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Religiosidade popular e santidade não institucionalizada

4 BERTA LUCIA: A SANTA PRUDENTINA

4.2 Religiosidade popular e santidade não institucionalizada

Antes de analisar a influência de Berta Lucia na religiosidade popular, é preciso abordar questões primordiais como a santidade não institucionalizada e a religiosidade popular. Para Mara Regina do Nascimento (2009), em seu artigo

Religiosidade e cultura popular: catolicismo, irmandades e tradições em movimentos, o termo religiosidade, por si próprio, refere-se ao que vem do povo, ao

contrário do vocábulo religião, que alude aos dogmas, prescrições e hierarquia eclesiástica de uma instituição. A autora defende que, em contrapartida, quando inserido no contexto religioso, a expressão cultura normalmente acompanha o termo “popular”, que, somados à “religiosidade”, entram em conformidade, provavelmente pelo fato de julgar-se que a melhor forma de entender a cultura popular é por meio do estudo do religioso, das crenças e manifestações de fé, sejam elas expressas ou contidas.

Isnard de Albuquerque Câmara Neto (2002), em seu artigo Diálogos

sobre religiosidade popular, por sua vez, delineia que a religiosidade popular não

constitui o corpo eclesial e sua materialidade surge da humanização do sagrado por parte dos próprios devotos, que propagam sua crença por meio da oralidade. Para ele, este não é um tema cujo modelo de estudo é convencional, pois varia conforme suas interferências socioculturais em cada região. Além disso, sua heterogeneidade se mantém mesmo quando manifestações distintas apresentam características mútuas. Em suma, o autor destaca que enquanto o catolicismo visa a universalidade, a religiosidade popular é restrita à esfera regional ou, no máximo, nacional.

Gilbraz S. Aragão (2002), em seu estudo A religiosidade popular e a fé

cristã, explana que, a partir da segunda metade do século passado, foi implantado

no Brasil um catolicismo marcado pela igreja repleta de fiéis aos domingos, associações pias, festas tradicionais do mês de maio e dos padroeiros, procissões e vigário de batina. À época, o plano do clero era substituir a devoção aos santos tradicionais por outras que o liberalismo antericlerical combatia na Europa, tais como Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, Nossa Senhora Auxiliadora e o Sagrado Coração de Jesus. Em contrapartida, festas como a da Coroação de Nossa Senhora substituíram as Folias de Reis e do Divino, Procissão das Almas e as festas juninas.

Ao levar as imagens dos oratórios para os templos, o clero transformou-se no principal festeiro. Entretanto, tal reforma só alcançou dez a quinze por cento dos católicos. Preservando elementos da antiga tradição, grande parte da população reinterpretou o catolicismo romano. Aragão (2002, p. 45, grifo do autor) destaca:

Assim, entre setenta e oitenta por cento dos católicos brasileiros praticam sua religião de modo privatizado e/ou em comunidades de “cura divina”, muito inconstantes e abertas ao sincretismo. O núcleo é a devoção aos santos, não somente os canonizados, também as

denominações locais e familiares (crianças assassinadas) e santos anônimos (almas vaqueiras ou benditas). Além do que, em cada imagem, ainda que do mesmo santo, há um santo diferente: carregado com outros poderes de intermediação para o Deus todo-poderoso.

Em sua tese Os santos da Igreja e os santos do povo: devoções e

manifestações de religiosidade popular, Vera Irene Jurkevics (2004) destaca que as

devoções celebradas fora das igrejas ou voltadas para santos não canonizados não ganham menção pela hierarquia eclesiástica, que, no entanto, não as restringe nem nega a sua existência. Ao passo que para a Igreja é válido apenas o que ela reconhece; ao fiel, o que importa é a sua fé, independentemente do que a instituição propõe. Na tradição cristã, para que uma pessoa seja proclamada santa, a vida desta deve ser analisada pelas autoridades eclesiásticas competentes.

Iara Toscano Correia (2003), em sua dissertação João Relojoeiro: a

construção de um santo no imaginário popular – Uberlândia / MG (1956 – 2002),

aponta que o reconhecimento oficial da Igreja era feito a princípio pelos próprios bispos em suas dioceses, entretanto, a partir do século XII, o direito foi reservado ao papado. Enfatiza que este procedimento é muito semelhante aos processos judiciais e demandam quantias significantes de dinheiro. “São critérios burocráticos rigorosos, onde um advogado do diabo é eleito para apresentar as possíveis objeções ao processo canônico” (CORREIA, 2003, p. 160). Além de requerer provas comprobatórias dos milagres, há a exigência de um relato bio/hagiográfico que garanta os suplícios realizados em nome de Deus. A hagiografia possibilita, portanto, a criação de um modelo biográfico em volta dos santos dentro de um aspecto moral e exemplar necessário para a mensagem ideológica que a Igreja busca transmitir.

Berta Lucia é considerada uma santa por aqueles que afirmam ter recebido graças da menina ou que frequentam anualmente seu túmulo, no Cemitério

Municipal São João Batista, em Presidente Prudente. Além dela, outros santos oriundos do imaginário popular e não declarados pela Igreja Católica são passíveis de menção. Entre eles, estão Antonio Marcelino, conhecido como o “Menino da Tábua”; Maria Bueno, a “santinha de Curitiba”; e Clodimar Pedrosa Lô, cuja santidade é tratada no artigo Manifestações populares do catolicismo em Maringá: o

culto ao ‘santo’ Lô.

Neste último trabalho, os autores Roberto dos Santos Viana e Solange Ramos de Andrade (2009) narram que, após o desaparecimento de uma quantia de Ncr$ 500 do quarto de um hóspede do hotel onde Clodimar trabalhava, o menino foi acusado de roubo. Na Delegacia de Polícia, sofreu abusos classificados como tão graves que precisou ser levado para o hospital, onde sua morte foi atestada. Após a disseminação da história, seu túmulo passou a atrair grande número de visitas, fato seguido pela santificação do garoto por parte do imaginário popular.

Já a história de Antonio Marcelino, “o menino da Tábua”, é explanada no artigo A religiosidade católica e seus santos, da professora Solange Ramos de Andrade (2013). Paralítico, o menino, como a própria alcunha deixa explícita, vivia preso a uma tábua e, devido ao seu estado físico, era visto como um anjo, o que motivou a crendice popular em sua figura. Se fossem recebidas por ele com um sorriso, as pessoas teriam uma boa vida, mas caso ele chorasse, seria um mau presságio. Ao falecer, seu túmulo passou a receber romeiros que fazem preces e orações.

O artigo Maria Bueno: um diálogo sobre religiosidade católica trata o fenômeno de devoção em torno da figura Maria Bueno, a “santinha de Curitiba”. Conforme aponta Tônia Kio F. Piccoli (2012), Maria Bueno passava por um matagal numa noite de janeiro de 1893 quando foi assassinada pelo soldado do Exército, Ignácio José Diz, com quem supostamente teria tido um relacionamento. Comovida com o fato, a população passou a frequentar o túmulo da vítima e, mais tarde, agradecer aos pedidos que afirmava terem sido atendidos por ela.

Tendo em vista os personagens mencionados e outros que aqui foram omitidos, Maria Aparecida Junqueira Veiga Gaeta (1999), em seu artigo “Santos”

que não são santos: estudos sobre a religiosidade popular brasileira, pontua que

estas figuras cultuadas nunca farão parte do santoral oficial e não se aproximarão de um processo canônico, entretanto, os próprios devotos reconhecem sua legitimidade. Ela reflete que esse universo é constituído normalmente por crianças,

jovens ou até mesmo adultos que eternizaram “[...] uma aparência infantil, ingênua, provocada pelas deformações, ou doenças fatais” (GAETA, 1999, p. 65), como é o caso de Berta Lucia, que morreu vítima de meningite.

A negação de uma infância feliz, roubada pelas tragédias que provocaram as mortes prematuras, constituiu-se na arquitetura de um sentimento de dor e de comoção coletiva. As tragédias suscitaram compaixões e construíram as imagens de santidades. Esses apelos são retratados nas fotografias dos ‘santos’, conservadas em ‘santinhos’ ou nos túmulos, onde a infância ou a juventude ficaram eternizadas e os personagens são tratados oficialmente como “o Menino ou a Menina”. As fotos cristalizam a memória de um termo que poderia ter sido de magia e de fantasias, mas que foi roubado pelos martírios. (GAETA, 1999, p. 65)

Gaeta (1999, p. 72) salienta que essas “santidades” são cultuadas por pessoas de camadas sociais distintas que visitam os túmulos e fazem suas intercessões, ocorrendo, desta forma, “um processo de privatização religiosa, onde os indivíduos saem da esfera pública e, num percurso intimista, realizam individualmente suas experiências com o sagrado”. Segundo a autora, a força transmitida pela imagem das santidades, que exalam inocência diante de um cenário de “brutalidade, anormalidade dos assassinos e/ou presença de uma doença inexplicada sem outorgação de sentido” (GAETA, 1999, p. 73), as tornam legítimas perante seus devotos. “O que conta realmente é que existe uma história que comprova a eleição divina. Se é verdadeira ou não historicamente, pouco importa” (GAETA, 1999, p. 73). A autora ainda defende:

O que se visualiza atualmente é que a religião tem um papel decisivo neste cenário histórico. Movidos pela força da emoção, pela busca de uma identidade, grupos de indivíduos se reúnem para cantar, rezar, acender velas, ou cultuar ‘santos’. Na religião as pessoas reencontram o seu núcleo subjetivo e recriam as suas inter-relações sociais, econômicas e culturais, logo, mantendo o seu encantamento. (GAETA, 1999, p. 74)

Andrade (2013) argumenta que o cemitério é o santuário não oficial escolhido pelos fiéis para cultuar os santos, visitado especialmente no dia de Finados ou no aniversário da morte da santidade. A autora pondera que adentrar uma necrópole é deixar o cotidiano comum para se aproximar espiritualmente do além ou de uma dimensão sagrada, que reserva para si a verdade que não pode ser refutada, a de que um dia todos os indivíduos vão morrer. É no cemitério que estão sepultados os familiares e amigos e onde se concentram as preces deixadas em sua

memória. Andrade (2009) ressalta que, além destes, há outro personagem que também recebe homenagens: o santo. Tomando conhecimento de sua capacidade miraculosa, as pessoas se dirigem aos seus sepulcros a fim de pedir graças. Constata ainda que o espaço central da devoção é o altar, onde, anualmente, em datas comemorativas, fiéis acendem velas ou agradecem ao milagre concedido. Caso o santo tenha uma capela ou uma sala de milagres, são depositados nela objetos em gesso ou cera representando a parte do corpo curada, fotografias, chupetas e outros objetos que simbolizam a intercessão alcançada. Na capela de Berta Lucia, por exemplo, a menina é contemplada especialmente com bonecas, as quais, após um tempo, são doadas em forma de caridade. As necessidades que fundamentam as preces estão ligadas a problemas relacionados a dinheiro e emprego, saúde, amor, afetividade e vida familiar.