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Parte II – Pressupostos Teóricos

Capítulo 8 A produção textual no aporte do isd

9.6 Mecanismos enunciativos: vozes e modalizações

Os mecanismos enunciativos, diferentemente dos mecanismos de textualização, não se relacionam à organização linear do conteúdo temático. Eles contribuem para uma coerência pragmática do texto, trazendo à tona tanto as avaliações “(julgamentos, opiniões, sentimentos)” (BRONCKART, 2012, p. 319) relacionadas a aspectos desse conteúdo temático quanto as instâncias enunciativas que se assumem enquanto fontes dessas mesmas avaliações. (Cf. Bronckart, 2012).

Estritamente, são dois os aspectos dos mecanismos enunciativos: as vozes (neutra e secundárias) e as modalizações (lógicas, deônticas, apreciativas e pragmáticas).

Antes de abordar a distribuição das vozes e a marcação dessas modalizações, discorrerei sobre questões de base para entendimento destas, que são autor e instâncias enunciativas.

O autor é aquele que transfere a instâncias enunciativas a responsabilidade pelo que se enuncia. Todavia não é o único responsável pelo que enuncia, visto que, embora seja ele quem esteja “na origem do texto” (BRONCKART, 2012, p. 321), o autor aciona um conjunto

de representações (as quais integram representações dos outros, marcando a interatividade própria das representações) inscritas no organismo humano. Ele empreende uma ação de linguagem ao explorar os recursos de uma língua em uso no seu grupo social e ao fazer o empréstimo e a adaptação de um gênero que se encontra disponível no intertexto desse grupo.

As instâncias enunciativas às quais ele transfere a responsabilidade pelo que enuncia são definidas como narrador, no caso dos mundos da ordem do narrar, expositor, no caso dos mundos da ordem do expor, e textualizador, no caso em que esses mundos se coordenam. Essas instâncias enunciativas intervêm no gerenciamento das vozes e das modalizações.

a) O gerenciamento das vozes

Todos os tipos de discurso também permeados pelas vozes. As vozes são “as entidades que assumem (ou às quais são atribuídas) a responsabilidade do que é enunciado. (BRONCKART, 2012, p. 326)”

Quando a instância geral de enunciação assume essa responsabilidade, fala-se de voz neutra (que é, portanto, ou a do narrador ou a do expositor, a depender do tipo de discurso). Para que haja voz neutra, há recorrência à terceira pessoa nos segmentos de texto.

Diferentemente, quando essa instância de enunciação apresenta outra(s) voz(es), “infra-ordenadas em relação ao narrador ou ao expositor” (BRONCKART, 2012, p. 326), há as vozes secundárias (segmentos de texto na primeira ou na terceira pessoa), as quais reagrupam-se em (i) vozes de personagens, (ii) vozes de instâncias sociais e (iii) voz do autor empírico do texto.

(i) vozes de personagens: provêm de personagens (seres humanos ou humanizados) implicados nos acontecimentos do conteúdo temático. Podem aparecer em relato, em narração (voz dos heróis em cena), em discurso interativo dialogado (voz dos interlocutores) ou em discurso teórico (voz do “criador do conhecimento” (BRONCKART, 2012, p.327).

(ii) vozes sociais: provêm de “personagens, grupos ou instituições sociais” (BRONCKART, 2012, p.327) não implicados nos acontecimentos do conteúdo temático, mas que apenas funcionam como balizas avaliativas de aspectos desse mesmo conteúdo.

(iii) voz do autor: advém “da pessoa que está na origem da produção textual” (BRONCKART, 2012, p.327) intervindo nela para comentar, avaliar algo relativamente ao que se enuncia.

Se essas diferentes vozes forem expressas de modo direto, temos as vozes diretas, comuns no discurso interativo dialogado, formado pelos turnos de fala. Em correspondência, temos as vozes indiretas quando se traduzem em fórmulas do tipo “segundo x, alguns pensam que” (BRONCKART, 2012, p. 329, grifos do autor), podendo aparecer em qualquer tipo de discurso.

As diversas vozes que se fazem ouvir em um texto é o que constitui nele a sua polifonia.

b) As modalizações

A partir de qualquer voz enunciativa, podem-se encontrar avaliações, julgamentos, comentários – os quais as modalizações traduzem – relativamente a questões do conteúdo temático. As modalizações são completamente independentes da linearidade e da progressão do texto.

São quatro as funções de modalizações (redefinidas por Bronckart a partir da teoria dos três mundos de Habermas de 1987): as modalizações lógicas, as deônticas, as apreciativas e as pragmáticas. Para expressar essas diversas funções, contribuem algumas unidades ou estruturas linguísticas.

As modalizações lógicas referem-se a avaliações do conteúdo temático que definem o mundo objetivo (conforme denominação de Habermas) e, assim, traduzem nas estruturas linguísticas elementos atestadores de verdade, indicadores de possibilidade ou probabilidade, indicadores de eventualidade ou necessidade etc. Podem se traduzir textualmente por tempos verbais do futuro do pretérito, por auxiliares de modo, por advérbios ou locuções adverbiais ou por algumas orações impessoais.

As modalizações deônticas referem-se a avaliações do conteúdo temático que constituem o mundo social (conforme denominação de Habermas) e, para isso, apoiam-se em valores e opiniões, “apresentando os elementos do conteúdo como sendo do domínio do direito, da obrigação social e/ou da conformidade e com as normas em uso.” (BRONCKART, 2012, 331). Podem-se traduzir pelas mesmas unidades ou estruturas linguísticas pelas quais se traduzem as modalizações lógicas.

As modalizações apreciativas referem-se a avaliações procedentes do mundo subjetivo (conforme denominação de Habermas) da voz, que é fonte desse julgamento e os apresenta como positivos, como felizes, como estranhos etc., a depender do ponto de vista avaliativo.

As unidades linguísticas que as marcam são, preferencialmente, advérbios ou orações adverbiais.

As modalizações pragmáticas são as que contribuem para explicitar a responsabilização da entidade que constitui o conteúdo temático com relação às ações de que ela mesma é o agente atribuindo a este agente “intenções, razões (causas, restrições, etc.), ou ainda, capacidades de ação.” (BRONCKART, 2012, p. 332). As unidades linguísticas que as marcam são, preferencialmente, os auxiliares (ou metaverbos) de modo.

Ressaltamos, conforme Bronckart (2012), que as funções de modalização podem se fazer presentes em todos os tipos de discurso. O que faz com que sejam mais ou menos frequentes em um ou em outro é o gênero do texto: quando os elementos do conteúdo temático não são objeto de debate, de discussão, ou seja, quando não são objeto de avaliação, as modalizações podem estar praticamente ausentes, marcando-se, assim, o grau zero da modalização (por exemplo, gêneros como manuais científicos, obras enciclopédicas); opostamente, quando os elementos do conteúdo temático são objeto de avaliação (veja-se a menção de Bronckart 2012 a artigos científicos, panfletos políticos), as unidades que estabelecem as funções de modalização são frequentes.