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Mais um Bando a Caminho! A Nova Fase do Teatro Negro no

CAPÍTULO I: O TEATRO NEGRO

1.5 Teatro Engajado Negro no Brasil

1.5.3 Mais um Bando a Caminho! A Nova Fase do Teatro Negro no

Avaliando o estado atual do teatro negro engajado brasileiro como promissor parece-nos que as experiências (erros e acertos) dos que vieram antes tem sido assimilada de modo proveitoso e um certo “zum zum zum”89 começa a ser ouvido novamente. A estudiosa Leda Martins ressalta como orientações seguidas por esse teatro contemporâneo:

A experiência histórica e da memória (...) a busca estilística de formas, processos e procedimentos que integrem a herança cultural mais tradicional às novas formas de expressão e encenação (...) uso de matrizes e tradições teatrais, em particular aquelas derivadas das performances rituais indígenas e afro-americanas (MARTINS, 2006, 211).

Em suas agendas, de modo geral, Osvaldice Conceição define a atuação do Cirandarte (2007):

Coincidentemente a gente faz teatro popular e coincidentemente as pessoas quem está no teatro popular é negro e o teatro popular é isso, abarca a maioria de pessoas que se interessam (...) eu faço teatro negro porque eu me interesso por essas causas porque eu sou negra e porque eu penso e procuro desenvolver questões a cerca da sociedade...90.

Luis Bandeira (2007), do Gente de Teatro da Bahia, também faz questão de sublinhar:

Não trabalhamos com teatro planfetário, aquele teatro que fala: -“negro sim, negro não, abaixo o racismo!” - Não trabalhamos assim. Trabalhamos indiretamente, falamos sim da discriminação racial, da discriminação sexual e todas essas problemáticas de uma maneira transversal. Na verdade, a gente utiliza o teatro como ferramenta de denúncia e resgate da cultura negra.

Consumindo informações e influências da contemporaneidade, muitos desses grupos expressam tendência à busca de uma pesquisa própria. Aprofundando-se em elementos de cultura negra, inspiram-se na ritualidade e plasticidade da religião dos orixás (Bahia), das giras de Umbanda e do reisado91. Outros grupos fundem elementos de matriz africana a outros referenciais e linguagens como: o yoga, contat,o improvisação, danças negras de rua. Há também uma variante, pesquisas em torno da expressividade do corpo negro e do corpo brasileiro. No final das contas, salutar é saber que, ainda que seguindo por perspectivas diferentes, muitos dos atuantes desse teatro têm problematizado e pesquisado alternativas para trazer o seu olhar negro para a cena92.

90 Entrevista concedida por Osvaldice à autora, em 2007, durante o Fórum de Performance Negra. 91 Entrevista concedida para a autora, em 2007, durante o Fórum de Performance Negra.

92 A partir de entrevistas realizadas pela autora com companhias negras, em 2007, durante o Fórum de Performance Negra.

Quanto à natureza, os grupos em ação na cena contemporânea, em geral, não têm subvenções regulares para a manutenção de suas atividades; e talvez, por conta disso, uma grande parte deles não desenvolva uma carreira profissional, nem maiores regularidades em suas trajetórias. Possivelmente, também em conseqüência da frágil sustentabilidade, a atuação de muitos dos grupos da nova geração extrapola os limites da cena e se estende para uma ação integral que abarca (tal qual o modelo utilizado pelo Teatro Experimental do Negro) atividades formativas (cursos, seminários, festivais, encontros) de formatos e natureza diversos: artísticos, sociais, e políticos. A ênfase, nesses casos, é em ações sócio- educativas ou de arte e educação. Muitas dessas ações, financiadas por projetos do Governo Federal, como o Ponto de Cultura, projeto que estimula e fomenta financeiramente atividade de cunho cultural em comunidades com pouco acesso a espaços difusores de cultura e entretenimento. Assim, muitas companhias têm conseguido dar continuidade as suas atividades teatrais, desenvolvendo ações para a comunidade com o intuito de dar visibilidade às expressões locais.

Acreditamos que, talvez, uma das grandes particularidades dessa geração seja a consciência da ação coletiva. Uma dessas felizes tentativas é, seguramente, a criação de um Fórum Nacional de Performance Negra, que congrega algo em torno de cento e cinco grupos entre grupos de teatro e dança93.

O Fórum Nacional de Performance Negra é resultado da parceria do Bando de Teatro Olodum (Ba), com a Companhia dos Comuns (RJ). A Companhia dos Comuns foi criada (2001) no Rio de Janeiro, pelo ator baiano Hilton Cobra94. A Comuns apresenta um trabalho fincado na cultura negra brasileira (memória negra, capoeira, funk, entre outros), associada a uma linguagem robusta e uma

93O Fórum Nacional de Performance Negra acontece em Salvador desde 2005, com uma edição 2006 e outra em 2009.

94 Hilton Cobra – ator, diretor e fundador da companhia dos Comuns (RJ). Dirigiu o centro cultural José Bonifácio, também no Rio, tem atuações no teatro, cinema e tv. Atualmente, coordena a Comuns e o Fórum

assinatura estética bem expressiva nos figurinos, na luz e na ambientação95. É singular também nesse grupo sua conexão com expressões do pensamento negro brasileiro como Milton Santos96, Lélia Gonzáles97, Luíza Main98, Makota Valdina99, Kabengele Munanga, Edson Cardoso, entre outros.

A Comuns é uma espécie de “irmã” do Bando: seus dois primeiros espetáculos foram dirigidos por Márcio Meirelles (diretor do grupo baiano) e a assinatura das coreografias e da música ficaram a cargo de José Carlos (Zebrinha) e Jarbas Bittencourt (técnicos do Bando). Foi dessa parceria que surgiu o Fórum Nacional de Performance Negra, que já vai para sua quarta edição. O primeiro, que foi realizado em Salvador, em 2005, reuniu em sua última edição mais de cem grupos, oriundos das 27 unidades federativas do Brasil.

O I Fórum Nacional de Performance Negra nasce da compreensão de que é imperativo um teatro e uma dança que expressem o poder e o vigor da criação artística da população negra deste país (trecho da “Carta de Salvador” – documento de intenções do Fórum).

95 Assim o figurino e a luz, por exemplo, figuras proeminentes do circuito artístico brasileiro: Biza Viana e Jorginho de Carvalho.

96 Milton Santos (2001) – um dos maiores intelectuais negros brasileiros. Nasceu em Brotas, Bahia. Geógrafo de profissão, professor da Universidade Federal da Bahia, entre outras. É prémio Nobel de geografia (prêmio Vautrin Lud – 1994). Publicou vários livros, entre eles: Por uma outra globalização - do pensamento único a consciência universal (2000); O espaço do cidadão (1987) e O espaço dividido. Os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos (1979). In ELIAS (2002) e Munanga e Gomes (2006).

97 Lélia Gonzáles – um dos maiores símbolos da militância negra brasileira. Antropóloga, professora e escritora. Participou da fundação do Movimento Negro Unificado (MNU), do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras do Rio de Janeiro (IPCN-RJ)); do Nzinga Coletivo de Mulheres Negras; do bloco carnavalesco Olodum. Ver http://www.leliagonzalez.org.br e Munanga e Gomes (2006).

98 Luíza Mahin – mãe do poeta Luiz Gama, ex-escravisada, lutou pela libertação de outros negros, sendo uma das militantes atuantes na Revolta dos Males e da Sabinada. Ver http://www.leliagonzalez.org.br e Munanga e Gomes (2006).

99 Makota Valdina – Makota (mais velho ilustre) do terreiro Tanuri Junssara, de nação angola, no bairro do Engenho Velho de Brotas, em Salvador. É educadora e, atualmente, uma das mais célebres pensadoras e porta-vozes da temática das religiões negro africanas da Bahia. É integrante do Conselho do Fórum Cultural Mundial. Ver Mestres da cultura popular - http://www.cultura.salvador.ba.gov.br/mestres-perfis.

Uma particularidade dessa iniciativa do Bando e da Comuns é congregar em torno da denominação performance negra, independentemente, de grupos de teatro, dança, e manifestações populares, com a compreensão de que:

estes compartilham uma série de realizações e valores, comprometidos com uma prática artístico-cultural que, nos seus modos de criação e de reflexão, reafirma a dimensão dinâmica das matrizes afro-brasileiras (...) Todos têm em comum a disposição e o empenho de viabilizar manifestações artísticas autônomas. Ou seja, livres das imposições culturais e financeiras que privilegiam ideais e valores eurocêntricos, os quais tentam negar e restringir o pleno direito de expressão da identidade negra e de nossa cidadania (BANDO; COMUNS, 2005).

Ao optar pelo termo “performance” para se referir ao coletivo de teatro e dança negra, o Fórum reitera uma tendência observada no contexto do teatro negro: a especificidade desse teatro que em geral funde igualmente o teatro, dança e a música, por exemplo. Tendência também apresentada pelo chamado

teatro antropológico (Richard Schechner, Vitor Tunner, Eugenio Barba, entre

outros) que passaram a utilizar o termo para referir-se ao teatro ritual de culturas tradicionais, como as religiões de matrizes africanas (voduns, inquices, orixás)100, por exemplo. Dentro da complexidade da definição do termo performance, no caso do Fórum, entendemos que essa denominação está inserida no universo de performance como expressão artística, acrescida à função com a qual se reveste – a de afirmar a identidade negra (MARVIN, 1996).

Essa intenção – afirmar – dialoga com outros termos (restaurar, repetir, rememorar, reinstalar) utilizados no contexto dos estudos teatrais, de orientação antropológica. Assim, esse teatro, ao trazer para si a função de porta-voz de sua cultura, através da utilização e re-edição da mesma, estaria utilizando um princípio

fundador da performance cultural que é fortalecer princípios e valores da sociedade para fortificá-la.

Dos propósitos e metas, estão listados:

• Formulação de linguagens estéticas que confrontem os vários desafios da contemporaneidade;

• Formação de intérpretes, técnicos e diretores;

• Participação nas instâncias de deliberação de políticas, públicas, culturais; • Criação de repertório;

• Criação de formas permanentes de comunicação e intercâmbio, nacional e internacional, que possibilitem a ampla disseminação de informação e conhecimento;

• Articulação política no enfrentamento conjunto de questões afins;

• Criação de redes de interlocução e de um banco de dados que facilite o trânsito de informações de mútuo interesse, inclusive as relativas aos meios de acesso ao patrocínio e ao fomento públicos e da iniciativa privada; • Pensar em soluções alternativas e institucionais para os desafios comuns,

enfrentados pelos grupos: sustentabilidade; carência de espaço físico para atuação; ausência de políticas públicas que contemplem o segmento da cultura negro-brasileira; seja em termos da valorização, inserção e estímulo à produção desta; seja em termos da avaliação crítica do tratamento dado ao elemento negro nos veículos de comunicação (teatro, dança, cinema e televisão) no Brasil.

Na nossa perspectiva, as contribuições trazidas por esse Fórum são inestimáveis para a inserção negra no teatro brasileiro. De fato, esse é um fato histórico no teatro brasileiro, que só se iguala enquanto mobilização, reivindicação e militância, à também revolucionária Arte contra a barbárie, que deu origem à Lei

do Fomento, em São Paulo101. O Fórum representa, para o teatro negro no Brasil, um passo fundamental para a consolidação de sua existência enquanto corpus estético e ideológico. Alguns dos grupos participantes do Fórum desde sua primeira edição: Balé Folclórico da Bahia (Ba); Centro de Atores Negros Abdias do Nascimento (Ba); Companhia dos Comuns (RJ); Cia Étnica de Dança e Teatro (RJ); Cia de Teatro Black &Preto (RJ); Grupo Cabeça Feita (DF); Grupo Afro Beré (CE); Cia Enki de Dança Primitiva Contemporânea (ES); Cia Teatral Zumbi dos Palmares (GO); Cia de Dança Afro Abanjá (MA); Grupo Teatral de dança e teatro Pandeiro de Ouro (MT); Cia SeraQuê? (MG); Grupo Cultural NUC (MG); Grupo Caixa Preta (RS); Grupo Ação Zumbi (SC); Invasores Cia Experimental (SP); Núcleo de Atores negros da Escola de Arte Dramática da USP – EAD (SP); Grupo Frente 03 de fevereiro (SP); Grupo Imbuaça (SE); Bando de Teatro do Olodum (Bahia), A Cia dos Comuns (Rio de Janeiro), Caixa Preta (Porto Alegre).102

Ao costurar esse relato, ainda que a partir de uma teia irregular, de caminhos interrompidos e cheio de lacunas indisfarçáveis, foi possível constatar que, apesar de negligenciada, como boa parte de sua história no Brasil, a participação negra no teatro brasileiro tem se dado desde seus primórdios. Foi possível também desvelar as diversas formas que assumiu. Assim, visto como coisa, o negro foi retratado por muitos dramaturgos como tipos estereotipados que, na maioria das vezes, só espelhavam a imagem preconceituosa daqueles que escreviam e da sociedade que representavam. Toda essa situação acabou por originar um teatro de expressão, afirmação e valorização da cultura negro- descendente que ao longo desse percurso tem enfrentado o desafio de existir, apesar do mito de democracia racial que continua a imperar no Brasil como principal obstáculo ao avanço na discussão da problemática racial no país. Como

101 Arte contra a barbárie foi o nome dado ao movimento dos artistas que culminou na lei. A Lei nº 13.279 (8 de Janeiro de 2002) de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo tem o objetivo de apoiar a manutenção e criação de projetos de trabalho continuado de pesquisa e produção teatral, visando o desenvolvimento do teatro e o melhor acesso da população ao mesmo.

resposta à repressão, uma série de expressões negras emergiu em nossos palcos, com o propósito de afirmar, denunciar e combater estereótipos e concepções infames sobre sua cultura e povo na cena, na dramaturgia e na sociedade.