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Mesmo antes da concepção atual da ciência moderna, com o complexo sistema de classificação biológica em espécies, gênero e reino, o homem já era considerado um animal, mas um animal diferenciado. Aristóteles, célebre autor da frase “o homem é um animal racional” defendia a existência de três tipos de almas, todas elas referentes a seres vivos: a primeira é a vegetativa, que tem como característica a nutrição e a reprodução, estando presente em plantas e na vida em todos os seres; a segunda se caracteriza pela sensibilidade e locomoção presente na vida animal, e denominada alma sensitiva; por fim a alma racional, que se refere ao homem por sua capacidade de pensar (MOURA, 2005).

De forma que o homem se enquadrava no reino animal por participar da natureza e dela depender, além de compartilhar com os animais os mesmos tipos de necessidades, como as biológicas, as reprodutivas e as de segurança. Entretanto seu grau de especificidade o foi diferenciando, e a evolução das espécies se deu de maneira peculiar para o ser humano. Enquanto os animais em geral tiveram adaptações relativas a aspectos anatômicos e físicos, o homem foi também sofrendo concomitantemente diferenciações essenciais no seu intelecto. Assim que do Ramaphitecus, ancestral africano que viveu na África há milhões de anos, para

o Homo sapiens sapiens (SENAC, 2005, p. 24) atual espécie humana, houve uma série de transformações que permitiram ao homem atingir o atual estágio intelectual em que se encontra.

Ao longo destas transformações novas maneiras de lidar com o entorno foram se expressando, ganhando contornos específicos de acordo com o gradual desenvolvimento tecnológico em curso, como o domínio de técnicas agrícolas, a máquina a vapor e a informática. Como conseqüência direta dos avanços logrados verificou-se a melhoria na qualidade de vida de parcelas da população, acesso às comunicações e à educação, melhoria na saúde e aumento da expectativa de vida, entre tantos outros. Concomitantemente, também ocorre a reestruturação das formas de compreender o meio ambiente, de acordo com o tempo e as linhas de pensamento de cada época, o que denota que a forma de atuar sobre o meio está intrinsecamente ligada ao momento histórico de cada sociedade, como será explicitado a seguir.

3.1.1 A evolução das percepções sobre o meio ambiente

Sosa (122, p. 1995) afirma que “os valores são algo a que se chega por consenso em cada época e em cada cultura; os valores se constroem no seio das comunidades humanas mediante o diálogo e a intercomunicação argumentativa”. Em outras palavras, tais valores mudam de acordo com as diferentes épocas da vida, no momento em que fazem parte de criação e interpretação culturais, dependendo e sofrendo interferências de acordo com o momento vivenciado por cada sociedade.

Neste contexto, não apenas as coisas criadas pelo homem, como suas próprias características, sofrem alterações de valoração, sendo esta conseqüência de um sentimento criado culturalmente, através do ponto de vista da percepção humana sobre a importância dos elementos existentes. Igualmente elementos que não provêm de criação humana passam por distintos matizes valorativos, como a natureza. As diferentes maneiras de entender e valorar o entorno são definidoras das formas de atuar diante dela, como confirma Descolá (2001, p. 101): “as concepções sobre a natureza são construídas socialmente e variam de acordo com determinações culturais e históricas”.

Isto pode ser verificado, por exemplo, junto à relação dos povos primitivos com o meio ambiente. Vivendo em áreas com alterações antrópicas mínimas, bem como dependendo de

conhecimentos técnicos arcaicos, tais povos não somente o respeitavam como também o divinizavam. Tornar os elementos naturais sagrados era a forma encontrada para explicar situações ou elementos incompreensíveis para o conhecimento da época. Assim, muitos de seus deuses eram representados por entes naturais como o sol, a água, os rios, etc. O xamã (chefe espiritual), era aquele capaz de tomar decisões sobre temas polêmicos ou de difícil resolução em nome de todo o povo por ser o detentor de sabedoria e poderes sagrados, o que o habilitava a entender os símbolos e sinais de seus Deuses.

As decisões do xamã, tidas como sagradas, eram consideradas pelo povo das aldeias como algo indiscutivelmente verdadeiro (RAPPAPORT, 1987, p. 255), e esta supremacia relativa ao comando das tribos demonstra como a sacralização dos aspectos naturais incompreensíveis do meio ambiente tornam o místico uma alternativa funcional ao poder político (op. cit, 256) destes povos. Neste contexto, era o xamã a figura central na hierarquia das tribos, ficando o cacique (chefe político) com atribuições administrativas secundárias. Esta reverência à natureza possibilitava o respeito para com o entorno e, através de inconscientes métodos de adaptação, os indígenas mantinham relações de equilíbrio com o ecossistema.

Na Antiguidade Clássica, especificamente no pensamento grego, existia uma ordenação espontânea do cosmos, sendo o Universo um conjunto coerente e compacto e a natureza vista como algo imutável. Seu estado regular e repetitivo, ou seja, sua previsibilidade a tornavam completamente compreensível, não necessitando – portanto - ser dominada ou modificada.

As especulações dos pensadores da Antiguidade com relação à natureza do cosmos e da terra como parte deste, o papel de um demiurgo, dos deuses, ou da providência produziram um modo de conceber a terra, baseado tanto no pensamento filosófico como na observação da realidade cotidiana, que teve efeitos duradouros no pensamento geográfico do nosso mundo ocidental (...) o princípio de equilíbrio, harmonia e ordem na natureza foi reconhecido e guardado com respeito e carinho, como uma das grandes interpretações sobre o papel da terra no destino do homem. (GLACKEN, 1996, p. 103). Alterações significativas no interpretar o entorno puderam ser sentidas a partir da Idade Média, período em que o pensamento se encontrava intrinsecamente relacionado às teorias eclesiásticas. Neste período as obras clássicas e livros, estando a grande maioria da literatura existente em posse das Igrejas e Monastérios, acabam por influenciar as primeiras idéias da Igreja Católica, baseada no conhecimento proveniente do período clássico e dos filósofos gregos, como afirma Glacken (1996, p. 187):

Os padres aceitaram, com inevitáveis revisões, muitas idéias relacionadas à terra que haviam sido sustentadas pelos filósofos clássicos. As argumentações cosmológicas, fisiológicas, fisico-teológicas dos pensadores gregos e romanos em apoio do argumento de desígnio foram adaptadas e absorvidas pela teologia cristã.

Esta idéia de desígnio passou por reformulações junto aos pensadores da Idade Média até ser compreendida como um livro escrito por Deus, algo que Ele havia criado para presentear a todos, onde a terra e a natureza comprovavam o poder superior de Deus, e deviam ser utilizados com respeito, e em benefício de todos. Entretanto estas novas concepções da natureza, apesar de inspirarem respeito, provocaram uma alteração importante na forma de entender os recursos naturais. Como “presente” de Deus, o homem passou a perceber a natureza como um elemento que poderia e deveria ser utilizado por meio do trabalho. “Deus escolheu o ser humano para ser o administrador da terra e lhe deu os frutos da terra para seu próprio uso” 18 (ATTFIELD, 1998, p. 142).

Mediante tal possibilidade, o trabalho humano “ajudava a Deus e a si mesmo na melhoria do um lar terreno, ainda que na teologia cristã a terra fosse apenas uma estação de trânsito” (GLACKEN, 1996, p. 188). Os processos produtivos, antes estabelecidos a partir de conhecimentos adquiridos, evoluem com o uso de diferentes técnicas de controle da natureza. Entretanto “a razão mais imperiosa para a observação e o estudo da natureza era, no entanto, o que conduzia a uma melhor compreensão de Deus” (GLACKEN, 1996, p. 188).

Antes entendida como natureza rica, dada ao homem para seu sustento, passível de exploração em benefício das criaturas de Deus, tal concepção passa por uma reviravolta: “no período que se prolonga aproximadamente desde o final do século XV até o século XVII pode ser verificado o começo da cristalização do ideal do homem como dominador da natureza” (GLACKEN, 1996, p. 457). A crença medieval de tempo definido por Deus, iniciando pelo Gênesis e terminando no Apocalipse, é questionado por estudiosos. O Renascimento trouxe novas formas de pensar a vida; a história passa a ser vista como o tempo do homem, e não mais uma “estação de trânsito”. Há uma proliferação de novos modos de pensar, e se fortalece a idéia de estado e cidadãos. Surgem inovações tecnológicas, ocorre a divisão entre poder religioso e político, e a natureza vai paulatinamente perdendo suas definições divinas.

Já o Renascimento traz Descartes e seu “Discurso sobre o Método”, com a comprovação científica, o ordenamento lógico e sistemático, a razão acima de tudo. Para Descartes a aquisição do conhecimento era proveniente de quatro elementos base:

18 Original em Inglês: “God appointed human beings to be the stewards of the earth, and gave him the fruits of the earth for their own use.”

... nunca aceitar nada como verdade, a não se que fosse axiomático; dividir toda a complexidade do que se examina nas menores frações possíveis, pois não se pode lidar logo de início com grandes proposições; conduzir o pensamento sempre numa ordem lógica, começando do mais simples e fácil para o mais difícil; e raciocinar rigorosamente, como numa ciência exata, tendo a certeza de que nada escapou à lógica empregada (DUPAS, 2006, p. 39).

Este racionalismo é o primeiro passo no sentido de destruir a visão sistêmica do mundo em favor de uma visão fragmentada, e analítica. O mais importante é conhecer ao máximo pequenas partes do saber, no lugar de entender como o todo se manifesta.

A Revolução Industrial desponta com a tecnologia, e a sistematização no aproveitamento dos recursos naturais. Segundo Foladori (2001, p. 110),

A Revolução Industrial do século XVIII e a revolução dos transportes e comunicação do último quarto do século XIX, que permitiu a expansão imperialista, colonização e conquista completa do mundo, provocaram um ponto de inflexão na relação do ser humano com a natureza.

Os conhecimentos científicos adquiridos ajudam na exploração cada vez mais eficaz do ambiente. O homem afinal passa a entender a natureza não mais como parte integrante do seu meio, mas apenas como um mero recurso a ser explorado em todas as suas possibilidades. A partir daí o ideal de crescer e desenvolver, por meio do subjugo da natureza, são os novos focos de ação de empresas e governos.

3.1.2 A submissão do meio ambiente

A Modernidade traz modelos de racionalidade, o triunfo do individualismo, e do próprio homem, como afirma Gómez-Heras (2003, p. 128), “a Modernidade é a época da cultura antropocêntrica, ou seja, a ascensão do homem a protagonista da interpretação e gestão de sua vida”, assim como o período de “busca de dominação – sempre no fundo fracassada, apesar da transformação - da civilização da técnica e da cidade em relação ao meio natural” (PELIZZOLI, 2002, p. 98).

A compreensão de aspectos naturais e seu domínio desmistifica a natureza, que passa então a ser entendida como recurso a explorar, um mero objeto a serviço dos interesses humanos.

A consciência do poder do homem aumenta dramaticamente no século XIX, com a multiplicidade de novas idéias e interpretações, enquanto que no século XX o homem ocidental alcançou um vertiginoso antropocentrismo, isolado em seu poder sobre a natureza (GLACKEN, 1996, p. 457).

Por meio de sua capacidade de produzir cultura, estabelecer idéias e perenizar acontecimentos e conhecimentos, e homem desenvolveu tecnologias e dominou a natureza, criando assim um mundo social que trabalha e existe em função de suas necessidades. O homem criou sua história, história esta que explica a dominação humana através de métodos e de ciência, como atesta Molina (2001, p. 26) ao afirmar que “nesta civilização predomina uma razão essencial, a da ciência e a da tecnologia, que foram impostas a outras formas de conhecimento e a outros conjuntos de valores e crenças”. O homem, portanto, segue assim sua história natural como ser vivo e, simultaneamente, segue também criando, evoluindo e provocando alterações na natureza, dando prosseguimento a sua história cultural.