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2. Desenvolvimento

2.2. Violante de Cysneiros: heterónimo ou pseudónimo

2.2.1. Violante e a revista Orpheu

2.2.1.2. Uma abordagem modernista

64 Exposição Orpheu 100 anos – “Nós, os de Orpheu”.

65Online a partir de Textos de Crítica e de Intervenção . Fernando Pessoa, Lisboa, Ática, 1980, p. 227. in

Se a nova corrente trouxe uma renovada abordagem temática, também inspirou e alimentou uma inovadora estratégia de tratamento da estrutura da língua, em aspetos particulares, já que, a título de exemplo, “[c]onexamente, desponta um dos traços que distinguirão a poesia modernista: uma nova estilística de pronomes da 1.ª pessoa do singular (possessivos e, sobretudo, pessoais em conjugações reflexas)” (Pereira, 1979:167). Aliás, o próprio Pessoa, pragmático, “já define «a nova corrente literária portuguesa» que pela revista se manifesta”, como Martins verificaria mediante a investigação aprofundada do espólio do criador da heteronímia e que cita no seu trabalho, como a seguir se apresenta:

Partindo em parte do symbolismo, em parte do saudosismo portuguez, um pouco também, sem dúvida do cubismo e do futurismo, esta corrente consegue, porém, realizar uma novidade, e através das várias modalidades apresentadas pelos diversos poetas e prosadores, pouca relação parece ter com as correntes de que parte. […] A princípio o que mais extranho parece é o modo- de-expressão dos novos poetas e prosadores portugueses, que, quebrando com todas as normas tradicionais, estão creando um novo modo-de-expressão.

(1994:156)

Porém, como aponta, e habilmente, ainda, Martins, “[n]o primeiro número de Orpheu nenhum ismo é citado, nem na introdução de Montalvor outras ideias se explicitam além do «princípio aristocrático» e um inexplicado «ideal esotérico»”. Mais, acrescenta Martins que “[j]á o segundo número é, desde a página de rosto, marcada por três adjectivos: «vertígica» (a novela de Raul Leal); «interseccionistas» (os poemas de Pessoa) e «futurista» (Santa Rita Pintor)”. Há como que uma consciencialização coletiva que se vai firmando com o passar dos meses e a chegada das diversas contribuições oriundas das mais variadas fontes. Aliás, para o número que nunca chegaria a ver a luz do dia, nos moldes em que Pessoa pretendia, Orpheu 3, que Pessoa ainda pondera converter em jornal, os «ismos» consolidam-se e clarificam-se já que este impele a participação daqueles que se revejam nas linhas orientadoras desses modernos «ismos», relevadores de determinado sistema literário: “Todos aquelles cujo esforço auxilia o Sensacionismo poderão colaborar em Orpheu” e “Todos os sensacionistas, propriamente taes, assignarão com essa indicação os seus escriptos” (1994:160).

Verificaremos, ainda, de acordo com Pereira, que, e relativamente à escrita de Alfredo Pedro Guisado, companheiro de Violante na proeza órfica, “a escrita modernista firma anteriores manifestações, com novas justaposições, novas metáforas, insuflando ousadias nas heranças esteticista e saudosista”, de que são exemplo passagens como “Com tules de ânsia vestidos”, e “novas regências anómalas («É quando o sonho de ver-te», «Meus gritos»)”, ou, ainda, “novas pronomizações enfáticas da 1.ª pessoa do singular («Bruma de mim», «Sonho de mim», e «Gritos de mim»)”, de que seriam exemplo os versos retirados de «Balada de Salomé»” ou a passagem “«Olhei para mim. Esqueci-me.», presente em «Última Balada»

(1979:170). Essas características não são exclusivas de Guisado e contaminam, também, a escrita de Violante, em Orpheu, evidente quando esta escreve “-Sou já só Pharol de Mim!” (1984:59), em junho de 1915, ou em “Nada em Mim é necessário […] Tudo tão feito de Mim” (1984:62), nos poemas dedicados a Álvaro de Campos e Pessoa, ou, ainda, e principalmente, em “[…] …E o Ver-Me/ Toda de curva e de pé/ Era o sentido de Ser-Me” (1984:63), dedicado a Alfredo Pedro Guisado, também com a mesma indicação temporal, em Orpheu 2.

Acrescente-se que, ainda, “[e]ssa escrita modernista acentua o gosto pela brevidade dos sintagmas geralmente nominais”. Seabra Pereira (1979:170) exemplificaria tal estética sintática com versos como “«Negros braços. Preso neles», «Nenhum porto…/ Nenhuma nau.» […]”, de Alfredo Pedro Guisado, mas este é um modelo que, em Orpheu, Violante também seguiria com frequência e astúcia, de que são exemplo versos como “Marinheiro! Ilha perdida!” ou “Curvo os olhos doridos…” ou, ainda, “Curvas as mãos e os braços…” (1984:63). Violante está consciente da estética e dos modelos, apesar de, como afiança Galhoz (1984:LXII), “[c]omo arte, Orpheu foi projectado independente e dentro do princípio de não ter nenhum, e o seu objectivo era apresentar um meio condigno em que todos se afirmassem”. Violante afirmar-se-ia, também, por afirmar os outros nas dedicatórias e nos poemas que lhes oferece. Prossegue, ainda, Pereira, ao expor que o modernismo “reinventa a metáfora pelo imaginário naif”, facultando, novamente, exemplos meticulosamente extraídos de poemas de Guisado: “«Lembra-me a Lua, vendo-a de dia,/ Uma das bolas/ De sabão/ Que Deus fazia/ Quando era pequenino p’lo sol-posto.»” (1979:170), sendo que, também neste caso, os textos de Violante poderiam ser tidos em conta como modelos, nomeadamente quando esta se refere à “agulha com que bordava” ou às “contas do [s]eu rosário”(1984:62).Acrescenta, ainda, este autor que a corrente modernista demarca-se “em especial, pela intrusão do então prosaico: «A morte, avental da vida», «Meu coração, o cabide/ Onde penduro minha Alma», «os lírios (…) Rolhas de frascos cansados /de guardar perfume-Deus» […]” (1979:170), não no sentido de que exista um afastamento relativamente ao gosto e uso do verso, em detrimento da prosa, mas sim no que diz respeito ao emprego de vocábulos que, até então, poderiam ser considerados excessivamente simplistas, comuns, normalizados e que, pelo jogo sintátito, semântico e imagético empreendido pelos autores, adquire riqueza e significação. Assim,

tal como o eu se recusa o conforto da sua mais fácil e harmónica identidade, também a nova escrita recusa – paradoxal convergência entre a busca do Absoluto e o ressumbre do quotidiano – a beleza hierática dos cisnes wagnerianos e até a composta inteireza dos cisnes caseiro: «Cisnes de loiça quebrados,/ Poisados sobre os espelhos.».

(1979:170)

A estética modernista preenche e habita diversos géneros e modos literários, bem como diversas formas de manifestação artística. Temáticas como a “importância do ideal, da sensibilidade que se sente enlouquecida, da intelectualização das emoções, da poesia como um desnudamento da verdade ou do sofrimento com orgulho de o ser” (1994:112), recorrentes, por exemplo, na literatura epistolar de Sá-Carneiro, precisamente na correspondência dirigida a Amadeo de Sousa Cardozo, estão bastante vívidas nos dois números de Orpheu, nomeadamente nos textos de Violante, e ganham destaque, não só pela estrutura frásica, mas por outros artifícios conscientes, como o vocabulário empregue e a maiusculização de nomes, pronomes, adjetivos e verbos. A ação de Violante é exímia no que concerne à capitalização de vocábulos que assumem destaque nas suas composições. Nos poemas dedicados a Álvaro de Campos, por exemplo, coloca em evidência “Pharol”, “Outro”, “Mundo”, “Mim”, “Alma”, “Linha”, “Asas”, “Espaço”, “Morte”, “Além”, “Sombras”, “Alamedas”, “Pontes”, “Auzente”, “Infinito”, “Eternidade”, “Presente”, “Verdade”, “Futuro”, “Fui”, “Sou” e “Serei”. Desenha-se, portanto, ao longo dos quatro poemas uma imagem difícil de ignorar, marcada por um subtil esquema antitético. Passado e futuro anulam-se pela vivência verdadeira do Presente em constante mutação. Só a consciência do momento presente, e de si, contribuirá para a unificação da existência do «eu», que se afirma pela conjugação do “Ser” no pretérito perfeito, no presente e no futuro do indicativo. A luz, esta, é imorredoura, mas, como um farol, transitória, única, já que o sujeito lírico assume que “[s]ou já só Pharol de Mim” (1984:59). No intervalo da luz do farol, existe o território das sombras, talvez da morte, e, após este, voa a alma sobre a linha do espaço, que existe porque é própria vida, rumo ao além.

Violante, nas suas contribuições em Orpheu, não está alienada, nem o poderia estar, da estética modernista. Tal como já foi mencionado quando abordámos a correspondência, essencialmente a trocada entre Fernando Pessoa e Côrtes-Rodrigues, constatamos que há traços estéticos comuns, que a escrita deste movimento alicerça-se, formalmente, na edificação de parágrafos breves, ocasionalmente compostos por sintagmas verbais ou nominais, e a inserção irregular, mas metódica, de versos soltos, sinal, também, de liberdade do texto, afastado da obrigatoriedade da rima, mas nunca alheio aos fatores de ritmo. É, ainda, evidente, o uso da exclamativa enquanto estratégia de simulação da declaração verbal do enunciado escrito e Violante fá-lo recorrentemente, intercalando-o com a introdução de frases sincopadas. Texto e leitor, ondulam, assim, embalados pelo ritmo entusiástico de “Só o farol

é real!”, “Sou já só Pharol de Mim” e “Para além d’aquelles montes/ Existe apenas Espaço!”, quebrado por “Toda a minh’Alma se prende,/ Bate as asas – esvoaça…” e “Passado nunca passou,/ Futuro não o terei…”, ou “Que o sangue das minhas veias/ Já creou papoulas rubras…” (1984:59-62). Tanto as exclamativas como as frases sincopadas são reveladoras de momentos de consciencialização e afirmação por parte deste eu poético dilacerado. Como declararia Martins66, “[a] fusão dos géneros é um traço de escrita que vai marcar o Modernismo de Raul Leal, Almada ou Pessoa, que passam da filosofia em verso ao poema em prosa, da consideração política ao manifesto e à ode sem solução de continuidade”67 (1994:119). Podemos perceber na produção literária assinada por Côrtes-

-Rodrigues e por Violante, no futuro pós-Orpheu, que talvez nesse aspeto o autor se tenha mantido moderadamente fiel ao preconizado pelo Modernismo, em diversos textos, como será perceptível nos existentes nos jornais insulares A Actualidade e O Autonómico, por exemplo.