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O modo particular de vivenciar e revelar a ilha e a insularidade

2. Desenvolvimento

2.2. Violante de Cysneiros: heterónimo ou pseudónimo

2.2.5. O Milhafre e Quando o mar galgou a terra: diálogo com os textos de

2.2.5.2. O modo particular de vivenciar e revelar a ilha e a insularidade

Afirmou José Martins Garcia, num dos textos que assumiria como “quase teóricos” que o “clima…está incluído no meio, mas flutuantemente no momento” (Garcia, 1999:67), visão que explicaria que um indivíduo, e portanto um escritor, experienciasse o próprio ambiente e o seu estado de formas distintas, condicionadas, pois está, determinado pela conjuntura temporal, ou seja, pelo próprio instante de tempo.

Natália Correia, por sua vez, revela que

Ilhas haverá muitas, letras de um dúbio beija-flor salpicando o mapa como a realidade dividida em horas. Um geográfico fascínio de pistolas abandonadas em bancos públicos, numa violenta imposição das mãos magnéticas dos suicidas. Mas isso não é ilha, é habitar a ilha, subtraindo-a à sua pulsação de jóia trabalhada pelos dias inavegáveis do regresso. Por isso, com a cumplicidade do peso húmido da morta, eu digo que a rigor só há uma ilha, a única, a minha, meu mistério selado pelos arbustos altivos da desaparecida.

(Correia,1999:315)

Natália seria uma ilha singular e teria a sua forma particular de experienciar a ilha, como qualquer humano experienciaria experiência de forma diferenciada, embora exista, e sobreviva, sempre, um substrato comum. Na passagem anterior, Natália ataca-nos com a violência da história individual de Antero que é, em parte, a história dos Açores e, em parte, o reflexo da produção insular e insularizada. Antero suicida-se na sua ilha de origem, num banco de jardim, de costas voltadas para o Convento da Esperança, no qual, durante o ano inteiro, se venera a imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres. Talvez ele próprio procurasse o seu milagre pessoal, talvez buscasse o seu “Palácio da Ventura” imaterial e etéreo. Natália alude frequentes vezes à sua Ilha-Mãe, ou Mãe-Ilha, a ilha da sua meninice. Como revelaria Driver “[l]ogo no primeiro conto, “Mãe, mãe, porque me abandonaste?” surge “a importância simbólica da paisagem vulcânico-insular, aqui representada por uma ilha açoriana não nomeada (sem dúvida a São Miguel natal da autora),” ideia que “é sublinhada”, sendo que “a mesma imagem voltará a desempenhar um papel central no último conto, “A Ilha de Circe”, dessa vez sob a forma da Madeira.” Este autor, acrescenta, ainda, que “[n]a primeira narrativa, a ilha lembrada da infância da narradora apresenta-se como

um refúgio paradisíaco cujas águas são povoadas de personagens míticas e deidades protectoras” (Driver: 2017:33). Mais, no texto poético “Poema Posto em Saudade”, da autoria da própria Natália, o leitor poderá tentar encontrar a figuração dessa longínqua ilha de São Miguel, perdida na bruma da lembrança e ocasionalmente recuperada:

“Em Ilha verde e anilada/ Por farturas de pastel, Deu a criação morada/ Ao Arcanjo São Miguel. Que lânguida maravilha/ De terra no mar deitada Quando a luz enlaça a Ilha/ Pela cintura delicada! Matas silentes e lúcidas/ Do bosque primordial. Paz de pastos e poentes,/ carmins que purpuram o mar. Ponta Delgada brunida,/ Engomadas ruas brancas. No basalto endurecida,/ Amável nas águas francas. E, enfim, por rampas de vinhas,/ Em Vila Franca do Céu Místicas rochas marinhas/ Em frente, um frade: O Ilhéu.”

(Correia, 1999:434)

Aliás, a “ilha” simbólica é uma constante em Natália; é a “Ilha esquecida”, a “Ilha encantada”, a “Ilha não descoberta”, a “Ilha desconhecida”, a “Ilha distante”, que só tem um habitante, um “Eu que lá viv[e] de noite...” (1999:50). Será possível encontrar uma certa fusão entre sujeito lírico e poeta, como gostaria Natália Correia de ser denominada, pelo reforço da primeira pessoa do singular evidente na repetição do pronome pessoal “eu”. São vários os textos poéticos dedicados à ilha, a Ilha Mãe, de que seria exemplo um quinteto presente em Sonetos Românticos, de 1990. Nessa obra podemos ler “Limão aceso na meia- noite ilhada,/ O relógio na torre da Matriz/ Põe o ponteiro na hora atraiçoada/ Da ilha que me deram e eu não quis”, a ilha que encerra uma Ponta Delgada de “alvos umbrais”, uma ilha de “pastos”, de “calhau e de onda encabritada” (1999:578), aquela ilha que foi – ou poderá ainda ser, para Natália – a “ilha das fadas” (1999:579).

Há, pois, uma relação maternal, umbilical até, entre Natália e o solo insular, a essência da insularidade. A distância física e o apartamento temporal condicionaram a experiência e, porventura, a exposição e transmutação dessa em textos, mas não condenaram a relação. Daniel de Sá haveria de escrever, em 2007, Santa Maria-A Ilha-Mãe, representando com minúcia São Miguel em tantas outras obras. Onésimo Teotónio Almeida, por tantos citado,

revela que “[a]sua escrita, reveladora de vasta erudição, é muitas vezes ilustrada com histórias reais perspicazmente captadas na ilha, sobretudo na sua Maia”94.

Existe em Côrtes-Rodrigues como que uma inevitabilidade telúrica de representação da terra, imposição visceral que perseguiria outros autores açorianos, como Dias de Melo cuja “[f]onte incontornável e omnipresente na criação literária […] é constituída pela representação da terra; no caso, da terra açoriana disseminada pelas nove emblemáticas ilhas atlânticas, mas não só” (2016:23). Se “Daniel sempre alertava aos jovens escritores […] que não cedessem aos lugares comuns quando se tratava de «cantar a terra»” (2016:23), já tal empreendimento tinha posto em marcha Côrtes-Rodrigues, décadas antes, mesmo ao escrever Cântico das Fontes ou em Em Louvor da Humildade.

Em ambos os autores, como em muitos outros, como Dias de Melo, Madalena Férin, Almeida Firmino ou Ruy Galvão de Carvalho, “nessa representação [do real] estão presentes os aspectos mais visíveis da geografia, a que não faltam o mar, o rochedo, os terramotos, os vulcões, as enchentes, bem como as pastagens, os animais do campo e tantos outros itens, [que] seria de estranhar se faltassem” (2016:24). Revela, ainda, José Francisco Costa que,

a respeito de “[n]o caso de Daniel de Sá, e a exemplo de outros autores açorianos, a ilha é o espaço de eleição de grande parte da criação literária que procura materializar tal finalidade; e o homem, é o açoriano (e, no caso, o micaelense) que, e pese embora a especificidade da sua insularidade, acaba por revestir-se de universalidade.

(2016:44)

E também de universalidade são constituídos os textos de Armando Côrtes-Rodrigues, Violante de Cysneiros e dos seus restantes pseudónimos. É o homem que abordam e a sua essência, nas suas inevitáveis buscas e ânsias.

Diz-nos António C. Silva que

[n]uma ilha […] as pessoas (e, em particular, os poetas e escritores, que registam as vivências diárias na escrita) não representam tanto a terra e a serra como o imenso mar que parece limitá- los, pois tudo o que existe numa ilha, inclusive a sua própria essência, está ligado ao mar que cerca e que a adorna, que lhe dá vida e que a intimida.

(Silva, 1998: 34)

94 A referência realizada por Onésimo Teotónio Almeida a Santa Maria e o facto de esta ser o mote para a criação de

Santa Maria-A Ilha-Mãe justifica que o Blogue das Bibliotecas Escolares da Ilha de Santa Maria proceda ao registo da frase de Onésimo e a uma breve apresentação de Daniel de Sá, visível em http://viagemdesaberes.blogspot.com/.