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Memória e História: uso, manipulação e construção

CAPÍTULO 1 – TRAJETÓRIA, MEMÓRIA E ESCRITA BIOGRÁFICA:

1.2 Memória e História: uso, manipulação e construção

O debate a respeito da escrita da história está presente em tempos diversos. Escrever sobre o passado adquire significados que não são homogêneos, pois as contradições fazem parte do processo,

No domínio da história, sob a influência das novas concepções do tempo histórico, desenvolve-se uma nova forma de historiografia – a ‘história da história’ – que, de fato é, na maioria das vezes, o estudo da manipulação pela memória coletiva de um fenômeno histórico que só a história tradicional tinha até então estudado. (LE GOFF, 2003, p. 468).

Diante da afirmação de Le Goff, salientamos a relevância de reflexões sobre essa manipulação da memória coletiva sobre o passado, como ela tem se aproximado da escrita da história ou, além de aproximação, sendo utilizada como fonte histórica. Entretanto, antes cabe destacar as considerações de Hobsbawm (1998, p. 37) acerca da função desse passado para a história. Segundo o autor,

até o século XVIII – supunha-se que ela pudesse nos dizer como uma dada sociedade, qualquer sociedade, deveria funcionar. O passado era o modelo para o presente e o futuro [...]. Daí o significado do velho, que representava sabedoria não apenas em termos de uma longa experiência, mas da memória de como eram as coisas, como eram feitas e, portanto, de como deveriam ser feitas.

Hoje, segundo o autor, esse tipo de referência do passado, enquanto acúmulo de experiência como modelo a ser seguido, já não serve à história, já que o presente não é, bem como não pode ser, uma continuação, uma cópia do que foi no passado. Sobre essa visão tradicional da história a respeito da memória do passado, Burke (2000, p. 69) sublinha que

A visão tradicional da relação entre a história e a memória é relativamente simples. A função do historiador é ser o guardião da memória dos acontecimentos públicos quando escritos para proveito dos atores, para proporcionar-lhes fama, e também em proveito da posteridade, para aprender com o exemplo deles.

Dessa forma, considerando que a memória coletiva tem como referência o passado, entendemos a importância de refletir como tal memória passou a ser objeto de estudo da história, superando essa função do passado de servir como modelo ao presente e ao futuro. Le

Goff (2003, p. 469) afirma que na segunda metade do século XX, o desenvolvimento das sociedades esclarece a importância do papel desempenhado pela memória coletiva, assim,

Exorbitando a história como ciência e como culto público, ao mesmo tempo a montante, enquanto reservatório (móvel) da história, rico em arquivos e em documentos/monumentos, e aval, eco sonoro (e vivo) do trabalho histórico, a memória coletiva faz parte das grandes questões das sociedades desenvolvidas, das classes dominantes e das classes dominadas, lutando, todas, pelo poder ou pela vida, pela sobrevivência e pela promoção.

Como salienta o autor, a chamada “nova” história, que se empenha na criação de uma história científica baseada na memória coletiva, pode ser compreendida com uma transformação da memória, perpassando por pontos elementares como renunciar a linearidade do tempo em favor da multiplicidade de vivência dos tempos, considerando o individual inserido no meio coletivo e social, e considerar “lugares” da memória como fomento para os estudos históricos, sejam eles físicos como museus e bibliotecas, sejam lugares simbólicos como comemorações e aniversários, dentre outros.

Le Goff (2003), citando Pierre Nora, enfatiza que não se pode desconsiderar o que chama de verdadeiros lugares da história, em que se deve investigar os denominadores e criadores da memória coletiva, que são os estados, meios sociais e políticos. Esses decidem o que será arquivado, de acordo com a utilização que fazem da memória.

Isto posto, observamos que a memória coletiva faz parte da sociedade, possibilitando um olhar mais ampliado para questões que eram desconsideradas nas pesquisas históricas ditas tradicionais. De outra forma, consideramos a importância de se ter clareza de que o registro e a apresentação da memória coletiva decorreram de uma intencionalidade em relação ao uso dessa memória. Sobre isso, Le Goff (2003, p. 525) afirma que

De fato, o que sobrevive não é um conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal no mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores.

Burke (2000, p. 70) também nos alerta da relação cuidadosa que deve ser estabelecida entre a História e a memória, ressaltando que

Tanto a história quanto a memória passaram a revelar-se cada vez mais problemáticas. Lembrar o passado e escrever sobre ele não mais parecem as atividades inocentes que outrora se julgava que fossem. Nem as memórias nem as histórias parecem mais ser objetivas. Nos dois casos, os historiadores aprendem a levar em conta a seleção consciente ou inconsciente, a interpretação e a distorção. Nos dois casos, passam a ver o processo de seleção, interpretação e distorção como

condicionado, ou pelo menos, influenciado, por grupos sociais. Não é obra de indivíduos isolados.

Além disso, há a questão da infidelidade da memória. Como acentua Loriga (2011, p. 69), ela passa por incessantes modificações das hierarquias dos fatos, podendo

mesmo amanhã descobrir o alcance daquilo que é hoje escrito em minúsculas e apagar o que está escrito em caixa alta. Sabe igualmente que o trabalho de manipulação não concerne unicamente à memória, mas provém também de nossa maneira de olhar: a percepção que cada um de nós tem dos acontecimentos não é em nada compatível a dos outros.

Assim, considerando que as escolhas da conservação do passado são feitas a partir de interesses e de perspectivas diferentes, ponderamos a afirmação de Le Goff (2003, p. 427) em que a memória passou pelo desenvolvimento da oralidade para a escrita,

Nas sociedades sem escrita, a memória coletiva parece ordenar-se em torno de três grandes interesses: a idade coletiva do grupo, que se funda em certos mitos, mais precisamente nos mitos de origem; o prestígio das famílias dominantes, que se exprime pelas genealogias; e o saber técnico, que se transmite por fórmulas práticas fortemente ligadas à magia religiosa.

Segundo o autor, nas sociedades em que a oralidade é predominante, é possível compreender o uso da memória coletiva como um instrumento de poder, já que serviram à classe dominante como ferramenta de luta pela dominação impondo a tradição por meio de memórias do passado.

Todavia, nas sociedades com memória coletiva escrita já desenvolvida, não foi diferente. Tais memórias também serviram a determinados interesses. Le Goff (2003) reitera que o que foi transformado em documento pela história tradicional, a partir do que foi recolhido pela memória coletiva, deve ser exposto a uma crítica mais profunda. O autor salienta ainda que,

Quer se trate de documentos conscientes ou inconscientes (traços deixados pelos homens sem a mínima intenção de legar um testemunho à posteridade), as condições de produção do documento devem ser minuciosamente estudadas. As estruturas de poder de uma sociedade compreendem o poder das categorias sociais e dos grupos dominantes ao deixarem, voluntariamente ou não, testemunhos suscetíveis de orientar a história num ou noutro sentido; o poder sobre a memória futura, o poder da perpetuação, deve ser reconhecido e desmontado pelo historiador. Nenhum documento é inocente. Deve ser analisado. Todo documento é um monumento que deve ser desestruturado, desmontado. O historiador não deve ser apenas capaz de discernir o que é “falso”, avaliar a credibilidade do documento, mas também saber desmistificá-lo. Os documentos só passam a ser fontes históricas depois de estar sujeitos a tratamentos destinados a transformar sua função de mentira em confissão de verdade. (LE GOFF, 2003, p. 110).

Diante disso, ponderamos que é com esse olhar criterioso que intentamos nos direcionar aos documentos, almejando vê-los e tê-los como fontes históricas, para a realização da pesquisa sobre a trajetória de vida de Zilda Diniz Fontes. Mas devemos nos atentar não somente diante das fontes que temos em mãos, mas também diante daquilo que não está explícito, escrito, posto. Sobre isso, Le Goff (2003, p. 109) sublinha que

Falar dos silêncios da historiografia tradicional não basta; penso que é preciso ir mais longe: questionar a documentação histórica sobre as lacunas, interrogar-se sobre os esquecimentos, os histos, os espaços em branco da história. Devemos fazer o inventário dos arquivos do silêncio e fazer a história a partir dos documentos e da ausência de documentos”.

A respeito da postura diante da história, Hobsbawm (1988, p.47) faz uma ponderação acerca da postura dos historiadores, afirmando que “É tarefa dos historiadores saber consideravelmente mais sobre o passado do que as outras pessoas e não podem ser bons historiadores a menos que tenham aprendido, com ou sem teoria, a reconhecer semelhanças e diferenças”. Salienta ainda que

É muito importante que os historiadores se lembrem de sua responsabilidade, que é, acima de tudo, a de se isentar das paixões de identidade política – mesmo se também as sentirmos. Afinal de contas, também somos seres humanos. [...]Temos de resistir à formação de mitos nacionais, étnicos e outros, no momento em que estão sendo formados. Isso não nos fará populares. (HOBSBAWM, 1998, p. 20-21).

Além da resistência para não contribuirmos ou sermos responsáveis por criar mitos, Hobsbawm (1998, p. 48) destaca outro papel dos historiadores, evidenciando que

A história como inspiração e ideologia tem uma tendência embutida a se tornar mito de autojustificação. Não existe venda para os olhos mais perigosa que esta [...] É tarefa dos historiadores tentar remover essas vendas, ou pelo menos, levantá-las um pouco ou de vez em quando – e, na medida que o fazem, podem dizer à sociedade contemporânea algumas coisas das quais ela poderia se beneficiar, ainda que hesite em aprendê-las.

Assentadas nessas reflexões, reiteramos o cuidado que intentamos ter ao nos direcionar para as fontes históricas sobre parte da vida de Zilda, fontes essas baseadas nas próprias memórias de Zilda e sob o olhar e as memórias de outros autores que escreveram sobre ela. Objetivamos, assim, confrontar os documentos, considerando as condições em que foram escritos, construídos, almejando utilizá-los como fontes históricas.