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Memória – um caminho para a escuta

Revisitar as sensações da infância; voltar ao princípio, onde os ingredientes que temperaram esta história de vida e formação começaram a ser separados; fazer vir à tona as lembranças esquecidas, ou escondidas; tudo isso julga-se indispensável para situar este trabalho e fazer com que a verdade histórica do objeto escolhido para estudo seja explicitada de maneira clara e compreensível.

Em o Futuro de uma Ilusão, Freud (1927) afirma:

Quanto menos um homem conhece a respeito do passado e do presente, mais inseguro terá de mostrar-se seu juízo sobre o futuro (...) o presente tem de se tornar o passado para que possa produzir pontos de observação a partir dos quais ele julgue o futuro (p.15).

Para tanto, é preciso pedir licença à academia para que, neste capítulo, o uso da primeira pessoa dos verbos possa ser feito. Esta viagem aos tempos de

criança, um verdadeiro retorno aos cenários primordiais, não faria sentido se assim não pudesse ser contado.

Antes, porém, é preciso situar a Memória Educativa, sua importância para a realização deste trabalho, bem como a utilização dessa como dispositivo de pesquisa.

Os estudos sobre a Memória Educativa têm, originalmente, a relevante contribuição do trabalho desenvolvido por Almeida e Rodrigues (1998), por meio do módulo - Imersão no Processo Educativo das Ciências e da Matemática, integrante do Programa de Aperfeiçoamento de Professores de Ensino Médio (pró-Ciências).

A fim de re-significar o processo de formação dos professores destas duas áreas do conhecimento, Almeida e Rodrigues (idem) criaram um caderno de estudos que considerava a articulação da trajetória de vida escolar dos educadores com sua experiência e prática docente.

Nesse estudo, os professores foram convidados a refletir e analisar sua prática educacional, por meio de dois momentos inter-relacionados: a sua prática

docente como educadores (professores) e a sua memória educativa como educandos (alunos), com o objetivo de reflexão e aprofundamento teórico do fazer

educativo e, sobretudo, de questões a serem enfrentadas por este educador, como a apresentada neste trabalho acadêmico (ibidem, p. 7).

De maneira específica, as autoras pretenderam que os professores se apropriassem da construção de suas identidades profissionais; uma vez que a elaboração da Memória Educativa, enquanto dispositivo, propunha uma viagem ao

um resgate, na memória do tempo, episódios, situações, pessoas e processos dessa experiência vivida (ibidem, p. 12).

Esse processo de arqueologia caracterizou uma perspectiva de formação que leva em conta a dimensão histórica do sujeito como ponto de partida para a sua aprendizagem do pensamento científico. A história pessoal do sujeito-aluno resgatada, transforma-se em ponto inicial do processo de construção e reconstrução da sua identidade de professor-educador.(ibidem, p. 13-14).

Kenski (1998) ressalta a importância das pesquisas que lançam mão da memória educativa como meio para estudar a influência de vivências anteriores

dos professores em suas formas de ensinar (p.106). Neste sentido, o

levantamento das experiências mais significativas da trajetória de vida escolar possibilita ao professor esclarecer sua postura profissional e pessoal, bem como considerar, para além da competência técnico-metodológica, a relevância de aspectos subjetivos no seu exercício profissional.

Freud (1914) ratifica esta afirmação, salientando que é difícil dizer se o

que exerceu mais influência sobre nós e teve importância maior foi a nossa preocupação pelas ciências que nos eram ensinadas ou pela personalidade de nossos mestres (p.248). Na medida em que lembramos daquilo que vivemos,

temos a oportunidade de re-significar a nossa trajetória e as marcas que ficaram guardadas por tanto tempo e sem, aparentemente, nenhum valor.

Vale lembrar que, durante a escrita da narrativa, não se tem uma visão

fixa, estática, cristalizada dos acontecimentos que ocorreram no passado (...) pois é nesse momento que as lembranças deixam de ser memórias para tornarem-se histórias (Kenski, idem, p.109). E nessas histórias não apenas aquilo que é dito

merece nossa atenção, mas, e sobretudo, aquilo que aparece nas entrelinhas e revela os não-ditos, esquecimentos e silêncios.

Em Na morada das palavras, Alves (2003), ao falar das memórias da sua infância, cita um místico chamado Ângelus Silésius e conta que, em um de seus poemas, ele diz que: Temos dois olhos. Com um vemos as coisas do tempo,

efêmeras, que desaparecem. Com o outro vemos as coisas da alma eternas que permanecem (p.137-138).

Cada olho teria, portanto, uma memória diferente. Em um deles ficariam as informações sobre aquilo que realmente aconteceu, mas que está exterior a nós. Basta que queiramos nos lembrar e, pronto, podemos acessar. Já as memórias do outro olho são diferentes. São partes de nós mesmos. Quando as

recordamos, o corpo se altera: chora, ri, brinca, sente saudades, medo, quer voltar – às vezes para pegar no colo aquela criança amedrontada. E nem sabemos se foi daquele jeito mesmo ou se o recordado é uma fantasia... (idem, op.cit.).

Fica claro que aquilo que é narrado em uma memória não é uma simples história, daquelas com começo, meio e fim, como as que costumamos ler na literatura infantil. Nela os acontecimentos não serão encontrados o tempo inteiro ordenados, assim como se faz nas biografias ou nos filmes. As recordações, milimetricamente alinhavadas, cedem lugar à emoção e, sobretudo, aos “deslizes” inconscientes.

Corroborando com essa caracterização, Kenski (1998) assegura que a

memória é, essencialmente, subjetiva, atemporal e a-histórica (p.311). Ao

recuperar as lembranças que marcaram a história de vida escolar, nem sempre é possível obedecer a uma ordem cronológica. Não se trata do filme de uma vida.

Trata-se, muito mais, de um livro de receitas, daqueles que ganhamos de nossas mães quando nos casamos, onde cada receita10 tem sua própria história, que é revisitada e transformada de acordo com as experiências significativas, vivenciadas a cada nova oportunidade.

Tentarei contar, portanto, um pouco das secretas receitas que me acompanham, mobilizam, emocionam, intrigam, angustiam, incomodam e ajudam na minha constituição como pessoa e profissional. São saberes e sabores marcantes que me constituem e dão sentido a este trabalho acadêmico. Isto porque, conforme ratifica Kenski (idem), a escolha do tema de uma pesquisa não ocorre por acaso. Na maioria das vezes, o tema surge de um mergulho profundo

do pesquisador em sua própria interioridade (...) o pesquisador é estimulado a encontrar na sua própria história de vida os motivos e a temática específica que gostaria de pesquisar (p.312).

Com efeito, conforme assegurou Freud (1940/1938): dois temas

ocupam essas páginas: a história da minha vida e a história da Psicanálise. Elas se acham intimamente entrelaçadas (p. 89). Por tudo isso, saborear este tempo

novamente significa, essencialmente, a escuta de mim mesma, de meus propósitos de vida e de pesquisa e, posteriormente, dos sujeitos voluntários para este estudo.

10Considero importante ratificar que a palavra receita, aqui utilizada, não tem a intenção de lembrar

as “receitas prontas” ou “aulas prontas”; ao contrário, convoca o leitor deste texto para a mudança de olhar, para a possibilidade de um novo significado, nada previsível. Aliás, na culinária, assim como na educação, o imprevisível é o único ingrediente que não falta.