação criadora de Deus.”308 Isso

fica evidente nas palavras dos compatriotas da mulher Samaritana.

Outro exemplo em que o processo maiêutico pode ser percebido é o discurso do apóstolo Pedro ao seus ouvintes israelitas, ocorrido no inicio da Igreja Cristã, e registrado no Livro de Atos no capítulo 2, 14-40. Este episódio é rico em conteúdos maiêuticos porque se dá em dois momentos distintos. Primeiramente quando o próprio apóstolo ilumina o sentido do Salmo 16, cuja referência é reconhecida originalmente como se referindo ao rei David e sua experiência existencial. Pedro utiliza uma experiência pessoal de David em um contexto remoto e, ao fazer sua releitura tendo a ressurreição como elemento iluminador, e novas circunstâncias históricas, seu conteúdo trás um nova compreensão para os ouvintes acerca da importância e seriedade da morte e ressurreição de Jesus para os seus dias.

A processo maiêutico se dá especialmente pela releitura do texto, que adquire novos significados numa perspectiva histórica nova, partindo de um conteúdo já existente,                                                                                                                          

307 - Evangelho de João 4,39,41. – Bíblia Sagrada- NVI ( Nova versão internacional), que será usada em todas as citações daqui em diante. 308

compartilhado e previamente acolhido pelos ouvintes, que através da palavra de Pedro, ganha novos sentidos que esclarecem o evento novo em questão: Jesus. Pela releitura do Salmo foi possível agregar o sentido necessário para qualificar a vida de Jesus com características de mistério e poder, pois, como David imaginava dele mesmo, Jesus não pode ser retido pela morte na sepultura, ressuscitando dos mortos. A primeira releitura e o significado relacionado a Jesus, aparecem no discurso que afirma:

“Irmãos, posso dizer-lhes com franqueza que o patriarca David morreu e foi sepultado, e o seu túmulo está entre nós até o dia de hoje. Mas ele era profeta e sabia que Deus lhe prometera sob juramento que colocaria um dos seus descendentes em seu trono. Prevendo isso falou da ressureição de Cristo, que não foi abandonado no sepulcro e cujo corpo não sofreu decomposição”.309

A segunda releitura se dá quando a palavra iluminadora dita por David, ao ser retomada por Pedro e compartilhada com os ouvintes, gerou um processo de iluminação em suas mentes que aceitaram por si mesmos como sendo suas, devido ao sentido que ela comunicou. Este novo sentido é tão claro e impactante que eles a acolhem como uma nova compreensão da revelação de David, agora totalmente novo e real, que os leva a conversão pessoal pela clareza que lhes dá sobre o evento Cristo. A partir dessa experiência a palavra torna-se palavra particular para cada um deles.

O que este processo sinaliza é que a expectativa da própria revelação como um comunicar primeiríssimo da parte de Deus aos ouvintes humanos, pode ser compreendida sem a necessidade de um mediador. Isso porque a partir de certo ponto da experiência com a palavra “maiêutica”, o ouvinte passa a ter consciência de sua própria experiência de compreensão de forma autônoma, a exemplo dos amigos da samaritana. Este fato aparece repetida vezes na Escritura, e marca a tendência espontânea de todo cristão em sua busca por

um relacionamento autêntico diante de Deus.310

Um outro evento bíblico que apresenta características maiêuticas está em Lucas 24,13- 33, sobre o encontro de dois discípulos com um caminhante em direção à cidade de Emaús. No decorrer da caminhada a conversa gira em torno de Jesus, tido pelos dois como profeta                                                                                                                          

309 - Livro de Atos, 3,29-31. 310

que havia sido morto pelas autoridades romanas e judaicas. O elemento maiêutico aparece mais claramente nos versículos 30 – 32. Dois fatos principais aparecem como iluminadores de algo que já estava presente na experiência dos dois discípulos. Primeiro a forma simbólica

do partir o pão e das palavras de ação de graças311 expressas pelo caminhante convidado. Em

segundo lugar, todas as outras palavras ditas pelo caminhante ao longo da jornada, “não

estava queimando nosso coração, enquanto ele nos falava no caminho?”312.

Estes dois fatores foram iluminadores e os discípulos percebem o que até então permanecia velado sobre Jesus. Um novo fato toma conta de suas vidas e aquilo que não estava ainda claro sobre o Salvador, assume clareza definitiva para eles. O episódio ocorre na forma maiêutica em toda sua estrutura. Uma palavra externa vinda de um profeta, neste caso Jesus, recorre à revelação histórica (v.25-27), e ao encontrar com o conteúdo experiencial dos discípulos, conduz a uma nova experiência que os leva mais adiante na direção de uma nova compreensão do que havia ocorrido, resultando em um nova compreensão sobre Jesus, sem as dúvidas anteriores e rica em vida e significado para cada um deles. Como o processo maiêutico propõem, cada um tem sua própria experiência sem a

mediação de outro sujeito, tendo como eixo e ponto de partida a revelação na Escritura.313

Muito embora o processo maiêutico seja favorável ao conhecimento autêntico e pessoal com a revelação e necessário à uma experiência religiosa autônoma, ele também tem sido questionado ao longo da história da Igreja por permitir a atomização de princípios da Escritura, impedindo um consenso mínimo necessário para evitar posições hermenêuticas extremas. Essa preocupação já marcou sua presença na crítica feita pela Igreja, católica e

protestante, em relação aos “místicos” cristãos,314 que se deixavam conduzir por uma

experiência extática tão profunda, que em certo ponto assumia o controle da situação prescindindo da própria Escritura como ponto de partida e princípio.

Queiruga também apresenta sua preocupação neste sentido afirmando que a releitura terá que ter sempre como ponto de partida um conteúdo, seja ele escrito ou verbal                                                                                                                          

311 - Evangelho de Lucas 24, 30. 312 - Ibid., 24,32.

313 - Ibid., 24, 25-27

314 - HÄGGLUND, Bengt. História da Teologia. Porto Alegre- RS: Concórdia Editora, 1986, p.175-178. Entre as críticas estão aquelas

dirigidas especialmente a Meister Eckhart, e seus conceitos sobre a pessoa de Deus como Unidade absoluta, da ideia da origem da natureza em parte com criação e em parte com emanação, ideias estranhas a Escritura. Além de diferenciar entre Deus e a Trindade e sobre Cristo. Outro problema com os místicos vem através da teologia de João Tauler, que embora respeitado por Lutero, frequentemente colocava a palavra interna acima da proclamação externa e das palavras de Escritura. Tais posições estão na contramão da proposta de Queiruga, que em todo processo de formulação da categoria de “maiêutica histórica”, tem a palavra da revelação divina em primeiríssimo lugar como ponto de partida e fundamento para novas releituras, sem tendências subjetivistas.

comunitário, que acolha sempre a revelação originária, primeiríssima da parte de Deus. O ponto de partida deve ter tradição e princípio sempre reconhecidos e aceitos por uma comunidade, e uma história que acolha outras experiências pessoais, não restrito a qualquer caráter subjetivo individual como ponto de partida heterônomo. Ponto de vista semelhante foi defendido pelos reformadores ao longo da história. Por isso, é necessário que se faça a devida distinção entre o que foi colocado acima e o conceito agostiniano de magister

interior.315 Se no caso da mística a tendência era a experiência assumir uma condição de autonomia em relação a Escritura, no conceito agostiniano o procedimento, ao invés de assumir movimento independente, faz uma síntese entre o que está dentro, no interior, com aquilo que ressoa externamente, a palavra acolhida pela leitura ou a comunicação do profeta ou pregador.

Henry de Lubac reafirma a distinção entre o modo dos místicos acessarem o conhecimento de Deus e o que a tradição cristã reconhece e pratica. Seguindo o pensamento de Agostinho ele afirma que, “Deus pronunciou uma só palavra, quando falou no seu Filho: porque é Ele que dá o sentido a todas as palavras que o anunciavam, tudo se explica Nele e

somente Nele”. 316