• Nenhum resultado encontrado

Os símbolos: o milhafre ou o açor; o mar

2. Desenvolvimento

2.2. Violante de Cysneiros: heterónimo ou pseudónimo

2.2.5. O Milhafre e Quando o mar galgou a terra: diálogo com os textos de

2.2.5.6. Os símbolos: o milhafre ou o açor; o mar

Escreveria Manuel Ferreira que a “palavra Açores” bamboleia “entre o “equívoco” e o “mito”, amparando o seu argumento ao afirmar que “equívoco e erro, por vezes, superam a verdade, constituindo duradouros atropelos à história, resultantes da ambiguidade dos factos ou da falta de provas evidentes e conclusivas” (Ferreira, 2005:35). Tal afirmação surge já que o arquipélago terá ganho a denominação de Açores pela profusão desta ave de rapina aquando

103 As pensões seriam esmolas que se fariam aos mais desfavorecidos, geralmente constituídas por carne de vaca, vinho

da descoberta e povoamento das ilhas, como seria descrito pelo navegador Diogo Gomes, por Valentim Fernandes Alemão ou pelo próprio Damião de Góis; todavia, tal não terá passado de um engano ornitológico pois, “[a]té ver, na versão mais lógica, os descobridores e povoadores apenas vieram a encontrar milhafres e outras aves – e talvez algum açor de arribação, como hoje acontece com muitos pássaros” (2005:35). Certo é que, já em 1578, de acordo com o mesmo autor, é já explícito o reconhecimento oficial do símbolo (2005:36), no uso deste numa “moeda de conto”, sendo tal reconhecimento reforçado pela “provisão régia de 12 de julho de 1578 [que] ordenava aos procuradores dos misteres da Câmara de Angra que «as varas levassem nas procissões e tivessem no açougue ao partir da carne tivessem Açores por armas que não as da Cidade»” (2005:37). O lapso, alimentado pelo mito, seria, assim, perpetuado, embora Nemésio tenha afirmado que “o milhafre foi o primeiro donatário das Ilhas, onde ele ainda hoje permanece atrevido e altaneiro, no seu cochinhar característico de território definido” (2005:37).

Côrtes-Rodrigues não haveria de ver ser hasteada a atual bandeira regional, já que esta seria, apenas, aprovada em 1979, por Decreto Regional, embora a bandeira da autonomia corresponda, com ligeiras alterações, à hasteada, na casa de campo de José Maria Raposo do Amaral, a Casa do Monte, sita à freguesia de Ginetes, nos arredores de Ponta Delgada, em 1876. Graficamente, poderíamos acreditar que os símbolos regionais se limitariam ao seu hino, cuja letra é da autoria de Natália Correia, ou à sua bandeira, ou, até, aos símbolos que esta encerra.

Não olvidamos a dispersão geográfica presente na existência de nove ínsulas distintas, expressa nas estrelas, ou a presença do milhafre, manifestada no açor104. Todavia, outros

símbolos se impõem na história do povo açoriano. Afirma Sachet (1991:173) que “[o] Tempo, para o escritor açoriano, é isto: um estado de não ser-se porque ao não tornar-se o ser deixou de ser. Mas o “mar” que se torna parte da “amargura”, ao não ser mais, apenas, “mar”, não deixa de estar em “amargura”. Se, aponta Mónica Teixeira,“[a] paisagem marítima da ilha da Madeira [se] reflecte […] na obra poética de João Cabral do Nascimento, em quadros que nos desvendam particularidades próprias de uma forma de ser insular”, podemos revelar que o mesmo ocorre nos textos de Côrtes-Rodrigues e de Violante, na descrição recorrente do mar, da vontade de navegar, de pescar. Mais, acrescenta Teixeira que “[a] presença da ilha revela-se através do desejo nostálgico de fuga, de quem se apega à

104 Na obra O Açor Eterno, de Manuel Ferreira, de 2005, é possível verificar, ao longo de 18 capítulos, diferentes

manifestações e utilizações do açor, desde a representação do açor na diáspora, do açor no artesanato ou, até, do açor no desporto. É uma obra de referência para a compreensão desta temática, estando profusamente ilustrada.

ausência do que está para além do mar, para além da linha do horizonte, numa vontade incoerente e forte de partir e regressar” (Teixeira, 1998:48), de que são exemplo as personagens de Quando o Mar Galgou a Terra e de O Milhafre.

Na realidade, o mar é mais do que emblemático, daí que a sua referência e o seu tratamento extravase o campo da literatura e seja, quase, omnipresente, em obras que versem a economia, a política, a biologia, insular, regional e nacional, entre tantas outras áreas. Tem sido, ao longo dos séculos, um fator vital na economia e na sobrevivência insular. Não é, apenas, um elemento que exerça influência ao nível da psique ilhoa, mas sim, também, ao nível da subsistência, dos negócios, da estratégia política nacional e internacional, ou, até, da manutenção do poder, pois, como afirma Helder Lima105, citado por Cordeiro

[s]e até 1580 os Açores estavam intimamente ligados ao intenso trâfego [sic] marítimo, quer pelos abastecimentos fornecidos às frotas delongo curso, quer, ainda, pela sua integração nessa vasta rede comercial, e se durante a ocupação espanhola assistimos a revalorização […] temos de acentuar que essa posição chave vai continuar e manter a sua importância, não somente táctica, mas também comercial, após o movimento restaurador […].

(Cordeiro, 1992:8)

Em boa verdade, e como foi possível enunciar e exemplificar aquando de uma análise atenta das obras dramáticas de Armando Côrtes-Rodrigues, se o mar tem constituído, ao longo da História, elemento de separação inter-ilhas, tem sido, na mesma medida, elo de ligação com o exterior, devido, fundamentalmente, à posição geográfica das ilhas, e, portanto, à importância que assumiram no apoio às ligações transatlânticas, principalmente nas épocas da navegação à vela e a vapor” (1992:9), que os açorianos bem souberam aproveitar no movimento emigratório106.

Curiosamente, Almeida Pavão, aquando da análise do Cancioneiro Popular dos Açores, condiciona a leitura pela apresentação fundamentada da perspetiva comum de Luís Ribeiro e Carreiro de Costa que defendiam que, quanto ao mar, “na aparência, a influência deste [seria] insignificante, dado que o açoriano é essencialmente votado aos trabalhos agrícolas”107,

ideia suportada com a defesa de que o açoriano “«virou as costas ao mar e voltou-se para a

105 A citação de Helder Lima poderá ser encontrada em “Os Açores e o Atlântico nos séculos XV, XVI e XVII”, in

Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, V. XXXIV, Angra do Heroísmo, 1976, p. 151.

106 De forma a uma melhor compreensão acerca dos elementos influenciadores na criação de história insular, sugere-se

o trabalho de José Ener “A Dominação das Origens na História da Sociedade Açoriana”, também publicado no Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, no volume XLI, em 1983.

107 Luís Ribeiro procederia a tal afirmação aquando da redação do estudo “O Mar no Cancioneiro Popular dos Açores”,

terra»”108(1981:67), opinião esta que não secundamos. Poderemos, isso sim, concordar com

Luís Ribeiro que indica que “encontr[ou] no mar outra espécie de ascendentes, que entraria como componente «no moral dos homens que habitam o arquipélago»” e que o próprio Almeida Pavão consideraria ser de “ordem psicológica” (1981:67/68). Certo é que Nemésio, reconhecido teorizador, afirma que, como aponta Pavão, “para os ausentes das Ilhas, […] o mar será sempre o seu «conduto anímico»”, parecer completado por Luís Bernardo Leite d’Ataíde quando assevera que “«encerrado no interior dos continentes sente-se torturado pela saudade de rumorejo das ondas e nos seus olhos vive sempre animada a imagem imponente do seu dorso grandioso»” (1981:68). Como revelaria, Caetano Valadão Serpa, o açoriano, “[c]omo os seus antepassados que vieram habitar ilhas despovoadas, em pleno Atlântico […], não receia expandir-se pelo mundo e habitar qualquer parte do globo”. Contudo, apesar dessa aparente facilidade em partir, “nunca esquece o meio ambiente quase microscópico onde veio à existência e, embora plasmável a todas as situações onde habita, geralmente não deixa apagar os traços inalienáveis que que o marcaram na sua ilha de origem” (1978:10).

A colocação em evidência de símbolos que se pudessem facilmente associar à experiência açoriana não representa, como já vimos anteriormente, uma atitude histérica e insensível de afastamento dos valores nacionais ou de rutura com as características pátrias que conferem coesão ao todo. De forma a preservar a identidade nacional, é necessário conservar as especificidades regionais. Côrtes-Rodrigues tem consciência dessa necessidade e coloca em marcha um projeto pessoal e coletivo de salvaguarda dessa unicidade através da sua intervenção cultural e dos seus escritos, tanto em nome próprio como através dos seus diversos pseudónimos. Severo de Verdades, na rubrica “Migalhas”, simula, precisamente, um diálogo entre dois amigos cujo tema central será o da preservação identitária regional e o papel da elite nessa dita atitude consciente e coletiva. Ora veja-se: “-A emigração tem-nos desnacionalizado, andamos a perder as últimas cantigas do nosso riquíssimo cancioneiro açoriano”. Esta preocupação é praticamente omnipresente na sua vida pessoal e artística. Note-se, como será visível na Tábua Cronológica em anexo, que o jornal onde participa Severo de Verdades, Violante de Cysneiros e outros pseudónimos apresenta uma rubrica dedicada, precisamente, ao Cancioneiro Popular Açoriano, que conta com 26 textos coligidos em três ilhas distintas, e que, embora o autor da recolha não surja identificado, nos leva a crer

108 Francisco Carreiro da Costa haveria de concordar com Luís Ribeiro, evidente no contributo que daria para a obra As

Tradições Orais Portuguesas e Brasileiras em Verso, editada pela Universidade do Sul da Califórnia e organizada por Joanne B. Purcell, em 1976, intitulado “A emigração no Cancioneiro Popular Açoriano”.

que seja da responsabilidade do próprio Côrtes-Rodrigues. Nessa mesma contribuição de que demos conta ainda agora, o interlocutor responde: “- Como vamos remediar tanto mal?”. A resposta, não se faz esperar e revela um pensamento concretizado: “- Creando a falange aguerrida dos artistas, ala de namorados da sua terra para levarem ao povo pela poesia, pelo teatro e pela música, pela conferência o sentimento regional” (A Actualidade; n. 200:2). Já uns números antes, nesse mesmo jornal, mais concretamente na edição de 26 de setembro de 1923, no número 197, o criptónimo X apresenta a entrevista realizada ao afamado compositor e maestro jorgense Francisco de Lacerda sobre música e folclore, nomeadamente o açoriano, na qual este realça a necessidade da preservação do mesmo. Domingos Rebelo, no quadro que já enunciamos, Os Emigrantes, retrata, assim, um fenómeno social que não seria estranho aos açorianos; aliás, seria um fenómeno que, por si só, contribuiria já para a sedimentação de um certo ideário açoriano: a emigração como condição inerente e comum ao povo açoriano.

2.2.6. Poesia de Côrtes-Rodrigues, pós-Violante, e o diálogo (intertextual?) com os