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Memórias que resistiram ao tempo: uma recuperação histórica por meio

4 BERTA LUCIA: A SANTA PRUDENTINA

4.5 Memórias que resistiram ao tempo: uma recuperação histórica por meio

Nascida em 15 de novembro de 1939 e falecida em 16 de fevereiro de 1944, Berta Lucia Fonseca não é natural de Presidente Prudente, conforme conta a única irmã viva, Eliana Galvão Martinelli10. A menina veio de Cataguases, município de Minas Gerais, junto com a mãe, Ana Oliveira Fonseca. De origem humilde e com poucos recursos, a família aqui se instalou em busca de uma vida melhor. Na época, a criança já era órfã de pai, que morreu em um acidente de trânsito enquanto trabalhava. Para garantir o sustento, Ana levava a vida como faxineira e seguia para o emprego todos os dias na companhia de Berta Lucia.

O adoecimento da menina é descrito pelos familiares e parentes como repentino. Martinelli11 afirma que, no dia da fatalidade, Berta Lucia começou a se sentir mal e apresentar quadro de vômito e febre, sendo conduzida ao médico José Cupertino D’Arce, que fez o diagnóstico da meningite. Uma vez que os recursos daquele período eram escassos, Berta Lucia veio a falecer.

Segundo o documento lavrado (FIGURA 6) em 17 de fevereiro de 1944, Berta Lucia Fonseca, filha de Luiz Rodrigues e de dona Ana Fonseca, natural de Cataguases e domiciliada e residente em Presidente Prudente, faleceu em 16 de fevereiro de 1944, às 12 horas, na Rua Casemiro Dias, número 665. O atestado de óbito foi firmado por José Cupertino D’Arce (grafado erroneamente como José Lupersino), que deu como causa de morte meningoencefalite.

10 Eliana Galvão Martinelli. Irmã de Berta Lucia. Entrevistas sobre a vida de Berta Lucia e a popularização de sua imagem, 16 out. 2016 e 23 fev. 2017.

FIGURA 6 – Atestado de óbito de Berta Lucia

Foto: Ana Caroline Nezi

De acordo com a Emubra, José Cupertino D’Arce foi um dos primeiros pediatras de Presidente Prudente. Na época, o atendimento médico era prestado em consultórios particulares ou por meio de visitas domiciliares. Aos pacientes sem recursos, não eram cobrados honorários, enquanto aqueles que precisavam ser internados eram encaminhados aos hospitais locais.

Após o falecimento de Berta Lucia, a mãe da menina, descrita pelos familiares como uma mulher muito querida pela população, dedicou-se a manter a imagem da menina viva. Martinelli12 conta que a casa da matriarca era muito visitada por pessoas que buscavam por oração ou serem benzidas. Do segundo casamento de dona Ana, nascem, em 1947, Roberto Galvão de Oliveira, e, em 1952, Eliana Galvão, que teria recebido o primeiro milagre da irmã, narrado por Martinelli13:

12 Eliana Galvão Martinelli. Irmã de Berta Lucia. Entrevistas sobre a vida de Berta Lucia e a popularização de sua imagem, 16 out. 2016 e 23 fev. 2017.

Quando eu era bebezinha, minha mãe me colocou em um daqueles colchonetes que faziam antigamente. Eu já estava começando a engatinhar. Ela colocou o feijão para cozinhar e a panela explodiu. No que explodiu, veio para cima de mim e me cobriu. Eu era miudinha, porque nasci muito pequenininha, e minha mãe já veio e gritou para a minha madrinha, que morava do lado, em uma daquelas casinhas da Fepasa. Minha mãe gritou por Nossa Senhora Aparecida e gritou por Berta: ‘ô, minha filha Berta Lucia, Deus já te levou, não deixe que nada aconteça com sua irmã, eu não aguento ficar sem mais um!’. Aí, minha madrinha já chegou, no desespero, e disse: ‘calma, comadre! Calma, comadre! Porque não vai acontecer nada!”. Aí, começou a me puxar, toda coberta de feijão e, ao me limpar, me colocar debaixo da água, lavando, eu não tinha uma bolha. Essa foi uma das graças.

Segundo Martinelli14, com a mudança do cemitério, os restos mortais de Berta Lucia foram transferidos para o cruzeiro do local, onde permaneceu até ganhar a capela, cujo primeiro aspecto é diferente daquele que a população conhece hoje. O zelador da estrutura, João de Souza15, é funcionário público aposentado e dedicou boa parte de sua vida ao serviço de limpeza do Cemitério São João Batista. Ele ainda é responsável pela manutenção de 15 túmulos e o sepulcro da garota, ao qual presta serviços gratuitamente. Souza16 complementa que, antes de existir a capela, a menina estava enterrada em uma carneira revestida de azulejos cor de rosa. Após a intercessão à Berta Lucia, seguida pela concessão da graça, um japonês não identificado pelo zelador e pelos familiares vivos providenciou a construção da capela.

Souza17 diz não ter conhecimento sobre as transferências do corpo de Berta Lucia, posto que, quando ouviu falar sobre a menina pela primeira vez, ela já estava enterrada no local onde hoje se situa a capelinha. Na época, ele acompanhava a dedicação constante de dona Ana (FIGURA 7) para manter o sepulcro da filha sempre conservado, muitas vezes até por mais de dez horas nos dias em que o visitava. Em determinado momento, Souza18 começou a auxiliá-la com a limpeza e manutenção, sem fazer qualquer cobrança. O gesto foi uma forma que o zelador encontrou de retribuir a generosidade da mulher para com ele. Quando dona Ana ficou doente, ele assumiu a tarefa e até hoje a executa.

14 Eliana Galvão Martinelli. Irmã de Berta Lucia. Entrevistas sobre a vida de Berta Lucia e a popularização de sua imagem, 16 out. 2016 e 23 fev. 2017.

15 João de Souza. Zelador da capela de Berta Lucia. Entrevista sobre seu envolvimento voluntário na manutenção do túmulo, 03 mar. 2017.

16 Idem. 17 Idem. 18 Idem.

FIGURA 7 – Ana Fonseca de Oliveira, mãe de Berta Lucia

Fonte: O Imparcial (Cemitério..., 1984)

Embora o sepulcro de Berta Lucia continue atraindo centenas de devotos todos os anos, Souza19 relata que, no passado, as manifestações de fé eram mais intensas, tendo em vista que o túmulo recebia um número muito maior de visitações e não restritas ao dia de Finados:

Mas isso acabou tudo. Hoje, nesse cemitério, se você for andar, não vai ter ninguém aí para baixo. Perderam o amor pelo cemitério. Antigamente não. O dia dos pais era lotado, o dia das mães. Todos os feriados. Agora acabou. Você não vê uma alma aqui dentro. É até perigoso andar sozinho por aqui. É mais fácil achar um malandro aqui do que pessoas boas.

19 João de Souza. Zelador da capela de Berta Lucia. Entrevista sobre seu envolvimento voluntário na manutenção do túmulo, 03 mar. 2017.

Souza20 enfatiza que o dia das crianças também era uma data popular no cemitério, pois Eliana entregava comidas e presentes aos devotos. O zelador acrescenta que a tradição foi interrompida com a morte de dona Ana, em 2003.

Segundo Martinelli21, a mãe “morreu do coração, que estava muito fraquinho”, no dia 31 de agosto, aos 87 anos. No ano anterior, ela já havia se despedido de Roberto, falecido em 10 de outubro de 2002, vítima das complicações de um aneurisma. Em vida, o irmão foi proprietário de uma agência de turismo, a Prudentur, e também era responsável por cuidar da capela. Em 17 de novembro de 2003, veio a óbito o pai de Eliana, Evangelista Galvão de Oliveira. “Foi uma dor bem grandona”, descreve Martinelli22.

A atual fachada da capela de Berta Lucia foi viabilizada com recursos do ex-prefeito de Presidente Prudente, Agripino de Oliveira Lima Filho. Conforme Souza23, a irmã de Berta Lucia, Eliana, hoje responsável pela estrutura, dispôs-se a arrecadar recursos para reformá-la. Seu marido, Augusto Martinelli, em uma conversa com Agripino, apresentou a ele o propósito da esposa, informando-lhe que pretendia montar uma rifa com as bonecas doadas para conseguir o dinheiro da restauração. O zelador afirma que Agripino repentinamente recusou a ideia e se prontificou a enviar pedreiros ao local a fim de iniciar a revitalização da capela. Com isso, a estrutura ganhou o aspecto que tem hoje.

O jornalista Altino Correia24 foi um dos principais repórteres envolvidos na cobertura do fenômeno devocional. Embora esteja afastado das redações, o profissional ainda tem a história de Berta Lucia na ponta da língua. Ele conta que a ouviu pela primeira vez na década de 60, quando chegou a Presidente Prudente para trabalhar no rádio. Segundo Correia, o fato era o que mais chamava a atenção no dia de Finados. Na época, também foi correspondente do jornal Folha de S.

Paulo por meio do periódico Notícias Populares, cuja matéria de destaque no feriado

de dois de novembro era a história da menina.

20 João de Souza. Zelador da capela de Berta Lucia. Entrevista sobre seu envolvimento voluntário na manutenção do túmulo, 03 mar. 2017.

21 Eliana Galvão Martinelli. Irmã de Berta Lucia. Entrevistas sobre a vida de Berta Lucia e a popularização de sua imagem, 16 out. 2016 e 23 fev. 2017.

22 Idem.

23 João de Souza. Zelador da capela de Berta Lucia. Entrevista sobre seu envolvimento voluntário na manutenção do túmulo, 03 mar. 2017.

24 Altino Oliveira Correia. Jornalista. Entrevista sobre sua participação na cobertura da imprensa a respeito do fenômeno devocional, 13 abr. 2017.

Após a experiência no rádio e no meio impresso, o jornalista ainda realizou matérias sobre o tema para a televisão, durante sua passagem pela afiliada da Rede Globo em Bauru e Rede Bandeirantes. Sobre a possibilidade de um dia o assunto deixar de ser notícia, ele comenta que enquanto houver fé, não há dificuldade para a permanência da devoção.

Correia25 relata que conheceu os irmãos da garota, Roberto e Eliana, bem como Ana Fonseca de Oliveira, de quem se tornou muito amigo. Descreve a mãe de Berta Lucia como uma pessoa “humilde, bastante temerosa e principalmente simples”. Aponta que durante as entrevistas, Ana lembrava das saudades e ressaltava a marca que a menina deixou em sua vida, tendo sido “uma figura de muita alegria e cuja morte deixou um vazio muito profundo”. A respeito de suas considerações acerca do fenômeno que acompanhou de perto, o profissional argumenta que o aspecto que sempre lhe instigou foi a grande fluência de pessoas na capela da criança:

O que eu posso dizer é que Berta Lucia é uma figura muito popular, a quem são atribuídos os milagres. Muita gente se diz curada ou contemplada com as graças, pela fé e tal, então é essa a história dela. Interessante que eles abriram um esquema no cemitério que transforma a sepultura em capela, uma capelinha onde depositam as fotografias, lembranças, flores e etc. Daí conserva a tradição e a lembrança da pessoa que é sepultada. Então, veja bem, se ela nasceu em 1939, teria hoje 60, 70, quase 80 anos, né? 78 anos, a idade da minha mulher. Uma menina de quatro anos e pouco que perpetuou para a história. Gente que não conheceu, mas que vai levada ao cemitério pela crença, pela fé, pela religiosidade frequentemente e mais no dia de Finados.