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capítulos mecânica

1.1) MECÂNICA DOS SÓLIDOS

Resumo

“Político”, na arte, remete a uma situação simbólica movediça. Tentaremos ver o que se diferencia e ao mesmo tempo se prolonga na relação que a arte nunca deixou de ter com a política na sua história recente, entre Kaprow e Beuys e os “coletivos” atuais que reúnem artistas sem arte ou não-artistas com arte. A arte “política” é presa nas contradições ligadas ao fato de que a intervenção real nunca deixa de recorrer aos rituais da arte na hora em que se pretende sair dela.

Palavra-Chave arte - política - real 7

Assim resume o crítico de arte Stéphane Huchet as intenções de seu texto “A elasticidade da arte para com a política: breves bases críticas”, texto que tomo para cotejamento devido a sua curiosa metáfora do “elástico”.

Para o crítico, a arte que, ao procurar afirmar-se política, trama sua própria desaparição, carregaria uma espécie de contradição: tal afirmação não poderia ocorrer sem recorrer aos rituais da arte que, no exato momento em que se pretender-se-iam diluídos, retornam a campo para estruturar a visibilidade da ação diluidora. Dessarte, o artista, ao ficcionalizar sua diluição política na vida, nada mais faria que esticar um “elástico” do enquadramento

7 HUCHET, Stéphane. A ‘elasticidade’ da arte para com a política: breves bases críticas. In: Anais do XXX Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte. Campinas: 2010, p.1096. Disponível em: http://www.cbha.art.br/coloquios/2010/ anais/site/pdf/cbha_2010_huchet_st%C3%A9phane_art.pdf p.1096. Acesso em: 01/09/2014

da arte até à vida, que, tensionado até certo limite, só pode continuar se retornar ao ponto original de seu repouso, isto é, retornar ao campo da arte. “Trata-se de uma arte que mantém sua diferença na hora em que fala em se auto-diluir no processo geral da vida”8

O autor nos diz que sua noção de elástico deve-se à leitura de Jacques Rancière, para quem a

arte política, quando agita a bandeira de seu engajamento, nunca se esquece de manter um mínimo de visibilidade para que seus protocolos sejam percebidos. (…) A arte mostra, como arte, como pretende se auto-suprimir. Trata-se de uma arte que mantém sua diferença na hora em que fala em se auto-diluir no processo geral da vida.9

Ele retoma também, para sua base crítica, os argumentos de Dominique Château, para quem a evolução histórica e social do artista marca, precisamente, uma instituição da “diferença”, presente mesmo quando esse artista procura trabalhar no limite de sua indiferenciação com o social. Fundamental para a noção do elástico, portanto, seria marcar o movimento que vai de um lugar até o outro sem que, entretanto, o lugar da partida seja definitivamente abandonado. Partir da arte até a vida conserva sempre um limite máximo que, por sua vez, seria conveniente não ser rompido.

[O artista] operando no horizonte da fusão no tecido indiferenciado da sociedade, ele estica o elástico da arte até seu máximo ponto de resistência, mas sem levar a ação de romper com a arte. Isso corresponde a situação de um oximoron institucional e simbólico. (…) Ele restaura a ficção de sua imprescindibilidade social na hora em que trabalha algumas formas que evidenciariam o seu desejo de renunciar a sua função e à ficção de sua irredutibilidade. (...) Para mim, impensável é portanto a figura do artista que, para falar da fusão com o real, recorre aos recursos da arte e ao mesmo tempo nega que só pode dar sentido à sua supressão ou diluição na vida nas formas de arte. Hoje, muitos “coletivos de artistas” estão frente a esse desafio insolúvel de querer fundir e dissolver a arte na vida concreta, porém só podem adotar essa posição e estruturar a sua visibilidade a partir de uma posição artística.10

O autor reconhece que a relação entre a arte e a política é “um ponto crucial da história da identidade da arte desde seus primórdios”11, onde permaneceria sempre em

8 Ibidem. 9 Ibidem. 10 Ibidem. 11 Ibidem.

questão, aqui revela-se outro ponto em comum do autor com Jacques Rancière, as “partilhas de responsabilidades na ou para a governança humana”12. O século XX, por sua vez, segundo

o crítico, teria sido marcado por uma divergência quanto à função da arte: de um lado, ela teria servido para estruturar uma isonomia do comportamento social (governança de cima); de outro, a arte buscaria marcar justamente a diferença individual, e teria buscado “criar as condições de possibilidade de uma governança de si por si próprio.”13 Para lá, seria possível

reconhecer toda o imenso uso ‘político’ da arte pela propaganda religiosa ou laica - entre Luís XIV, a Onu, as prefeituras e repartições públicas, haveria um uso análogo, em resumo, “Tratava-se do exercício de um poder de transmissão, a proposta sendo de levar os súditos ou cidadãos a interiorizar os valores. Com a arte moderna, os valores não serão mais propostos da mesma maneira, serão muito mais objetos de propostas criticamente construídas pelos artistas para abrir a consciência do público, responsabilidade (moral, cultural, social, política) compartilhada.”14 Uma situação em que se observaria uma mistura complexa entre as duas

apologias teria sido a ideologia produtivista das vanguardas russas de 1918-22, nas quais às vontades sociais somavam-se ou suplantavam-se investigações radicais sobre a forma cujo fim último exprimia-se como integralmente político: inventar o “homem novo”.

Segundo o autor, seria necessário, para compreender uma arte política compreender, primeiro, o que seria a “política da arte”. Joseph Beuys teria procurado encenar uma didática singular: “e a arte seria responsável pela disseminação do princípio de criatividade nas pessoas.”15. Tal didática, entretanto, não estaria em essência desligada de qualquer perspectiva

totalizante, messiânica, na medida em que o artista ainda pensava a arte em termos de liderança do processo de reorganização social. Em jogo estaria, portanto, uma deliberada vontade “menos vertical que horizontal. A arte serve para abrir e inaugurar o novo campo, ampliado, da criatividade humana. Inclusive, esse trabalho, depende claramente da intermediação do artista, cuja função encontra-se reforçada”16. Uma visada diferente para a arte teria o artista

Joseph Kosuth. Para ele, seria impossível transformar a consciência política em algo exterior à arte. Arte, sobretudo quando questiona a si mesma, é sempre inerentemente política, na medida em que ela é impossível de ser exercida fora de um contexto. “Ser político em arte significa ‘entender o que é arte, e não contentar-se em utilizá-la tendo em vista um certo ‘resultado’”17 12 Ibidem. 13 Ibidem. p.1096 14 Ibidem, p.1097 15 Ibidem, p.1099 16 Ibidem. 17 Ibidem.

O objetivo de Huchet ao longo desse texto teria sido desmontar, através de um breve recorte histórico da trajetória política da arte, certa apologia recente da arte dita “política” ou de “guerrilha”, que se julgariam libertos de todo enquadramento estético ao afirmarem-se como seres plenamente diluídos, integrados, à vida - vida cujas questões seriam, enfim, mais importantes que aquelas formais e/ou específicas do campo da arte.

Hoje, muitos artistas usam o termo ‘político’, muito abrangente, para abrigar a questão da relação da arte com a sociedade, do impacto de suas realizações, reciclando a velha questão da relação entre arte e vida, tão forte no início do século XX. Muitas vezes, o uso desse termo serve, inclusive à não problematização de seus limiares e de seus caminhos de aproximação. Assim, o adjetivo ‘político’ é associado a - ou, como conceito vazio, legitima, sustenta ou substitui - uma certa teoria do choque estético, na decorrência das modalidades performáticas que surgiram nos anos 1960. Ele serve como predicado de uma arte que olha como não dignas de tal predicado as manifestações artísticas que operam ainda dentro de preceitos formais mais plásticos e menos “performáticas”, ou que seriam desprovidas de “interação” com a sociedade ou “as comunidades.18

Para o autor, tal postura resultaria inevitavelmente em um malogro, pois, metendo- se em um oximoro insolúvel, acaba ignorando e perdendo o poder político inerente da arte. Para dizer-nos, brevemente, o que seria, enfim, tal política, Huchet retoma alguns textos que versam sobre a arte (prestemos bem atenção no até e no sobre). Ele conclui, junto a Rancière, que a “arte é política por sua capacidade interna de propor reconfigurações do sensível, do legível e do dizível”; junto a Joseph Kosuth, que a arte seria “política como “concepção situando-se (…) no seio do sistema significante da cultura”; ou ainda, junto a Allan Kaprow, que ela consistiria em “No entanto, se a política da arte consiste em transmitir uma experiência fonte de valores, ela “não é somente possível, mas necessária. É o novo meio de persuasão. E a persuasão leva a uma verificação do contato do artista com o mundo”. Sua derradeira visão acerca da potência sincrônica da arte é: “O poder de arte como poder transmissão de experiências e fonte de disseminação de valores. Sem dúvida, sua função de sempre. Sua política de sempre”19.

Interpreto, enfim, que o autor quer demonstrar que é urgente reconhecer que a arte sempre foi política a sua maneira, para que se ultrapasse o oxímoro do “enquadramento elástico”. Enquanto não se realize tal consciência, pretender diluir a arte na vida, pretender fazer uma “injeção” de política na arte, permanecerá sendo a elaboração uma ficção paradoxal de fundo falso, onde esse artista não pode fazer nada mais do que, senão, agir de maneira

18 Ibidem, p.1100. 19 Ibidem.

cínica, ao reivindicar a instituição de sua diferença, de sua imprescindibilidade, no exato momento em que diz abrir mão dela em favor do social. Tudo torna-se mais grave quando tal artista o faz buscando negar, tachar como alienada, a arte inconforme do passado.

Concordo em princípio com Huchet: é preciso cotejar tais produções de arte dos “coletivos” com Mondrian ou Duchamp, isto é, exigir deles, uma consciência do eixo vertical ou temporal da arte e uma suposta essência “indireta” política. Concordo, mas apenas até certo ponto, na medida em que compreendo para arte, na relação com seu tempo, não o valor estritamente pedagógico de “disseminação de valores”; pelo contrário, sabendo de antemão que um ser vivo não pode, senão, disseminar valores, creio que a única exigência diacrônica que se pode lançar à arte é que ela deve ser capaz de tornar todas obras que lhe precederam em formas divertidas, cada uma a sua maneira. Com efeito, por exemplo, a força de Beckett se estende até a Bíblia; o mesmo pode ser dito para Francis Bacon e Velázquez, etc. Cildo, por sua vez, teria dito que esta é uma exigência inerente da arte: medir-se com o Tempo.

E deixo logo de concordar com o crítico na medida em que, refletindo sobre Inserções, reconheço nela também uma vontade de se divertir, ordinariamente, com as questões políticas. “Cuidado com o trombadão! Maluf Não!”. Não importaria mais, aqui, os problemas estéticos. Tendo sido eles já evocados, uma vez, pelo artista; um observador pode muito bem despir-se do que, na operação, é indicador diacrônico, e divertir-se plenamente no espaço: nesse caso, qualquer criança, ainda nos primórdios de seu analfabetismo poderia se esbaldar fazendo inserções. A arte não pode funcionar, a meu ver, nos quadros proscritos da governança, simplesmente por que nela há, tão somente, o halo do que nunca foi; e se a arte contemporânea reveste-se do potencial de ação, como o fizeram as vanguardas ideológicas russas, deve-se saber discriminar muito bem o que é discurso do que é, efetivamente, resultado concreto da arte. Não imagina-se como objetos, em geral, inertes, poderia servir no quadro da governança, senão, para apontar no que nela é, o que nunca foi, seria.

E é à luz para essa disposição para a diversão com o fato político puro e simples que creio ser muitas vezes mais razoável, muito antes de tomar uma produção de vontade diluidora como procedimentos operatórios formais e/ou metafóricos, perguntar-se, diante daquela performance cuja proposta é fazer “um pique-nique situacionista na favela”, se ela diverte tanto quanto o feijoadão da Dona Nenê, o festival de Ora-pro-nobis do Sagrada Família, o Sambão da Cacá; se o futebol mesmo é tão bom quanto aquele do domingo em Imbé de Minas - lugares onde as pessoas se reúnem espontaneamente em torno da comida, do esporte, e é claro, em torno também das discussões políticas e do criação do convívio. Seria-lhes, no mínimo, uma comparação mais rica, pois teria de ser feita em conjunto com Dona Nenê, a Sagrada Família e a Cacá, o Imbé - isto é, teria de ser feita partindo do que, no espaço, é formulação de uma diacronia afim à arte: meios de exercício da diversão. Somente

assim, com essa ajuda, poderíamos diferenciar os capazes de propor diversões renovadoras daqueles que apenas se servem do enquadramento artístico para articularem propostas chatas, pedagógicas e panfletárias, expressões de artistas pouco interessados no esclarecimento de sua posição efetiva no mundo. Frederico Morais, aliás, nem precisava dizer-se artista para propor seus “Domingos da Criação” que, em 1971, abria o Museu de Arte Moderna para uma interação direta e recreativa entre público e artista. “Domingos da Criação” também é uma moeda de duas faces: para nós, da arte, uma grande curadoria, uma potente proposição; mas, para os transeuntes, as crianças certamente, algo essencialmente divertido.

A partilha do sensível é feita entre homens, no meio fluido que estabelecem, em próprio ato, seus movimentos. Não se pode esperar de objetos silenciosos e inertes (este livro, por exemplo, é um deles, uma vez impresso jamais poderá se alterar senão com a gentileza indireta de seu leitor) cumpram esta lacuna. Quando ditadores destroem obras em fogo público, é por capricho mais que por perigo real; senhores de todo é, um labor para as horas vagas é extirpar o traço incomodo, a coceira causada pela existência de objetos incapazes de sibilar, senão, aquilo que nunca foi. É forçosamente ingênuo acreditar que uma arte degenerada, incapaz de integrar o salão oficial de Paris da Belle Époque, pudesse por em risco o império ariano. Como diz sempre Duchamp, arte é uma das atividades sem muita importância do homem, como o Xadrez.

Isso não impede, entretanto, que eu mesmo ache que um futebol em campo hexagonal deve ser uma coisa chata por demais.20