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PARTE I – PRINCÍPIOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

CAPÍTULO 2 – REFERENCIAL TEÓRICO

2.5 Mapa conceitual da educação intercultural

A partir de 2009, Candau (2010; 2012e) inicia a construção coletiva29 de um mapa conceitual a partir da expressão “educação intercultural”, tendo como pano de fundo o enfoque crítico como fundamento (apêndice I). A questão que guiou esse trabalho foi: em que consiste a educação intercultural? O primeiro passo assumido pelo grupo foi a criação de quatro categorias básicas, a saber: sujeitos e atores; saberes e conhecimentos; práticas socioeducativas; e políticas públicas. Para cada uma foram criadas subcategorias e palavras de ligação entre elas.

A primeira categoria, sujeitos e atores, se conecta à educação intercultural por meio do verbo “reconhecer”. Trata-se de promover relações nas práticas educativas entre sujeitos individuais e entre grupos sociais integrantes de diferentes grupos socioculturais, com o intuito de fortalecer a construção de identidades dinâmicas, abertas e plurais, além de potenciar processos de empoderamento, principalmente de sujeitos e atores historicamente inferiorizados e subalternizados. No âmbito individual, visa também potenciar a construção da autoestima e estimular a construção da autonomia nos alunos, a partir do reconhecimento das diferenças presentes na escola e na sala de aula, o que exige romper com os processos de homogeneização que tornam invisíveis e ocultam as diferenças, reforçando assim o caráter monocultural das diversas culturas escolares.

29 Este mapa foi construído no âmbito das reuniões do Grupo de Estudos sobre Cotidiano, Educação e Culturas (GECEC), coordenado pela Profa. Vera Candau e vinculado ao Departamento de Educação da PUC-Rio.

Os processos de empoderamento e construção de autonomia e autoestima estão interconectados. De acordo com Kleba e Wendausen (2009), há duas vertentes teóricas distintas sobre o conceito de empoderamento: uma de cunho assistencialista, buscando um ajustamento estrutural com o objetivo de integrar os não-empoderados ao sistema vigente; e outra, com a qual as autoras se alinham, que defende a autodeterminação de indivíduos e comunidades com o intuito de buscar uma maior participação, tanto simbólica como real, na busca por democracia e maior equidade. Em meu entender, a didática crítica intercultural, tal como formulada por Candau (2010; 2012e), também se alinha à segunda vertente.

Nessa concepção, entende-se que não é possível “dar” empoderamento, mas facilitar e sustentar o processo – por meio de diferentes ações – das pessoas empoderarem a si mesmas. Assim, para Kleba e Wendausen (2009), empoderar-se significaria renunciar a um estado de tutela, de dependência, de impotência, ou seja, fazer com que indivíduos ou grupos tenham o governo da sua própria vida. Nas palavras das autoras, o termo pode ser assim entendido:

Definimos empoderamento como um processo dinâmico que envolve aspectos cognitivos, afetivos e condutuais. Significa aumento de poder, da autonomia pessoal e coletiva de indivíduos e grupos sociais nas relações interpessoais e institucionais, principalmente daqueles submetidos a relações de opressão, discriminação e dominação social (id., p. 736).

Para tal, Kleba e Wendausen (2009) apontam a necessidade de se desvendar as relações de poder existentes e, após isso, transformar as de cunho autoritário em relações mais horizontais, que levem ao empoderamento dos grupos oprimidos, discriminados ou dominados. Isso exige mudar relações que já estejam consolidadas e aceitas, tornando-as mais flexíveis. As autoras apontam ainda a existência de três níveis de empoderamento: o nível pessoal ou psicológico; o nível grupal ou organizacional; e o nível estrutural ou político. Estes níveis seriam interdependentes.

Assim, no nível pessoal ou psicológico, o sujeito, a partir da percepção de suas próprias forças, muda de mentalidade e, com isso, aumenta um comportamento de autoconfiança e autoestima. O empoderamento neste nível visa a criar convicção nos indivíduos acerca de sua competência e capacidade, além de aumentar sua compreensão crítica sobre o contexto em que vive e as relações sociopolíticas que o regem, culminando em um aumento no desejo de ser ativo e de exercer influência sobre esse contexto. Em resumo, neste nível, o empoderamento visa à emancipação

dos indivíduos, aumentando sua autonomia e autoestima, tal como defende Candau (2010; 2012e).

Já no nível grupal ou organizacional, o empoderamento visa ao fortalecimento de uma organização como um todo – entendida como um sistema ou unidade – para alcançar objetivos e metas. Esses podem ser variados, mas sempre giram em torno da ideia de melhorar a vida comunitária e promover mudanças e transformação social. Kleba e Wendausen (2009) ressaltam que, neste nível, mais do que o resultado, é a experiência vivenciada pelos membros que promove e concretiza o empoderamento. Por meio de ações como liderança partilhada e tomada de decisão distribuída, os membros de um coletivo compartilham conhecimentos e ampliam a sua consciência crítica, desencadeando no processo o respeito recíproco, apoio mútuo, o sentimento de pertencimento e práticas solidárias e de reciprocidade.

Por fim, no nível estrutural ou político, as autoras ressaltam que o empoderamento ocorre por meio de um processo muitas vezes conflituoso de redistribuição de poder político. Nele, pessoas ou grupos renunciam a uma posição de dominação e se apropriam de habilidades de participação democrática e de poder político de decisão. As ações neste nível visam a promover a inserção dos grupos oprimidos, discriminados ou dominados em projetos sociais e políticos, por meio da criação ou da conquista de espaços de participação. Assim, há o favorecimento do engajamento do indivíduo no empoderamento, além de sua responsabilização e participação no processo.

Para facilitar esses processos de empoderamento em sala de aula, então, Candau (2010; 2012e) ressalta a necessidade da desconstrução de práticas naturalizadas e enraizadas no trabalho docente e a valorização das histórias de vida tanto de alunos como de professores, favorecendo a troca, o intercâmbio e o reconhecimento mútuo entre eles. Por fim, a autora ressalta a necessidade de a escola interagir com os diferentes grupos presentes na comunidade e no tecido social mais amplo, favorecendo uma dinâmica escolar aberta e inclusiva.

A segunda categoria do mapa conceitual – saberes e conhecimentos – liga-se à educação intercultural por meio do verbo “valorizar”. Com isso, a autora reafirma um princípio que julga essencialmente importante e que já foi destacado neste trabalho: a ancoragem histórico-social dos diferentes saberes e conhecimentos e de seu caráter dinâmico. Isso supõe analisar suas raízes históricas e o desenvolvimento que foram sofrendo, sempre em íntima relação com os contextos nos quais este

processo vai-se dando, e os mecanismos de poder nele presentes (CANDAU, 2010). Além disso, o educador intercultural precisa reconhecer a existência de diversos saberes e conhecimentos no cotidiano escolar e procurar estimular o diálogo, o respeito mútuo e a construção de pontes entre eles, assumindo os conflitos que emergem desta interação.

A terceira categoria – práticas socioeducativas – conecta-se por meio do verbo “promover”. Supõe modificar as dinâmicas habituais dos processos educativos, entendidos como padronizadores e uniformes, desvinculados dos contextos socioculturais dos sujeitos que dele participam e baseados no modelo frontal de ensino. Com isso, a autora advoga a necessidade de se favorecer dinâmicas participativas, processos de diferenciação pedagógica, utilização de múltiplas linguagens e estimular a construção coletiva.

A ideia de diferenciação pedagógica é utilizada a partir de Perrenoud (2000), que defende a necessidade dos educadores conceberem e fazerem evoluir os dispositivos de diferenciação. Tendo como pano de fundo a ideia de competência docente, o autor reconhece os limites do ensino frontal e a necessidade de se trabalhar a partir das diferenças. Em suas palavras:

Diferenciar é romper com a pedagogia frontal - a mesma lição, os mesmos exercícios para todos - mas é, sobretudo criar uma organização do trabalho e dos dispositivos didáticos que coloquem cada um dos alunos em uma situação ótima priorizando aqueles que têm mais a aprender [...] para encontrar um meio termo entre um ensino frontal ineficaz e um ensino individualizado impraticável, deve-se organizar diferentemente o trabalho em aula, acabar com a estruturação em níveis anuais, ampliar, criar novos

espaços-tempos de formação, jogar, em uma escala maior, com os

reagrupamentos, as tarefas, os dispositivos didáticos, as interações, as regulações, o ensino mútuo e as tecnologias da formação (id., p. 55;56 – grifos do autor).

O autor ressalta, ainda, que esta competência exige a mobilização de competências mais específicas, a saber: administrar a heterogeneidade no âmbito de uma turma; abrir, ampliar a gestão da classe para um espaço mais vasto; fornecer apoio integrado, trabalhar com alunos com dificuldades; e desenvolver a cooperação entre os alunos e certas formas simples de ensino mútuo (PERRENOUD, 2000). Perrenoud também afirma que a lógica homogeneizadora do ensino frontal ainda é muito presente nas salas de aula, e isso se evidenciaria na tentativa dos professores de unir os alunos em grupos de acordo com seus ritmos e tipos de aprendizagem. Uma solução apontada é não centrar as ações na figura do

professor, privilegiando-se planos semanais, tarefas autocorretivas e uso de softwares interativos, por exemplo. Por fim, o autor reconhece também o potencial da diferenciação pedagógica para fomentar processos de radicalização democrática e criação de consciência crítica e cidadania nos alunos, o que se coaduna com os pressupostos da didática crítica intercultural.

Porém, Candau (2014) afirma que, sem desconsiderar os aspectos psicológicos e os relativos aos ritmos e estilos de aprendizagem com que Perrenoud (2000) trabalha, ela entende esse conceito de forma mais ampla, incorporando também a utilização de distintas expressões culturais. A autora ressalta também que esse entendimento pressupõe a criação de condições concretas nas escolas – e, no caso deste estudo, das universidades – que permitam uma efetiva diferenciação em sala de aula. É o que quer dizer com “desengessar” a sala de aula (CANDAU, 2010; 2012e).

Já a ideia de utilização de múltiplas linguagens e mídias justifica-se pela necessidade de conceber a escola como um centro cultural, no qual diferentes linguagens e expressões culturais estão presentes e são produzidas. A autora ressalta que não se trata simplesmente de introduzir as novas tecnologias de informação e comunicação e sim de dialogar com os processos de mudança cultural. Por fim, a última categoria básica do mapa conceitual da educação intercultural, denominada políticas públicas, é conectada pelo verbo “construir”. Assim, a autora advoga a necessidade de reconhecer os diferentes movimentos sociais que vêm se organizando em torno de questões identitárias, defendendo a articulação entre políticas de reconhecimento e de redistribuição e apoiando políticas de ação afirmativa orientadas a fortalecer processos de construção. A autora salienta, ainda, que o horizonte emancipador é a referência fundamental da didática crítica intercultural. Nas suas palavras:

Na perspectiva da didática, supõe ter sempre presente o contexto onde se realizam as práticas educativas, os constrangimentos e possibilidades que lhe são inerentes, e desenvolver um diálogo crítico e propositivo orientado a fortalecer perspectivas educativas e sociais orientadas a radicalizar os processos democráticos e articular igualdade e diferença, em todos os níveis e âmbitos, do macrossocial à sala de aula (CANDAU, 2012e, p. 133).

O mapa conceitual da educação intercultural aqui apresentado representa uma síntese da didática crítica intercultural tal qual entendida por Candau (2012a). Cabe

salientar, porém, que a própria autora reconhece que o mapa ainda está em construção, enfatizando que este pode ser expandido, discutido e complexificado, além de haver uma série de temas e questões complexas que ainda não estariam suficientemente claras para o grupo de pesquisa (CANDAU, 2010; 2012e). Para este estudo, além de síntese, o mapa foi utilizado como ponto de partida para a construção das categorias analíticas de análise de dados, como se verá na seção 3.5 desta tese.