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alcançar o objetivo estabelecido – uma espécie de antecipação do que será produzido com os melhores meios que estiverem à disposição.

No caso de um texto, por exemplo, o professor planejará uma série de aulas sobre o gênero textual escolhido (sobre, por exemplo, a situação de uso, a estruturação, o suporte, e a melhor linguagem a ser utilizada para atingir o objetivo do gênero), para que então possa efetivamente solicitar ao aluno que produza seu texto. Podemos aqui até retomar o conceito de sequência didática (SCHNEUWLY; DOLZ, 2010) já visto no capítulo anterior como modelo desse tipo de estruturação.

Por mais que exista um conhecimento prévio por parte do estudante, o professor tratará primeiro de ensinar ou reforçar o que o aluno já sabe sobre o gênero textual em questão. Percebe-se, portanto, que o aluno já terá em mente que tipo de texto deve esperar no final, mas escreverá se baseando em tudo o que aprendeu durante o processo/a planificação. Os dois conceitos – o projeto e a planificação –, portanto, se fundamentam no conhecimento científico, e se relacionam a uma ação plenamente racional, humana, assim como a língua.

3.2 A METALINGUAGEM COMO TECNOLOGIA

“O saber linguístico é múltiplo e principia naturalmente na consciência do homem falante” (AUROUX, 1992, p. 16); é por ser natural que esse saber é epilinguístico – ou seja, advém da capacidade inata que o indivíduo possui de usar a língua. Em uma situação de prática, todo falante nativo (salvo circunstâncias como afasias) é capaz de fazer escolhas que estejam de acordo com o objetivo que se pretende ao comunicar, se essa habilidade foi adquirida em algum momento de sua vida. Quando o indivíduo consegue refletir sobre tais escolhas e pode classificá-las e explicá-las, por exemplo, esse conhecimento se torna um conhecimento metalinguístico, isto é, deixa de ser apenas intrínseco para se tornar racional e consciente.

A dimensão reflexiva da linguagem pode ser observada também em Benveniste (1989), quando o autor, procurando perceber, a partir de Saussure, qual

era o lugar da língua entre os sistemas de signos, descreve a “relação de interpretância”. Para ele, a língua, por conta da relação de interpretância que a qualifica, pode interpretar todos os outros sistemas, inclusive ela mesma:

O privilégio da língua é de comportar simultaneamente a significância dos signos e a significância da enunciação. Daí provém seu poder maior, o de criar um segundo nível de enunciação, em que se torna possível sustentar propósitos significantes sobre a significância. É nesta faculdade metalinguística que encontramos a origem da relação de interpretância pela qual a língua engloba os outros sistemas. (BENVENISTE, 1989, p. 66)

É como se a sociedade fosse o sistema interpretado e a língua o sistema interpretante, construindo uma espécie de “(...) dependência mútua segundo sua capacidade de semiotização” (BENVENISTE, 1989, p. 65). Dessa forma, os sistemas semióticos apenas podem ser assimilados em sua relação com a língua à medida que for admissível integrar “unidades significantes” denominadas por ela. Segundo Benveniste, a língua possui uma dupla significância, o modo semiótico e o modo semântico; consequentemente “(...) os outros sistemas têm uma significância unidimensional: ou semiótica (gestos de cortesia etc.) sem semântica, ou semântica (expressões artísticas) sem semiótica” (BENVENISTE, 1989, p. 66). Para explicar a qual dos dois casos pertence a sociedade, ele afirma que

(...) num nível fundamental, podemos perceber imediatamente a homologia. Alguns caracteres são comuns a uma e outra, à língua e à sociedade – repito eu – neste nível. (...) Tomaremos língua e sociedade em sincronia e numa relação semiológica: a relação de interpretante e interpretado. E formularemos estas duas proposições conjuntas: em primeiro lugar, a língua é interpretante da sociedade; em segundo lugar, a língua contém a sociedade. (BENVENISTE, 1989, p. 96-97)

Ainda que ele reconheça a autossuficiência da sociedade enquanto sistema semiótico, Benveniste descreve que essa liberdade é apenas viável devido à língua e sua dupla natureza de representar e ser representada:

Acima das classes, acima dos grupos e das atividades particularizadas, reina um poder coesivo que faz uma comunidade de um agregado de indivíduos e que cria a própria possibilidade de produção e da subsistência coletiva. Este poder é a língua e apenas a língua. É porque a língua representa uma permanência no seio da sociedade que muda, uma constância que interliga as atividades sempre diversificadas. (...) Daí

procede a dupla natureza profundamente paradoxal da língua, ao mesmo tempo imanente ao indivíduo e transcendente à sociedade. Essa dualidade se encontra em todas as propriedades da língua. (BENVENISTE, 1989, p. 97)

Para Benveniste, a escrita, que possibilitou a existência das ciências da linguagem, e por isso modifica profundamente as práticas de linguagem, existe pela capacidade autossemiotizante da língua; em outras palavras, a escrita é a língua falando da própria língua: “A escrita foi sempre e por toda parte o instrumento que permitiu à língua semiotizar a si mesma” (BENVENISTE, 2014, p.55). Isso acontece, segundo Benveniste, por duas principais razões:

1) A língua é o único sistema significante que pode descrever a si mesmo em seus próprios termos. A propriedade metalinguística é própria à língua, pelo fato de ela ser o interpretante dos outros sistemas.

2) Porém, para que a língua se semiotize, ela deve proceder a uma objetivação de sua própria substância. A escrita torna-se progressivamente o instrumento dessa objetivação. (BENVENISTE, 2014, p. 155-156; grifo do autor)

É como se o falante se voltasse para a própria língua, em lugar de se deter sobre o que foi enunciado; ele considera a língua e a percebe significante. É por meio da observação que se fixam recorrências, diferenças e semelhanças em forma de representações gráficas – as quais delineiam a língua e que desencadeiam, por meio de imagens, a própria materialidade da língua.

Voltemos para Auroux (1992) para entender um pouco mais sobre o saber linguístico. Para ele, esse saber é tripartido: a primeira parte diz respeito à capacidade de expressão das ideias (enunciação); a segunda parte diz respeito à compreensão da própria língua em relação a outras (falar e compreender uma língua); a terceira diz respeito à capacidade de desenvolver técnicas e práticas letradas – sendo uma delas a escrita.

Desse modo, o homem pode agir sobre o mundo e sobre as pessoas por meio da língua, criando interações sociais. Não é por acaso que ela possibilitou, de certa forma, a liberdade ao ser humano, a partir do momento em que fixou a linguagem – e, por esse motivo, a ciência e as leis. A escrita pode ser considerada uma prática que apresenta um resultado esperado e dá a vez à formação de

competências específicas; a gramática, por sua vez, é instrumento que garante que a língua escrita seja aprendida.

Enquanto o saber linguístico “(...) é epilinguístico, não colocado por si na representação antes de ser metalinguístico” (AUROUX, 1992, p. 16), o saber metalinguístico surge com o amparo da metalinguagem, pois é a partir dela que os signos passam a adquirir nomes. É dentro desse processo de sistematização do saber linguístico que ocorre o que Auroux (1992) chama de gramatização, pelo qual “(...) deve-se entender o processo que conduz a descrever e instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são os pilares de nosso saber metalinguístico: a gramática e o dicionário” (AUROUX, 1992, p. 65).

A tradição de se fazer gramáticas surge não da necessidade de se comunicar ou falar uma língua, mas da necessidade de compreender um texto, e radicaliza o trabalho com a língua. A noção de gramática, portanto, está intimamente ligada à escrita – e, dessa forma, também à sistematização e à representação. Isso esclarece a suposição de Auroux (1992), a qual explica que parece não existir um verdadeiro saber gramatical oral, pois é a escrita que permite um “pensar” sobre a linguagem: “O processo de aparecimento da escrita é um processo de objetivação da linguagem, isto é, de representação metalinguística considerável e sem equivalente anterior” (AUROUX, 1992, p. 20). Isso porque a escrita é metalinguística, ou seja, simboliza sobre o simbolizado, o signo.

A escrita é ainda resultado de um processo histórico intricado, e seu surgimento não pode ser atrelado ao saber linguístico, já que esse não pode ser delimitado no tempo e espaço de maneira tão clara:

Se a escrita é a condição de possibilidade do saber linguístico, é entretanto impossível ver em seu aparecimento a verdadeira origem deste último, se entendemos por isso o desenvolvimento e a transmissão de um saber metalinguístico codificado, ligado às artes da linguagem. (AUROUX, 1992, p. 21)

Não é por acaso, ainda, que a metalinguagem tem relação com a metalinguística, haja vista que é uma das funções da linguagem e deriva da capacidade de interpretância (já abordada): aquela em que emissor e/ou receptor se

foca(m) no código para poder compartilhar da mesma mensagem: “(...) praticamos a metalinguagem sem nos dar conta do caráter metalinguístico de nossas operações” (JAKOBSON, 2010, p. 85).

A aquisição de uma língua, inclusive, é completamente baseada em operações metalinguísticas, pois é necessário pensar na própria língua para construir relações com as línguas aprendidas depois:

A metalinguagem é um fator vital de qualquer desenvolvimento verbal. A interpretação de um signo linguístico por outros signos, homogêneo em algum aspecto, da mesma língua, é uma operação metalinguística que tem um papel essencial no aprendizado linguístico... (JAKOBSON, 1985, p. 7)

Qualquer mensagem que desejemos passar a alguém implica um retorno ao código e a um conjunto de operações metalinguísticas; estamos “presos” na metalinguagem, visto que um conjunto de operações metalinguísticas é intrínseco à seleção e à combinação dos constituintes de qualquer mensagem verbal que se queira comunicar, segundo Jakobson (1985). Para o autor, até mesmo uma criança pratica metalinguagem, e é por esse motivo que vemos a sua metalinguagem enquanto a mais diretamente relacionada à do falante. Nesse sentido, o papel do professor é fazer com que o conhecimento metalinguístico do falante seja cada vez mais sofisticado, ensinando-o a utilizar modelos de classificação e definição. Dessa forma, o estudante é levado a pensar sobre como o funcionamento da língua é importante.

Segundo Jakobson (2010, p. 67), “(...) a faculdade de falar determinada língua implica a faculdade de falar acerca dessa língua. Tal gênero de operação ‘metalinguística’ permite revisar e redefinir o vocabulário empregado”. Para Flores (2019, p. 218), a partir de Jakobson (1985), “(...) a função metalinguística está na base de tudo que é possível fazer com a língua”.

Essa ideia tem relação com a consciência metalinguística, que nada mais é do que a habilidade de se apoderar da língua como objeto de reflexão consciente. Para Gombert (2003 [1992]), conforme Lima (2015, p. 30):

a atividade metalinguística pode ser entendida por meio de duas perspectivas: a linguística e a psicolinguística. Na perspectiva linguística,

correspondente ao conceito de metalinguagem, a metalinguística consiste em uma atividade de descrição da própria linguagem, que apresenta um caráter recursivo em que a linguagem tem a função de referir-se a si mesma, ou seja, a linguagem é utilizada para descrever a linguagem; tal função considerada secundária é denominada autorreferenciação da língua na psicolinguística.

Tema ainda mais complexo, dentro deste mesmo campo, é a consciência metatextual. Segundo Lima (2015, p. 32), o qual se utiliza das palavras de Spinillo (2009):

O termo “consciência metatextual” foi adotado primeiramente por Gombert (1992) em sua obra sobre o desenvolvimento metalinguístico e tem como definição a habilidade de análise das propriedades da linguagem presentes no texto (estrutura, características ou natureza) de forma independente de sua função comunicativa. Nesse tipo de consciência, a ênfase recai sobre a análise consciente e deliberada do texto, focalizando sua estrutura, partes constituintes, convenções linguísticas e marcadores textuais, tais como coesivos e pontuação.

Ainda de acordo com Lima (2015, p. 32), o desenvolvimento da consciência metatextual pode ser observado sob duas variáveis: na forma como se dá o desenvolvimento dessa consciência, e em como desenvolvê-la, sugerindo, por exemplo, ações para promover o florescimento desta habilidade, apontando para modelos e propostas de intervenção. Para Lima (2015, p. 33)

Como apontado na literatura (Gombert, 1992; 2003), uma atividade metatextual se caracteriza por requerer reflexão consciente, controle deliberado e explicitação verbal. Todavia, o desenvolvimento dessa habilidade envolve alguns comportamentos distintos que denotam um conhecimento rudimentar da língua e que não estão sob a égide da reflexão consciente, do controle deliberado e da explicitação verbal; não podendo, nesse caso, ser considerados atividade metalinguística e, mais especificamente, metatextual. Nesse sentido, a compreensão do desenvolvimento da consciência metatextual tem por base dois comportamentos distintos: os comportamentos epilinguísticos e metalinguísticos.

É interessante perceber que este trecho evidencia a passagem da técnica para a tecnologia, isto é, para a ideia da planificação, já citada no início deste capítulo. Tanto a atividade epilinguística, quanto a atividade metalinguística fazem um retorno da atividade linguística sobre si mesma; a diferença é o nível de

consciência do falante. Podemos considerar que a primeira atividade se dá antes da enunciação, enquanto a segunda se dá depois. Por essa razão, a última seria consciente.

Nesse sentido, há uma série de processos a serem levados em consideração, e que precisam ser feitos para que a atividade metatextual aconteça. O saber epilinguístico surge da capacidade inata que o indivíduo tem de usar a língua, enquanto a metalinguística surge da reflexão e da classificação de tais usos, podendo ser definida enquanto um conhecimento racional e consciente.

Ao olhar para os termos consciência linguística e consciência metatextual, podemos relacioná-los mais diretamente ao conhecimento metalinguístico, haja vista que o indivíduo é capaz de pensar nas escolhas linguísticas que faz, e é capaz de aplicar tais escolhas dentro de um determinado contexto de uso. Os comportamentos epilinguísticos apresentam semelhanças com os metalinguísticos, mas

(...) se relacionam mais com um conhecimento implícito da língua, gerado a partir de aprendizagens informais e se desenvolvem concomitantes ao desenvolvimento da linguagem. Alguns exemplos desses comportamentos são a atenção ao aspecto gramatical das frases, as autocorreções durante conversações, as trocas de palavras menos adequadas por outras mais adequadas, dentre outros. Os comportamentos metalinguísticos, por sua vez, se caracterizam pela reflexão consciente, pelo controle deliberado e por envolver explicitação verbal. Tais comportamentos advêm de aprendizagens explícitas e sistemáticas. Um exemplo desse tipo de comportamento é o conhecimento e uso mais consistente das regras gramaticais. (LIMA, 2015, p. 33)

Há uma espécie de encadeamento entre os dois comportamentos, pois o epilinguístico leva à emersão do metalinguístico, por meio de um aprimoramento que pode se dar pelo trabalho da escola e das suas aprendizagens – dentre elas, mais especificamente, a da leitura. No entanto, um conhecimento não necessariamente se transforma em outro, segundo Gombert (2013), por meio de Lima (2015, p. 34), pois não é possível dizer que os conhecimentos metalinguísticos resultam da tomada de consciência dos conhecimentos que estão implícitos, visto que esses não podem ser acessados pela consciência.

A consciência metalinguística e metatextual, portanto, vai gradualmente se construindo e trazendo índícios de emergência, e pode ser estimulada pelo

professor em sala de aula, por conta de um trabalho com a língua que leve em conta seus usos no texto.

3.3 OS GÊNEROS TEXTUAIS COMO TECNOLOGIA

Neste subcapítulo, procuramos explicar a relação entre os gêneros textuais, sob a perspectiva de Bazerman (2006, 2011), práticas sociais, ante a perspectiva de Swales (1990), de tecnologia, perante a perspectiva de Bunge (1969). Tais definições são relevantes para que possamos entender os gêneros textuais como tecnologia – ou seja, para que possamos compreender a transformação do que é natural (linguagem) no que é artificial (a escrita), dentro de um contexto de uso bem definido.

Segundo Bazerman (2011, p. 19), “(...) as pessoas criam novas realidades de significação, relações e conhecimento, fazendo uso de textos”. Esta ideia surge a partir de uma série de conceitos: fatos sociais, atos de fala, gêneros, sistemas de gêneros e sistemas de atividades. Imaginemos um estudante em situação de vestibular: a candidatura se inicia ao fazer a inscrição no processo seletivo, que vem sempre acompanhado de um edital. Logo depois, acontece a prova; se, a título de exemplo, ela for como na Universidade Federal do Paraná (UFPR), o aluno, na primeira fase, terá que interpretar inúmeros gêneros textuais das disciplinas que cursou no ensino médio – geografia, história, biologia, por exemplo –, e, se passar nessa fase, terá que produzir três gêneros textuais, mais uma vez, pertencentes ao seu contexto atual ou futuro, na graduação.

Nessa sequência de eventos, inúmeros textos são produzidos, e, com eles, diversos fatos sociais; eles não existiriam se os indivíduos não os realizassem por meio da criação de textos. Quando o estudante redige na segunda fase, a produção

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