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MEMÓRIAS DA RESISTÊNCIA

3.1 Memória e história

Para essa análise, fez-se necessário empreendermos um fecundo diálogo entre os relatos de memória que serviram como parâmetro complementar fundamental às fontes documentais escritas oriundas dos órgãos de informação e segurança. A dimensão que pretendemos dar ao diálogo aqui proposto passa pela relação da memória com a história na perspectiva pensada por Antonio Torres Montenegro:

Em lugar de tomarmos o conceito de memória como algo acabado e passarmos a avaliar em que este se aproxima ou se distancia daquilo que é considerado verdadeiro, ou seja, ser uma lembrança viva de pessoas e grupos, propomos estudá-la nas diversas formas que adquire em situações sociais e históricas específicas. Ou seja, estudar o significado social que as lembranças adquirem em função de temas e questões colocadas pelo presente, bem como avaliar a dimensão de experiências individuais e coletivas que colocam a memória em constante movimento a partir dos desafios sociais, políticos e culturais. (MONTENEGRO, 2006, p. 104).

Nessa perspectiva de compreender a memória em constante movimento a partir dos desafios, sobretudo políticos, selecionamos alguns segmentos de esquerda visados pela polícia antes e durante o regime civil-militar, na tentativa de estabelecer uma conexão entre os relatos orais provenientes da resistência à

ditadura e as fontes documentárias policiais, com o objetivo de ampliar através de vários subsídios a compreensão do fazer histórico, na medida em que:

Os documentos dizem de múltiplos passados, múltiplas redes, múltiplos níveis, em que se estabelecem as práticas sociais. O debruçar-se sobre o passado através dos documentos nos leva a perseguir fios, labirintos, níveis distintos de práticas que tangenciam e que, ao se transformar em narrativa histórica, irão dizer muito a alguns no presente e muito pouco ou mesmo nada a outros. (MONTENEGRO, 2006, p. 106).

É importante destacar que toda elaboração realizada pelos órgãos de informação e segurança em torno dos segmentos de oposição não passa de representações (CHARTIER, 1990, p. 20) criadas no intuito de delimitar o perfil e o espaço dos inimigos do regime, os quais foram estrategicamente tachados de “subversivos”. Como resultado dessa produção temos o que (Ricoeur, 2000, p.106), designou como a terceira dimensão da memória, a dos sinais materiais, documentais, que correspondem ao campo de investigação dos historiadores. “Elas [as fontes orais e escritas] constituem, portanto, sozinhas a inevitável imbricação da história e da memória [...]”. (DOSSE, 2004, p. 151).

É fundamental perceber essa dimensão, uma vez que de um lado temos toda uma produção documentária policial, em torno da qual os procedimentos de esquadrinhamento do ser humano foram realizados, e do outro lado a possibilidade infinitamente fértil de se recuperar, por intermédio dos relatos da memória desses personagens que estiveram do lado oposto, outros fragmentos reveladores dos fatos ocorridos durante o regime civil-militar de 1964, sobre o qual a sociedade vivencia um inquietante silêncio. Assim, tentaremos estabelecer os fios que conduzem a novas possibilidades de leitura dialética do passado/presente.  

Ricoeur insiste no fato de que o passado ainda existe no tempo folheado do presente. [...] É a partir dessa insistência que memória e história podem ser confrontadas como duas práticas, duas relações com o passado do ser histórico, em uma dialética do ligamento e o desligamento. (CHARTIER, 1990, p. 155). 

Inúmeros foram os embates entre as “forças de segurança”98 do país e as “forças de oposição”99, com a adoção de procedimentos que iam desde o emprego da suspeição e vigilância, que eram estratégias de “reconhecimento do inimigo”, até

98

Os órgãos de segurança como as Forças Armadas e seus respectivos Centros de Informações, Polícia Federal, unidades DOPS do país, Divisões de Segurança, etc.

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Os segmentos de oposição ao governo: partidos políticos, organizações como a Ação Libertadora Nacional, Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, Movimento 8 de Outubro, Vanguarda Popular Revolucionária entre outros; e movimentos como as Ligas Camponesas, alguns setores progressistas da Igreja, o Movimento Estudantil, etc.

o seu esquadrinhamento (repressão). É sabido que durante o período em que o país esteve sob a tutela das Forças Armadas muitas medidas foram tomadas no intuito de coibir a disseminação e proliferação de idéias e ações que atentassem contra o regime.

O clima tenso instalado no cenário nacional apontava para as esquerdas atentas e dispostas a agir em nome de um ideal de sociedade mais justa, razão pela qual pagaram um preço alto. Vários foram os procedimentos repressivos utilizados com a finalidade de controlar os focos de rebelião, no entanto, as táticas de resistência empregadas pelos manifestantes/militantes alcançaram patamares cada vez mais aprimorados no embate com as Forças Armadas.

Era rotina a polícia rotular, de forma generalizada, os segmentos de esquerda ou os simpatizantes de “comunistas”. No entanto, ao nos debruçarmos no estudo dos grupos de esquerda que atuaram no Brasil naquele período, observamos várias orientações ideológicas coexistindo, cada qual com uma leitura do contexto político e com propostas diferenciadas dos encaminhamentos que se deveriam seguir para implantação de um projeto político revolucionário para o país. Nesse sentido, temos configurado o embate de projetos políticos distintos, cujas práticas e discursos vão fazer circular uma produção diferenciada de fontes documentais escritas/orais que refletem essas posições conflitantes, onde é possível perceber o confronto entre memórias e identidades. Isso mostra, de acordo com Pollak (1992, p. 204), “que a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos.”

Do mesmo modo que durante o regime civil-militar os métodos coercitivos policiais foram diferenciados, também em relação às esquerdas as práticas revolucionárias foram distintas, sendo necessária uma constante revisão/avaliação dos procedimentos específicos utilizados por cada um dos segmentos. E essas táticas impuseram o movimento, o ritmo do embate entre os lados opostos, a ponto de se perceber, ao investigar os documentos do acervo DOPS-PE e os relatos de memória do período, que a rede de informações não subsistiria se não fosse a existência de outra rede, aquela que na interpretação policial era tida como ”subversiva”. Isso parece óbvio, mas traz em si toda uma carga de envolvimentos, de tensões, de disputas, de embates históricos e silenciamentos responsáveis pelo sentido do próprio regime civil-militar.

Como critérios para escolha dos segmentos a serem analisados foram observados três aspectos, que nos permitirão visualizar a dimensão das práticas de resistência empregadas no intuito de despistar os integrantes da rede de informações: o primeiro se refere à quantidade de informes e informações produzidos/tramitados nos órgãos da rede em torno dos mesmos; o segundo diz respeito à freqüência com que eram monitorados pela polícia; e, finalmente, o terceiro considera os procedimentos coercitivos utilizados pelo aparato militar. Com isso pretendemos destacar uma certa práxis comum ao regime militar de impor como verdadeira a versão oficial sobre o acontecido nos anos de ditadura. Essa predominância da história oficial foi analisada por Michael Pollak:

A fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou de grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o Estado desejam passar a impor. (POLLAK, 1989, p. 8).

Identificamos três grupos que tiveram grande evidência no período em foco, a partir das seguintes características: a) o grau de ameaça que o seu projeto político poderia representar; b) a freqüência da vigilância e repressão policial a eles impostas; c) o tipo de resistência que ofereceram, dificultando/impedindo a ação policial. Isso não significa que no contexto social, outras forças de oposição que desempenharam um papel expressivo tenham escapado à lógica da suspeição policial. Entretanto, destacamos aqui os segmentos que intensamente foram objeto da malha vigilante, sendo por isso alvo constante do monitoramento dos órgãos de segurança: as Ligas Camponesas, o Movimento Estudantil e duas dissidências do Partido Comunista – a Ação Libertadora Nacional (ALN), que segundo alguns autores aparece como a principal organização de esquerda operando no Brasil naquele período (MIRANDA; TIBÚRCIO, 1999, p. 27-29), e o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), que teve bastante atuação no Nordeste.

É importante acrescentar que não é objeto desse trabalho discutir em profundidade sobre nenhum dos segmentos aqui selecionados, nosso objeto é percorrer o caminho dos órgãos de informação e segurança no trabalho de vigilância junto à sociedade, é perceber como e porque são escolhidos os alvos, é entender os mecanismos e práticas utilizadas pela polícia, no intuito de coibir as ações consideradas subversivas.