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Marcas particulares que conferem traços de açorianidade

2. Desenvolvimento

2.2. Violante de Cysneiros: heterónimo ou pseudónimo

2.2.5. O Milhafre e Quando o mar galgou a terra: diálogo com os textos de

2.2.5.1. Marcas particulares que conferem traços de açorianidade

A imagética de muitos escritores açorianos, e até de alguns açorianizados, como é o caso de Alice Moderno88, na ótica da açorianidade, têm sido alvo de variadíssimos estudos e abordagens. Celestino Sachet afirma, a respeito de Côrtes-Rodrigues, que

Terra-Água-Noite, [são] três dos elementos primordiais que estruturam uma concepção filosófica do Poema que ultrapassa o Fazer Poético do Autor para assumir-se no próprio destino do Homem-Ilha deste Arquipélago, sempre a viver o Eterno conflito entre a Insularidade, a Migração o Silêncio da Distância na Décima Ilha, nunca vivida porque sua presença é a soma de todas as ausências.

(Sachet, 1991:164)

Compreende-se, portanto, que esses conteúdos sejam transversais a muitos autores e a igualmente distintas obras produzidas nos Açores ou sobre os Açores ao longo dos séculos.

Vilca Merízio, estudiosa brasileira que haveria de viver alguns anos em Ponta Delgada e que haveria de conviver de perto com a família de Côrtes-Rodrigues e com outros vultos da literatura e crítica literária açoriana, como José Machado Pires e José Martins Garcia, equaciona a existência de literatura açoriana e cita nomes como Daniel de Sá, Álamo de Oliveira ou Dias de Melo como sendo exemplos virtuosos dessa realidade literária, não apenas pelo conteúdo de variadas obras destes, mas pelo tratamento que oferecem a determinados temas. Merízio inflama o discurso ao referir que as obras tratam “do amor e do

exílio, do cerco do mar e da ideia de solidão e lamento dos ilhéus”, procedendo ao estabelecimento de uma ligação evidente com a diáspora açoriana, e anunciando uma listagem sugestiva dos autores “que ficam […], dos que partem […], dos que vão e voltam […], dos vivos […], e dos mortos […], dos viajantes […] dos que chegam para conhecer a terra e dela nunca mais se afastam porque lá lhes ficou o coração […], dos novos […] e dos não assim tão novos”89 (Merízio, 2013:116).

José Francisco Costa” (2016:45), quanto ao modo de sentir ou de se ser insular, revela que “a alma do ilhéu só se percebe mediante verdadeiro entendimento desta relação binominal”, sendo que a relação a que se refere é a dos personagens, ou seja homem, com a terra. Nemésio, citado por Eduardo Ferraz da Rosa, afirmaria, em 1976, que “[s]eja qual for a configuração […] que o povo dos Açores venha a tomar [nesta hora bem trágica da vida nacional portuguesa, a verdade é que ele assume impetuosamente o seu destino]”, pois “o que é notável, imediatamente histórico, é o grau de consciência a que chegou da sua singularidade territorial e cívica”(Rosa, 2004:84). A respeito de Nemésio, da sua obra e da sua poética, principalmente no que diz respeito a Sapateia Açoriana, constata-se que “há e permanece”, como salientou Graça Moura “[…] um sentimento tonificante de insularidade, em afirmada (e política) reivindicação de autonomia, mesmo quando o texto arranca de um propósito de circunstância” (2004:73). Alerta Rosa para o facto de a defesa de uma açorianidade, em Nemésio, ser já anterior a 1932, aquando da publicação do texto “Açorianidade”, na revista Ínsula, e, até, anterior a 1928, quando publica o “O Açoriano e os Açores”, que exporia o Açorianismo “como realidade existente e existencialmente específica” (2004:74).

Neste sentido, são vários os autores que dedicariam atenção à discussão-problemática da existência, ou não, de uma “literatura açoriana”, de Vamberto Freitas, crítico literário, a Onésimo Teotónio de Almeida, ensaísta, ou, até, Carlos Cordeiro, historiador. Defende este último que, naturalmente, esta possibilidade deverá estar associada a uma noção de identidade regional, sendo que esta noção corresponde, como afirmaria Claude-Gilbert Dubois, à “«consciência que os homens têm de partilhar um certo número de bens, de recordações, de valores comuns, de maneiras de viver, de referências a um discurso que recria imagens

89 Os autores mencionados por Vilca Merízio, neste contexto, por ordem de aparecimento no texto, são Roberto de

Mesquita, Urbano Bettencourt, Dias de Melo, Fernando Aires, Natália Corrêa, Onésimo Teotónio de Almeida, Eduíno de Jesus, José Francisco Costa, Adelaide Freitas, Vamberto Freitas, Antero de Quental, Cristóvão Aguiar, José Almeida Pavão, José Martins Garcia, Emanuel Félix, Vitorino Nemésio, João de Melo, Victor Rui Dores, Raúl Brandão, Maria Orrico, Eduardo Bettencourt Pinto, Tomáz Borba Vieira, Sidónio Bettencourt, Manuel Jorge Lobão, Judite Jorge, Madalena Férin, ou seja “os que escrevem nos Açores, sobre os Açores e para os Açores, tratando literariamente da açorianidade literária” (2013:116).

familiares por palavras que não falam a outros»”90 (Cordeiro, 1999:223). Ora, sendo a conceção de “região […] mais uma realidade humana do que uma noção geográfica91, ainda que o caso dos arquipélagos assuma carácter especial” (1999:223), será legítimo afirmar que o desenvolvimento das ideias de região e de regionalismo terá evoluído e crescido com a própria noção que as diferentes ilhas teriam umas das outras e que os seus habitantes teriam uns dos outros como membros de um todo e não como parcelas isoladas do reino e da república. Assim, a própria noção da eventual existência de “literatura açoriana” deverá ser equacionada numa perspetiva diacrónica já que não se poderia falar de uma literatura identitária, por exemplo, no século XV, ou XVI, ou XVII, quando as ilhas eram espaços geográficos e sociais isolados e quando as gentes não tinham consciência, sequer, dos fatores de aproximação ou de diferenciação entre si, de ilha para ilha. Assim,

a identidade não preexiste à região: é um processo que se desenvolve e cujo ponto fundamental é a tomada de consciência regional que se desenrola em torno de fatores como a língua, a geografia, questões económico-sociais, traços culturais perduráveis, evolução histórica.

(1999:223)

Essa consciência terá sofrido um incremento no século XIX e primeiras duas décadas do século XX, como os movimentos regionalistas e autonómicos, a que não estava alheado Côrtes-Rodrigues e restantes agentes políticos e culturais locais, com especial destaque para a ilha de São Miguel e, em segunda linha, Terceira e Faial, espaços que corresponderiam, no século XX, às sedes dos três distritos destas Ilhas Adjacentes92. Curiosamente, Eduardo

Lourenço93, como revela Cordeiro, no decorrer da sua análise às marcas do nacionalismo e do

regionalismo nos Açores durante a I República, questionaria se

«apesar da mesma língua, da mesma religião, de idênticas tradições, que é a do primeiro Portugal que saiu de casa para nunca mais regressar idêntico, não engendraria, com os séculos, uma sensibilidade particular, um destino próprio, uma cultura cada vez mais consciente do contexto em que radica, em suma, uma identidade açoriana, e, com ela, uma vontade que exprimisse em termos adequados ao que ela é, representa e aspira?».

(1999:224)

90 Carlos Cordeiro cita o ensaio “La Région comme Symbole de Médiation: L’Éxemple Aquitain”, presente na obra

L’Identité Régionale. L’Idée de Région dans L’Europe du Sud-Oest, editada em Paris, pela Editions du CNRS, em 1991.

91 Esta ideia também será defendida por Juan Beneyto, na obra Las Autonomias. El Poder Regional em España,

publicada em 1980, pela Siglo XXI de Espanã Editores, Madrid.

92 Esta designação constitucional haveria de ser implementada em 1822, por decreto, e só seria extinta após a Revolução

de Abril e o fim da ditadura. Nesta denominação também estaria incluído o Arquipélago da Madeira.

93 Carlos Cordeiro cita a comunicação “Da Autonomia como Questão Cultural, inserida na obra Autonomia como

Fenómeno Cultural e Político, publicada em 1998, pelo Instituto Açoriano de Cultura, que resulta da compilação das comunicações proferidas na VII Semana de Estudos dos Açores.

A resposta, para nós, já em pleno século XXI, parece-nos óbvia já que os meios de transporte e os meios de comunicação, bem como a reforma política e a existência de uma autonomia e de um modelo de representação regional contribuem, sobremaneira, para uma cada vez maior consciência de um passado, presente e futuro insulares comuns.