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Somente assim deflagrar-se-ia o pensamento diante da obra de Cildo Meireles: “seria preciso não começar”1; e, dito isso, tal escrita desembocaria logo em uma outra urgência:

“seria preciso não terminar”2.

O pensamento entremeio, de fora a fora. Seria preciso não introduzir, mas inserir-se: no meio.

Com essas frases começam e terminam as quatro páginas do texto Frequência Imodulada, do crítico de arte Ronaldo Brito, sobre o trabalho de Cildo Meireles. Elas trazem a marca do observador. Seria preciso não “começar”, na medida em que já estamos observando, sempre, muitos antes de nos depararmos com uma obra; e, encontrando-a, seria preciso, ainda mais, não terminar, não findar o inesgotável processo de deflagração do mundo. Tal seria, pelo menos, a exigência do trabalho de Cildo. Diante de tal exigência, uma crítica não poderia jamais introduzir ou concluir o que quer que seja: ela pode apenas ser inscrita no meio da observação em processo de inesgotável devir-se.

Ronaldo Brito produz uma interessante reflexão sobre uma convolução pensativa que atravessa todo o trabalho de Cildo Meireles. Com efeito, ao negar qualquer procura de um início ou fim para a reflexão, o autor está evocando a necessidade de esquivar-se da inteligibilidade baseada em lógica linear subordinativa, de herança aristotélica. Seria preciso abrir mão da concepção do pensamento em linha, da subordinação de argumentos como segmentos de reta, ou de pontos que levam de A até a conclusão B. Como no trabalho de Cildo, Arte Física: 30 km de Linha Estendidos e Recolhidos (1969), o observador que procurar

1 BRITO, Ronaldo. Frequência Imodulada. In: CILDO Meireles. Rio de Janeiro: Funarte, 1981, p. 7 2 Ibidem.

Sempre fui atraído pela matemática de Cantor. Entre dois números quaisquer existe uma infinidade de pontos intermediários que cruzam esse conjunto original. Isso implica um conceito de limite. Tendendo ao infinito, o que ocorre é que o conjunto de Cantor vai em direção à sua desaparição. E este talvez seja o objetivo do

objeto de arte: chegar ao fim dessa história.

Cildo Meireles

ZERO

dispor dos fios de Ariadne - a lógica - para orientar-se através das obras do artista, terá ao final de seu percurso não um mapa indicando uma possível saída do labirinto - uma ‘conclusão’ -, mas um emaranhado quase incompreensível de linhas que não fazem outra coisa senão confundir as subordinações. Isto é, esse observador terá em mãos como contrapartida apenas uma cartografia do meio - do meio da obra, do meio da reflexão - na forma de um novelo peculiar. Entremeio ao horizonte e ao descampado: dito de outra forma, ele obteria a meada do fio.

Projeto de Arte Física: 30km de Linha Estendidos e Recolhidos, Cildo Meireles, 1969

Legenda: “Estender uma corda pelo cimo dos montes

que contornam nosso campo de visão, ou do fim (...) dos descampados, desertos, amplidões, de maneira que coincidam com a linha do nosso horizonte”.

Na ausência de qualquer introdução ou conclusão, não restaria ao pensamento outra opção senão inserir-se em si mesmo, isto é, aportar de chofre no próprio pensamento já em processo, cujo emaranhado é infinitesimalmente mais complexo:

Seria preciso não começar. Não seguir ordem linear, o encadeamento da lógica aristotélica. Seria preciso, para falar do trabalho sem traí-lo, aglutinar ideias, intuições, sonhos, delírios, montá-los, remontá-los, desmontá-los numa mesma proposição que não se definiria nunca mas se autodemonstraria descontínua e rigorosamente.3 Os trabalhos de Cildo jamais ofereceriam uma porta de entrada. Não haveria uma suposta informação necessária para revelação do todo, uma “chave” que descortinaria o significado mais profundo. Não haveria sequer a certeza de que aí exista algum significado.

Compreender [as obras] implicaria portanto o paradoxo de desligar, esquecer, desorganizar, verbos que parecem estranhos a qualquer noção de racionalidade. Compreender quer dizer aqui, de alguma maneira, não compreender. Entre outras coisas, o trabalho recusa entregar-se ao gesto autoritário do conceito que capta, domina e congela.4

O trabalho de Cildo apenas se deixaria capturar por um pensamento que, nas palavras de Décio, é constelar, e que para Brito consistiria em:

Operar com uma inteligência que simultaneamente fragmentasse o todo e reencontrasse o todo no fragmento, operar dentro do infinito atual.5

Portanto, um pensamento capaz de operar no território do presente, no território da inesgotável e inobservável complexidade do presente; pensamento capaz de objetividade na observação, e que reconhece, entre o fragmento e o todo - de fora a fora, entremeio -, apenas a existência de um meio de pura densidade, uma espécie de caoscosmo de lógica não-entrópica que media o infinito com o atual.

O que é um meio? É o “sol de Goiânia ao meio dia”6 - a Quente-Terra-Cega

(Blindhotland, Cildo Meireles, 1970-75). São linhas trama-traçadas simultaneamente nas bordas do continente e da visão, nos limites do horizonte e dos campos geográficos, e depois recolhidas em um gesto que desfaz os limites ou os confundem entre si, mas também gesto para embaraçá-los a tal ponto que se torne possível, para o observador, extrair uma densidade

3 Ibidem. 4 Ibidem. 5 Ibidem, p.8. 6 Ibidem.

física unificadora. O meio é a física desse corpo-mundo de ó-através. Para Brito, haveria na obra de Cildo uma

paranoia de fluidez e comunicação. Não pode haver corpos, muros, limites, propriedades econômicas, propriedades físicas, propriedades orgânicas, propriedades. O trabalho é contra os Sólidos, a política dos Sólidos. Tudo o que retém a energia, a comunicação, o que retém o fluxo das densidades transformadoras.7 O meio, conclui-se, é a energia que trespassa e cambaleia os limites: limites dos Sólidos, das montanhas, dos cantos das salas, das camadas profundas do solo, das faixas de hertz visuais... O meio é tudo aquilo que jamais se estratifica, o que antecede e excede, o que alimenta e transtorna as formalizações; é o que varia apenas em densidade, impossível de ser formalizado em contornos bem definidos, em propriedades, em profundidades (jamais confundir densidade com profundidade; há densidade num pelo da pele). Entre duas barras iguais e curvas Para Serem Curvadas Com os Olhos (Cildo, 1970), um meio de pura percepção trêmula, de maleável rigidez da observação.

Se falamos do meio, Ronaldo Brito elabora aquilo que compreenderemos como uma das figuras últimas do meio: o zero. O zero, com efeito, é aquilo que esgota a série numérica; ou ainda, em filosofia, aquilo que esgota as intenções abrangentes do conceito8. Se, do ponto

de vista do número ou do conceito, em suma, do “Sistema”9 , o zero é um mero ponto vazio

caso posto à esquerda; do ponto de vista do meio, o zero é justamente o ponto cego onde se reúnem tudo aquilo que não pode ser computado pelo Sistema, as energias ou intensidades incompatíveis - ou incompossíveis - com a polarização positiva ou negativa promovida pelo Sistema. Com efeito, para Brito o zero não seria aquilo que marca o fim de uma série sistêmica conceitual, numérica ou capitalística; mas aquilo que se insere no sistema para desfazer o poder dos cálculos e dos registros. Isto é, o zero é o traço daquilo que, na obra de Cildo, seria político de maneira oposta ao panfletarismo: uma intervenção ao nível da linguagem que libera as energias assignificantes. As Inserções em Circuitos Ideológicos: Projeto Cédulas (notas de dinheiro carimbadas com questões como “Quem Matou Vladimir Herzog?”) e Zero Dollar (título literal), por exemplo, não são veículos de denúncia ou de promoção ideológica: são, sobretudo, um gesto potente capaz de cobrir toda a superfície de circulação incessante e de opor, subitamente, o circuito do sistema (dinheiro) com as trocas políticas cotidianas (o Grande Bate-boca, como diz Tom Zé). São, literalmente, notas a perguntar: quem matou Vladimir Herzog? Quem matou Vladimir Herzog? Quem matou Vladimir Herzog? Qual

7 Ibidem.

8 Esta é uma diferença importante da crítica de Ronaldo Brito, atribuir um caráter “não conceitual” à obra de Cildo Meireles, na contracorrente em relação a diversos críticos que atribuíram o coeficiente de arte conceitual à obra sem fazerem qualquer ressalva ao cânone americano (em geral, de matriz wittgensteiniana, fortemente lógica, como é possível notar nos textos de Joseph Kosuth).

a dimensão, até onde vai a extensão do gesto homicida? O zero, portanto, não seria jamais resultado dos processos de adição ou subtração; ele seria o próprio processo de constante inserção. O zero não é, portanto, o frontispício de toda evolução ou involução entrópica, seja mediante o a mais do profeta, seja mediante o de menos do niilista; o zero, conclui-se, é o a menos em meio a, o impossível que surge entremeio ao presente, é a centelha que se perde, energia na passagem da potência ao ato, e que adquire densidade na ocasião de um gesto de inserção assistêmico e liberador.

O desejo é interferir no Sistema mediante uma esquisita manobra: aparecer como zero, ponto cego da hierarquia, imponderável dado que a máquina não registra e não calcula. A paradoxal fórmula da “inserção” seria: a possibilidade de emergência do impossível. A sua paradoxal ‘verdade’ é a de que o impossível move e determina o possível. E este impossível não seria um a mais que tornaria sempre insuficiente o possível. Seria um a menos, o dejeto, a sobra, o resto, o que não merece ser computado, o que parece não admitir formalização. A miséria, o delírio, a sombra, a inércia. a quente-terra-cega. Goiás, ao meio-dia, inação e inanição, e sua extraordinária densidade, extraordinária capacidade de reter e difundir energia.10