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PARTE I – PRINCÍPIOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

CAPÍTULO 2 – REFERENCIAL TEÓRICO

2.2 O papel da cultura na prática pedagógica

Candau trabalha sob a ótica de que a cultura é um determinante estrutural de qualquer prática educativa, associando a ideia de articulação das diferenças em sala de aula a este conceito. Em suas palavras, "não há Educação que não esteja imersa na cultura da humanidade e, particularmente, do momento histórico e do contexto em que se situa. Neste sentido não é possível conceber uma experiência pedagógica ‘desculturizada’, isto é, em que nenhum traço cultural específico a configure" (CANDAU, 2012c, p. 69). Hall (1997) aprofunda essa ideia e afirma que houve, não apenas na Educação, mas nas ciências sociais e nas humanidades em geral, uma “virada cultural”. Esta, segundo este autor, configuraria um novo paradigma que entende a cultura como uma condição constitutiva da vida social, ao invés de apenas uma variável dependente.

Candau (2012a) reconhece que a preparação do educador para agir a partir da cultura como elemento estrutural da prática pedagógica, como uma espécie de agente cultural, entretanto, ainda é falha, existindo mais no discurso do que na ação dos cursos de Licenciatura. Porém, afirma que reconhecer a dimensão cultural do ensino potencia processos de aprendizagem mais significativos e produtivos para os alunos. A autora reconhece também que as dimensões econômica e política ainda prevalecem nas lutas pelo poder, incluindo aí o poder em sala de aula, mas estas dimensões estariam inter-relacionadas às dimensões simbólica e cultural, não sendo possível dissociá-las.

Não se tata de maximizar a dimensão cultural e desvinculá-la das questões de caráter estrutural e da problemática da desigualdade e da exclusão crescentes no mundo atual, nem de considerá-la um mero subproduto desta realidade. O importante é, tendo presente a configuração político-social e ideológica do momento, não negar a especificidade da problemática

cultural, nem considerá-la de modo isolado e autocentrado (CANDAU, 2012b, p. 21).

No mesmo sentido, Hall (1997, p. 10) argumenta que “os processos econômicos e sociais, por dependerem do significado e terem consequências em nossa maneira de viver, em razão daquilo que somos — nossas identidades — e dada a ‘forma como vivemos’, também têm que ser compreendidos como práticas culturais”. Com isso o autor advoga a necessidade de se levar em consideração o papel central da cultura e sua articulação com os fatores materiais e simbólicos em análises sociais.

O que aqui se argumenta, de fato, não é que “tudo é cultura”, mas que toda prática social depende e tem relação com o significado: consequentemente, que a cultura é uma das condições constitutivas de existência dessa prática, que toda prática social tem uma dimensão cultural [...] É óbvio que isto não significa que os processos econômicos tenham sido reduzidos ao discurso e à linguagem. Significa que a dimensão discursiva ou de significado é uma das condições constitutivas do funcionamento da economia. O “econômico”, por assim dizer, não poderia funcionar nem teria efeitos reais sem a “cultura” ou fora dos significados e dos discursos. A cultura é, portanto, nestes exemplos, uma parte constitutiva do “político” e do “econômico”, da mesma forma que o “político” e o “econômico” são, por sua vez, parte constitutiva da cultura e a ela impõem limites. Eles se constituem mutuamente — o que é outra maneira de dizer que se articulam um ao outro. (HALL, 1997, p. 13).

Apoiada em Hall, Caputo (2005, p. 80) também entende que os processos econômicos e culturais estão interligados. Para a autora, as críticas de que “tudo é cultura”, como afirma o citado autor, realçam uma possível negação do mundo do trabalho em detrimento da cultura. Entendendo que o trabalho, atualmente, encontra-se em um processo de heterogeneização, complexificação e fragmentação, Caputo explica que essa crítica significaria que aqueles que trabalham com a dimensão cultural entenderiam que “a cultura poderia subsistir sem o trabalho e a produção de riquezas”. A autora, negando essa ideia, afirma que os estudos multiculturais e os focados nas mudanças do mundo do trabalho poderiam se ajudar mutuamente, e completa: “para os educadores(as) críticos(as), chego a pensar que sem esse diálogo a própria construção da pedagogia crítica deixaria a desejar (id., ibd.)”.

É importante, porém, ter claro com qual conceito de cultura se trabalha. Candau (2012a) ressalta que, em muitos trabalhos ligados à dimensão cultural, tal definição não é precisa e clara. Martínez (2005) realça que essa imprecisão é fruto

da grande complexidade em se realizar essa definição, uma vez que o objeto em si a que o termo se refere, a cultura, é complexo18.

Segundo Williams (1992), o termo “cultura” foi primeiro utilizado para designar um processo de cultivo: primeiro uma cultura (cultivo) de vegetais ou animais e depois se referindo à cultura (cultivo ativo) da mente humana. No que tange a este último significado, há ainda três entendimentos distintos: cultura como um estado mental desenvolvido, como em pessoa de cultura, pessoa culta; os processos desse desenvolvimento, como em interesses culturais, atividades culturais; e os meios desses processos, cultura considerada como as artes e o trabalho intelectual do homem. A partir de fins do século XVIII, o termo passa a designar uma configuração ou generalização do “espírito” que informava o “modo de vida global” de determinado povo. Paradoxalmente – e, segundo Williams (1992), “desconfortavelmente” – este último entendimento é o sentido geral mais comum nos dias atuais, junto à ideia de cultura como as artes e o trabalho intelectual do homem.

As ciências sociais que lidam atualmente com os estudos culturais trabalham a partir de uma nova concepção de cultura, entendendo este termo como um “sistema de significações mediante o qual necessariamente uma dada ordem social é comunicada, reproduzida, vivenciada e estudada” (id., p. 13). Assim, há a convergência entre o sentido antropológico e sociológico do termo: a cultura como “modo de vida global”, com um “sistema de significações” essencial e envolvido em todas as formas de atividade social; e o sentido mais especializado, a cultura como “atividades artísticas e intelectuais”, mas não apenas as artes, e sim de forma mais ampla. Inclui a linguagem, artes, filosofia, jornalismo, moda, publicidade etc. Com isso, o campo ficou mais complexo e extenso (WILLIAMS, 1992).

De acordo com Velho (2003), a definição do termo é mesmo complexa e difícil, mas necessária, principalmente quando se pretende diferenciar diversas culturas. Cultura, então, pode ser definida como um:

Conjunto de crenças, valores, visões de mundo, rede de significados que definem a própria natureza humana. Por outro lado, cultura é um conceito que só existe a partir da constatação da diferença entre nós e os outros. Implica confirmação da existência de modos distintos de construção social

da realidade com a produção de padrões, normas que contrastam

sociedades particulares no tempo e no espaço (VELHO, 2003, p. 63 – grifos do autor).

18 Além disso, essa autora ainda lembra que o termo foi cunhado, em termos históricos, recentemente, em meados do século XVIII, o que reforçaria a dificuldade em sua definição.

Hall (1997) vê a cultura como necessária para o convívio social, entendendo este termo da mesma forma: como um conjunto de conceitos, valores e normas com que um grupo social dá significado à realidade, permitindo a separação destes grupos em “nós” e os “outros”. Assim, de uma concepção reducionista de cultura, que abrangia as artes e a produção intelectual, o termo passa a uma perspectiva mais abrangente, abarcando os modos de agir e de atribuir sentido de um determinado grupo humano (CANDAU, 2008). O conceito, então, assume as seguintes características:

Em suma, o conceito de cultura aqui assumido entende-a como um processo em contínuo movimento, e não como essência preestabelecida. Não admite hierarquização, pois considera que todas as culturas são equivalentes, tanto do ponto de vista epistemológico quanto antropológico; dessa forma, o termo adquire um sentido plural. Extrapola a compreensão que restringe cultura às produções humanas (materiais ou não), incorporando a ela os significados atribuídos a essas produções pelas pessoas, pertencentes a diferentes grupos sociais, em seu cotidiano. Esta acepção envolve necessariamente conflito, resistência, disputa e negociação, na direção da construção de uma cultura comum que supere a cultura em comum (LIMA, 2016, p. 52-53).

Nesse sentido, Candau (2004) traz uma figura que sintetiza visualmente a compreensão do termo cultura utilizado nesse estudo. Nela, a autora compara o conceito a um iceberg, onde a parte visível, exposta e presente no campo consciente inclui as artes e atividades reais ligadas ao campo cultural. Já submerso no inconsciente estariam aqueles elementos que formam as crenças, valores, visões de mundo e redes de significados (VELHO, 2003) que formam o sistema de significações de uma determinada ordem social (WILLIAMS, 1992) e que também definem uma determinada cultura. A seguir, reproduzo essa figura:

No que tange à relação entre cultura e escola, Martínez (2005) afirma que a concepção de cultura da modernidade guiou a criação dos sistemas escolares modernos. Essa concepção apresenta três traços principais: “otimismo (crença na maleabilidade ilimitada das características humanas), universalismo (crença em um ideal aplicável a todas as nações, lugares e tempos) e etnocentrismo (crença em que o ideal concebido na Europa do século XVIII deveria ser estendido a outras partes do mundo)” (id., p. 126)19. Atualmente, surgem outras concepções de cultura

19 No original: “optimismo (creencia en la maleabilidad ilimitada de las características humanas),

universalismo (creencia en un ideal aplicable a todas las naciones, lugares y tiempos) y etnocentrismo (creencia en que el ideal concebido en la Europa del siglo XVIII debería ser extendido a otras partes del mundo)”. Tradução minha.

e Educação, mais voltadas para as diferenças e menos para universalismos e, principalmente, etnocentrismos, como se verá a seguir. Nas palavras da autora, “um primeiro passo diz respeito à necessidade de desconstruir todos os processos escolares que permitam colocar em evidência a perspectiva cultural que os orienta e fazer emergir o universo heterogêneo que constitui os processos sociais” (id., p. 127)20. É necessário, ainda, afirmar que, segundo Martínez (2005, p. 129):

Quando falamos de campo escolar estou incluindo a educação superior universitária, que também está exposta aos desafios de uma política cultural emancipatória. Contudo, esta não se realiza apenas através de políticas de reparação histórica, mas também por mudanças nos fundamentos dos processos que a configuram, reconhecendo racionalidades alternativas e novas articulações contra hegemônicas21.

Todos aqueles que compreendem que a cultura é intrínseca às práticas sociais e que essas devem levar em consideração as diferenças fazem parte do que se denomina de Multiculturalismo. Na seção seguinte analisarei os tipos de multiculturalismo e, mais especificamente, a interculturalidade, entendida como uma das direções na qual o multiculturalismo é entendido e vivenciado e que adotarei nesta pesquisa.