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2.2. GOVERNANÇA NOS RELACIONAMENTOS INTERORGANIZACIONAIS

2.2.1. Mecanismos de Governança

A literatura apresenta uma convergência acerca de dois tipos principais de governança nos relacionamentos interorganizacionais (Interorganizational Relationships – IOR): a governança contratual e a governança relacional. A governança contratual refere-se aos contratos e regras formalmente estabelecidas entre as firmas para geralmente coibir comportamentos oportunistas e, com isso, minimizar custos de transação (WILLIAMSON, 1985). Tais contratos estipulam explicitamente as responsabilidades e obrigações de cada parte, os entregáveis/resultados esperados na transação, procedimentos de monitoramento e controle, incentivos e penalidades contratuais, dentre outros (MESQUITA; BRUSH, 2008). A literatura especializada destaca que a governança contratual desempenha um importante papel na coordenação e adaptação de relacionamentos interorganizacionais, bem como no controle dos riscos associados às transações (WILLIAMSON, 1985, 1996, 2002; POPPO; ZENGER, 2002; CAO; LUMINEAU, 2015).

Entretanto, a literatura também reconhece que a governança contratual, atuando de forma isolada, possui uma série de limitações. Uma importante limitação a ser ressaltada é que este tipo de governança despreza a dimensão contextual. Além desta, Poppo e Zenger (2002) apontam outras três limitações, mais específicas. A primeira se refere à incompletude dos contratos. Dado que os seres humanos possuem racionalidade limitada, é impossível

elaborar contratos que prevejam antecipadamente todos os possíveis eventos futuros e definam ações apropriadas para lidar com cada um deles (SIMON, 1979; WILLIAMSON, 1985). A segunda é que a celebração de contratos complexos pode significar falta de confiança, que é essencial para a cooperação nos relacionamentos interorganizacionais (GHOSHAL; MORAN, 1996). A terceira limitação é que as partes podem ter interpretações divergentes e aplicarem com diferente rigor os termos contratuais, o que pode gerar conflitos e degradar a cooperação entre elas.

Alguns autores utilizam o termo “mecanismos de governança formal” para se referir tanto aos acordos de preços e incentivos definidos contratualmente quanto aos mecanismos hierárquicos baseados em controle e autoridade (OLSEN et al., 2005; WANG et al., 2008; CANIËLS et al., 2012). Segundo Caniëls et al. (2012, p. 114):

Authority implies the reliance on governance mechanisms such as rules and procedures, and it involves exercising control and power strategies (Haugland and Reve, 1994; Ness and Haugland, 2005). Authority is applied by the party who has the (legitimate) right to make decisions. This party is then using its power to control the activities of the other party (Wang et al., 2008).

Por outro lado, como alternativa aos mecanismos de governança classificados como formais (contratos e hierarquia), têm-se os mecanismos de governança relacional, que se baseiam em construtos complexos e multidimensionais, como a confiança, para coordenar os relacionamentos interorganizacionais e mitigar riscos associados a incertezas e investimentos em ativos específicos (DYER; SINGH, 1998; MAYER et al., 1995).

A governança relacional envolve o compartilhamento de valores e normas (informais) entre as partes da transação, como flexibilidade, solidariedade, reciprocidade, integridade, harmonização de conflitos e trocas de informações e conhecimentos (CANIËLS et al., 2012; NESS; HAUGLAND, 2005). A confiança é destacada como o principal mecanismo de governança relacional – especialmente na Europa e também em países classificados como menos desenvolvidos – e, na visão de alguns autores, representa uma alternativa mais eficaz e menos onerosa para proteger a firma de comportamentos oportunistas do que a elaboração de contratos complexos (UZZI, 1997; NOOTEBOOM, 1996; DAS, TENG, 1998).

Apesar da heterogeneidade de orientações teóricas, que se traduz em um amplo espectro de definições, e da divergência de tratamentos dados ao tema em pesquisas de

diferentes campos científicos, muitos autores concordam que a confiança se relaciona à expectativa sobre as intenções ou o comportamento dos outros (MAYER et al., 1995, ROUSSEAU et al., 1998).

Mayer et al. (1995, p. 712) definem confiança como “the willingness of a party to be vulnerable to the actions of another party based on the expectation that the other will perform a particular action important to the trustor, irrespective of the ability to monitor or control that other part”. A respeito desta definição, os autores explicam que a noção de vulnerabilidade está relacionada à assunção de riscos que podem ocasionar perdas importantes, reforçando que a confiança não significa, necessariamente, tomar esses riscos per se, mas sim ter uma disposição para assumi-los.

Rousseau et al. (1998) também sugerem uma definição de confiança baseada na propensão de aceitar a vulnerabilidade, indo ao encontro da proposta de Mayer et al. (1995). Para os autores, “Trust is a psychological state comprising the intention to accept vulnerability based upon positive expectations of the intentions or behavior of another” (ROUSSEAU et al., 1998, p. 395).

Identifica-se na literatura uma diferenciação no tratamento da confiança entre os níveis interpessoal e interfirma. Apesar de, intuitivamente, a confiança ser um fenômeno de natureza interpessoal, a justificativa para estendê-la ao nível interfirmas é que os processos organizacionais são estabelecidos pelos indivíduos, como resultado de uma percepção conjunta de confiança dos tomadores de decisão (MARTINS, 2013). McEvily et al. (2003) propõem a conceituação de confiança como um princípio organizacional, buscando integrar diferentes abordagens sobre a confiança interfirmas e destilar implicações generalizáveis de como ela afeta as organizações. Os autores especificam estruturação (structuring) e mobilização (mobilizing) como dois conjuntos de caminhos causais (causal pathways) através dos quais a confiança influencia importantes propriedades das organizações, como padrões de interação e processos organizacionais. Na visão dos autores, a confiança afeta a coordenação de atividades e os fluxos de informação dentro e fora da firma, além de auxiliar os tomadores de decisão na escolha da conduta apropriada e das rotinas necessárias à coordenação do relacionamento.

Rousseau et al. (1998) afirmam que há convergência entre diferentes disciplinas sobre duas condições necessárias para que a confiança possa emergir. A primeira delas é o risco,

considerado essencial nos conceitos de confiança da psicologia, sociologia e economia. Risco é uma percepção sobre a probabilidade de perda, na interpretação do tomador de decisão. A conexão de dependência entre confiança e risco existe de forma recíproca: o risco cria uma oportunidade para a confiança, que leva à exposição ao risco. Ademais, o sentimento de confiança é fortalecido quando um comportamento esperado se materializa. A confiança não seria necessária se as ações pudessem ser tomadas com completa certeza e sem riscos. A incerteza relativa às intenções e ações do outro é a fonte do risco.

A segunda condição necessária para a confiança é a interdependência, no sentido de que os interesses de uma parte não podem ser alcançados sem a contribuição do outro. Embora tanto o risco quanto a interdependência sejam necessários para a confiança emergir, a natureza do risco e da confiança muda à medida que a interdependência cresce. Dado que o risco e a interdependência são condições necessárias para a confiança, variações nesses fatores ao longo de uma relação podem alterar tanto o nível e, potencialmente, a forma que a confiança toma (ROUSSEAU et al., 1998).

Martins (2013) comenta que a pesquisa sobre a confiança interorganizacional no campo da Administração pode ser dividida em dois domínios. O primeiro deles engloba os estudos que partem da incerteza comportamental e da incerteza quanto à coordenação das tarefas para identificar os benefícios da confiança nos relacionamentos interfirmas. Tais estudos sugerem que altos níveis de confiança são benéficos às firmas, pois levam a redução de custos de negociação, menores níveis de conflito, maior compartilhamento de informação e altos níveis de cooperação. O segundo domínio enfoca o papel da confiança como mecanismo de governança dos relacionamentos interorganizacionais e seus estudos sugerem que a confiança reduz ou elimina a necessidade de controles hierárquicos diante do risco de perda de reputação.

A partir de uma revisão da literatura, Martins (2013) demonstra que a confiança interfirmas, em geral, é conceituada como um construto multidimensional. De acordo com o autor, é possível notar grande sobreposição entre as categorias criadas pelos diversos autores, bem como diferenças nas formas de operacionalização do construto. A Tabela 1 apresenta as principais referências usadas pelo autor.

Tabela 1 – Dimensões da confiança interfirmas

Dimensões Fontes

Desencorajamento (deterrence), conhecimento e identificação Sheppard e Tuchinsky (1996) Fragilidade (vulnerabilidade; calculista) e resiliência

(goodwill) Ring (1996)

Cognição (calculista) e afetividade (responsabilidade e

goodwill) McAllister (1995)

Previsibilidade, confiabilidade (dependability) e crença

(faith) Rempel, Holmes e Zanna (1985)

Grau de vulnerabilidade define a confiança como fraca,

semiforte ou forte Barney e Hansen (1994)

Habilidade, benevolência e integridade Mayer et al., (1995)

Competência (habilidade) e Goodwill (não oportunista) Nooteboom (1996) Fonte: Martins (2013)

Para o desenvolvimento deste trabalho serão adotadas as duas dimensões da confiança propostas por Noteboom (1996): competência e goodwill. Na definição de Noteboom (1996, p. 990), "trust may concern a partner’s ability to perform according to agreements (competence trust), or his intentions to do so (goodwill trust)". De forma específica, a confiança baseada em competência está relacionada à expectativa de que a outra parte tenha um desempenho tecnicamente competente. Esta dimensão é sinônima de habilidade, capacidade ou perícia (MARTINS, 2013). Por sua vez, a confiança baseada em goodwill refere-se à expectativa de que a outra parte demonstre responsabilidade com as suas obrigações morais e com os interesses da outra parte e, portanto, não aja de forma oportunista. São sinônimos de competência: responsabilidade, confiabilidade (dependability), integridade e benevolência (MARTINS, 2013).

Na próxima seção, são apresentadas as contribuições de importantes estudos empíricos que analisam a natureza da interação entre a governança contratual e a governança relacional, sendo que, para esta última, são utilizados estudos que se enfocam o papel da confiança como mecanismo de governança relacional.