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Se a memória pode ser vista como um elemento essencial do que costumamos chamar de identidade (LE GOFF, 1996), justifica-se o seu estudo e interpretações na contemporaneidade. Em um mundo no qual aconteceram mudanças significativas nas décadas mais recentes – nas relações sociais, comerciais e políticas, no desenvolvimento de novas tecnologias, no olhar globalizado sobre a economia, no encurtamento dos prazos –, desperta a necessidade de olhar para si, para suas raízes, entender os elementos que compõem a identificação com as pessoas próximas, com o meio social e laboral, e com o próprio tempo em que se vive.

Os reflexos de uma vida líquido-moderna, estudados por Bauman (2007), com aceleração permanente, como tem se caracterizado o século XXI, podem ser percebidos no comportamento e no relacionamento entre as pessoas, em novas formas de produção, nos hábitos de consumo e, inclusive, na produção e difusão do saber. Olhar para trás, nesse contexto, não representa regredir, mas localizar os alicerces da própria existência, das afetividades e dos relacionamentos.

Para Candau (2012, p. 60), “[...] as relações de si para si mesmo, o trabalho de si sobre si mesmo, a preocupação, a formação e expressão de si, supõem um trabalho da memória”. Ou seja, reconhecer-se é um ato de memória. Se não temos essa percepção clara ou se de alguma forma perdemos a memória, consequentemente perderemos nossa identidade15. Candau (2012) considera que na ausência da memória há um esvaziamento do sujeito, algo que o deixa permanentemente no tempo presente, incapacitando-o de reconhecer-se ao perder suas capacidades conceituais e cognitivas.

A relação entre memória e identidade, percebida a partir dos tempos atuais, tem se sustentado em movimentos de questionamento da história oficial, o que, de

15 Optamos por trabalhar a relação entre memória e identidade a partir da perspectiva dos autores

algum modo, também gera um acúmulo de lembranças, fomentado por atores de fora do círculo dos historiadores. “Todos os corpos constituídos, intelectuais ou não, sábios ou não, apesar das etnias e minorias sociais, sentem a necessidade de encontrar suas origens” (NORA, 1993, p. 17). Para o autor, esse interesse se deve ao fim da história-memória, o que podemos associar ao fenômeno da pós- modernidade16. É possível que esse movimento de recuperação da identidade tenha principiado com acontecimentos do início do século XX, que abordamos na etapa anterior, com as reflexões filosóficas de Bergson (1859-1941), as interpretações psíquicas de Freud (1856-1939) e a abordagem literária a partir do escritor francês Marcel Proust (1871-1922).

Houve, nas décadas recentes – desde os anos 1970 –, uma pulverização da memória geral em memória privada. O propósito é uma investigação das lembranças, um reencontro, o desejo do pertencimento que, por sua vez, gera engajamento. Nora (1993), porém, critica o que chama de psicologização da memória, pois detecta a diminuição de importância da memória coletiva em relação à individual. Na sua visão, “[...] menos a memória é vivida coletivamente, mas ela tem necessidade de homens particulares que fazem de si mesmos homens- memória” (NORA, 1993, p. 18). A leitura da individualização da memória ao longo dos séculos até as recentes décadas é partilhada por Fentress e Wickham (1994), os quais identificam um recuo da memória cada vez mais para o plano pessoal, como uma fonte de conhecimento privado, não social.

Connerton (1993), em Como as sociedades recordam, destaca a importância do conceito de memória social, ancorando boa parte de seus argumentos no trabalho de Halbwachs (2006) e indo além nas intepretações. O autor reflete a respeito da transmissão e da conservação da memória dos grupos, buscando compreender como se dão esses fenômenos. Para Connerton, as imagens do passado legitimam geralmente uma ordem social presente, fruto da memória partilhada. “Conservamos as nossas recordações através da referência ao meio material que nos cerca. [...] É para os espaços sociais [...] que devemos voltar nossa

16 Os estudos sobre o fenômeno da pós-modernidade, termo cunhado por Jean-François Lyotard

(1924-1998), em 1979, apresentam provocações, colocam em dúvida crenças e certezas sobre como pensar o mundo até as primeiras décadas do século XXI e promovem um exercício para deslegitimar mitos e verdades até então inquestionáveis. Ao mesmo tempo, problematizam a sociedade pós-moderna e suas características: o consumo, a lógica de mercado globalizada, o excesso de informação, a falta de comunicação, o individualismo, os avanços tecnológicos e a consequente velocidade dos acontecimentos.

atenção, se queremos que as nossas recordações ressurjam” (CONNERTON, 1993, p. 45).

Além dos espaços sociais, a comunicação entre indivíduos de diferentes gerações, no entendimento do antropólogo britânico, é indispensável à coesão de um grupo e à construção de uma memória social. Não basta, então, a memória estar viva e restrita àqueles que a viveram sem que seja partilhada com outras pessoas durante seu tempo de vida. “É necessário também que os membros mais velhos do grupo não negligenciem a transmissão dessas representações aos membros mais jovens” (CONNERTON, 1993, p. 46).

Nessa mesma linha, Fentress e Wickham (1994) compreendem que a memória, embora seja subjetiva, “é estruturada pela linguagem, pelo ensino e observação, pelas ideias coletivamente assumidas e por experiências partilhadas com os outros. Também isso constrói uma memória social” (FENTRESS; WICKHAM, 1994, p. 20).

A partir dos autores que discorrem sobre memória social, podemos compreender a relevância desse conceito para a sustentação e a perpetuação da cultura em uma sociedade. Esse olhar se coaduna com o de Goodenough (1957), que considera a cultura de uma sociedade como resultado de uma aprendizagem coletiva, acumulada ao longo da vida e, porque não, recebida dos mais velhos.

O olhar/desejo privado de memória é refletido por Meihy (2013) como uma reação à anulação de singularidades nas formas adotadas de descrição histórica com base na coletividade. Essa insatisfação pelo silêncio, ao qual alguns grupos foram relegados, acabou por promover a autonomia de novos narradores, que passaram a protagonizar os discursos. Com isso, o autor destaca:

Novos discursos despontaram em substituição a desgastados conceitos convencionais formalizados, em particular, os documentos escritos. Sobretudo, limites identitários foram atingidos por não terem sido contemplados nas possibilidades documentais que, em suas “grandes explicações”, reduziam particularidades (MEIHY, 2013, p. 32).

Apesar da compreensível crítica de Nora (1993) ao excesso de privatização da memória, Meihy (2013) contemporiza, mostrando que a frustração de pessoas que não viram suas vidas, experiências, sofrimentos e testemunhos documentados pela história oficial gerou um movimento de manifestação individual, de mobilização

pela construção de referenciais e de uma busca por (ou reforço da) identidade. Esse aspecto se acentuou nos anos recentes, notadamente no século XXI, com a ampliação de possibilidades narrativas e novos suportes, especialmente os digitais, que facilitam, numa cultura participativa (JENKINS, 2014), a propagabilidade das falas, alcançando públicos antes distantes pela limitação dos recursos impressos, por exemplo.

A disputa pelo reforço da identidade a partir da memória também pode ser interpretada como uma resistência ao esquecimento, ou, ainda, uma disputa com as versões historiadas dos fatos e uma maneira de não se deixar apagar no tempo. O esquecimento, no entanto, é inevitável e, por vezes, desejável.

O conto narrado por Jorge Luis Borges (1899-1986), intitulado Funes, o memorioso, mostra um homem simples, dedicado às lidas campeiras, capaz de reter em sua mente todos os acontecimentos por ele vividos, sem qualquer perda de detalhes. Essa habilidade foi desenvolvida (ou aguçada) após uma queda de um cavalo, que o deixou paralítico. Irineo Funes, um jovem de 19 anos, revelou ao menino Borges, que o visitara numa estância do Uruguai (Fray Bentos), onde este passava suas férias, a capacidade infalível de percepção e memória. Isso o tornava capaz de captar e recordar absolutamente tudo, um aparente privilégio que também revelou-se fonte de sofrimento. “Minha memória, senhor, é como um monte de lixo” (BORGES, 2007, p. 105), disse Funes ao garoto Borges, que o escutava atentamente em uma visita ao convalescente. Com uma capacidade única de arquivar informações, Funes aprendeu o inglês, o francês, o português e o latim. Lia muitas obras clássicas. Porém, suspeitava Borges em seu conto, que o peão de estância não era capaz de pensar. “Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair” (BORGES, 2007, p. 108), refletiu o narrador. E, de fato, o pobre Irineo não tinha essa capacidade. Funcionava como um gravador ininterrupto. Funes, de acordo com o conto, morreu aos 21 anos, de congestão pulmonar.

A título de analogia com a memória eletrônica, Funes teria uma capacidade superior às máquinas, tendo em vista que estas somente são capazes de gravar o que está programado para salvarem, ou, então, obedecem aos comandos humanos. Ainda numa alegoria aos cérebros eletrônicos, o camponês tinha memória, mas nenhuma necessidade de comunicá-la. Guardava em si e para si os dados armazenados.

Tal como o conto de Borges (2007) ilustra, o esquecimento é importante à nossa sobrevivência. Parece assustador, desnecessário, inútil e funesto ser um arquivo ambulante. Nossa memória exprime a ligação do nosso espírito ao nosso corpo e do nosso corpo com o mundo social e natural que nos rodeia, sustentam Fentress e Wickham (1994). No entanto, destacam os autores, esta continuidade é também fonte de esquecimento normal.

Cabe esclarecer que o esquecimento é refletido por diferentes autores e caracterizado sob variadas formas. Paul Ricoeur (2007), ao discorrer sobre o tema na obra A memória, a história, o esquecimento, dedica um capítulo ao tópico. Para ele, o esquecimento continua sendo a inquietante ameaça que se delineia no plano de fundo da fenomenologia da memória e da epistemologia da história. Se visto como um dano, fraqueza ou uma lacuna temporal, a memória é percebida como uma luta contra o esquecimento. Ao tratar do que chama de apagamento e de persistência dos rastros memoriais, o filósofo francês aprofunda-se no debate das ciências neuronais, discutindo o esquecimento como uma disfunção/distorção da memória, mas também suas contraposições. Nesse aspecto, acredita que o esquecimento é deplorado assim como o envelhecimento ou a morte, por ser uma das faces do irremediável. “A memória passa diariamente pela experiência da erosão” (RICOEUR, 2007, p. 448), associada às limitações cerebrais decorrentes do ato de envelhecer. No entanto, podemos ter acesso a pequenas felicidades por meio de lembranças que nos pareciam perdidas, e isso nos mostra, muitas vezes, que o temor de perdê-las pode ser maior do que as perdas em si.

Num recorte sobre o esquecimento de recordação – usos e abusos da memória –, Ricoeur (2007) reflete sobre o esquecimento e a memória impedida, especialmente relacionada a eventos traumáticos, sob a ótica da psicanálise; o esquecimento e a memória manipulada, com exercício de acomodação dos fatos que convêm serem lembrados/esquecidos; e o esquecimento comandado, que trata da anistia como perdão para evitar condenação e castigo (RICOEUR, 2007). Cabe, aqui, uma atenção especial para a forma como o autor relaciona identidade e esquecimento:

As estratégias do esquecimento enxertam-se diretamente nesse trabalho de configuração: pode-se sempre narrar de outro modo, suprimindo, deslocando ênfases, refigurando diferentemente os protagonistas da ação assim como os contornos dela. Para quem

atravessou todas as camadas de configuração e de refiguração narrativa desde da constituição da identidade pessoal e até das identidades comunitárias que estruturam nossos vínculos de pertencimento, o perigo maior, no fim do percurso, está no manejo da história autorizada, imposta, celebrada, comemorada – da história oficial (RICOEUR, 2007, p. 455).

Vemos aqui mais uma justificativa ao desejo de memória individualizada que move muitas pessoas e que recebe críticas de autores como Nora (1993) e Huyssen (2000). Para escapar das estratégias do esquecimento, torna-se legítimo criar uma narrativa própria.

No que tange à memória das organizações, as práticas que evocam o passado são comumente assentadas em situações positivas, festivas, agradáveis. Já os períodos conflituosos, sob o olhar da gestão, passam despercebidos ou são deliberadamente esquecidos. Pode ser por uma estratégia de autoproteção, visando à perpetuação dos empreendimentos e à manutenção do negócio.

É adequado problematizarmos que nessas lembranças – e esquecimentos – normalmente não são contemplados elementos contraditórios ou de tensão (greves, paralisações, conflitos). Ao fazer uma leitura crítica a esse respeito, Andreoni (2018, p. 92) destaca, no contexto das organizações, que “[...] em um cenário de tantas incertezas e volatilidades, a Memória Organizacional pode se configurar como uma alternativa de (re)construção do real. Um real arquitetado” (grifo da autora). O objetivo seria o estreitamento da relação com seus públicos, num processo de identificação, engajamento, pertencimento e empatia.

Convém lembrarmos que no ambiente organizacional a seletividade do que é recordado está atrelada, principalmente, a quem exerce as posições hierárquicas mais altas. A esse respeito, Ravasi (2014) discorre sobre a história organizacional como uma reconstrução seletiva e parcial dos eventos passados, e que, para preservar o discurso dominante, as narrativas memorialísticas estão suscetíveis ao sacrifício da precisão dos fatos.

No caso das universidades comunitárias, apresentamos o questionamento sobre as circunstâncias de evocação das memórias institucionais. No que corresponde à identidade, pretendemos revelar se a identificação como Instituições Comunitárias de Educação Superior é um elemento visível da comunicação da memória.