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A partir da justificativa apresentada e no caso específico das Artes Visuais é importante destacarmos a potencialidade de sentidos que a imagem representa e, ainda, em consonância com as atitudes e procedimentos que valorizam um ensino- aprendizagem que resgate a sensibilidade e afetividade a partir do ato criativo e da experiência da criação, vislumbramos na etnografia bases para dar sentidos aos procedimentos e objetivos pretendidos. Evidenciamos, entretanto, que aproximamos a definição da etnografia aos contextos da educação e às especificidades do registro visual como percurso a ser desvelado.

Etnografia é considerada uma subdisciplina da antropologia descritiva que busca compreender crenças, valores, produções sociais de sentidos, desejos e comportamentos dos sujeitos por meio de uma experiência vivida. Tem como base a inter-relação dos sujeitos com seu meio e suas manifestações de afeto, temores, adoração, convivência e construções coletivas de modo geral. Essa inter-relação adentra nos territórios da história das produções do homem, na antropologia visual.

Melville Herskovits, em El hombre e sus obras (1952), mergulha no multifacetado mundo da antropologia cultural a partir da análise das produções sociais e dos registros etnográficos e o ambiente da sala de aula é território de manifestação, percepção e

recepção das produções sociais. Materiais e imateriais, essas produções dialogam com a sensibilidade, criatividade, habilidade e imaginação, nos âmbitos individual e coletivo.

Entendemos que nos territórios da educação não estão imbricadas apenas questões formalistas ou de ordem impositiva, pela necessidade social da educação, mas emanam questões que perpassam os motivos dos que ensinam e as necessidades e vontades dos que aprendem.

Nesses territórios também reside a metáfora do inacabamento, da alteridade e do continuum da construção do sujeito. Ao tratar de um grupo tão diverso — os adolescentes — tal metáfora reverbera em muitas direções, apresentando-nos fenômenos que antes se configuravam como dormentes, quase enevoados.

Segundo Marli Eliza André, a Etnografia, aplicada à educação, pressupõe o entendimento de que:

(...) a investigação em sala de aula ocorre sempre em um contexto permeado por uma multiplicidade de sentidos que, por sua vez, fazem parte de um universo cultural que deve ser estudado pelo pesquisador. Através basicamente da observação participante ele vai procurar entender essa cultura, usando para isso uma metodologia que envolve registro de campo, entrevistas, análises de documentos, fotografias, gravações. Os dados são considerados sempre inacabados. (ANDRÉ, 2003, p. 37)

No nosso caso, o registro de imagens deve ser entendido como o registro da produção em diversos momentos — individuais e coletivos — e, principalmente como procedimento que permitiu a constituição de vasto material visual que emergiu de ações, inter-relações entre prática pedagógica no ambiente escolar e observação das atividades propostas em consonância com as orientações curriculares vigentes.

O uso da imagem adquiriu sentidos basilares para o andamento da pesquisa, pois, em vários momentos pôde ser utilizada como elemento provocador de reflexões (geralmente em discussões, nos exercícios de apreciação) e, também, nos momentos de produção individual (nesse caso, introspecção e subjetividade adquirem corpus de objeto).

Assim, a antropologia visual, permitiu-nos entender a produção visual do aluno como processo oriundo de sua interação com os meios sociais (dentro e fora da ambiente escolar) e, ainda, do universo cultural que perpassa essa produção.

Historicamente, a antropologia visual se ateve ao registro, por meio de fotografias e filmes, dos contextos culturais em estudo. Valemo-nos das contribuições de Clifford Geertz e Melville Herskovits que, dentro da antropologia cultural, analisam as relações e

produções culturais inseridas no meio social como intrínsecas à humanidade, à construção e manutenção dos códigos sociais e culturais.

A antropologia visual nasceu em meados do século XIX com a possibilidade do registro fotográfico. A imagem, somada à narrativa ou a descrição textual passou a ter outros sentidos para o antropólogo e seus interlocutores. Hoje, antropologia visual articula uma expansão dos conhecimentos da cultura na conjunção da globalização e da transformação digital.

Essa disciplina, voltada inicialmente para a documentação e preservação de práticas culturais ameaçadas, se refaz e apresenta-se como a antropologia de urgência, inserindo-se como mediadora de novas formas de narrativas visuais, sonoras, audiovisuais, digitais e multimodais. Spencer Poch, ao utilizar, pela primeira vez, uma câmera fotográfica em suas viagens de pesquisa pela África, foi o precursor da visualidade antropológica.

Os objetos e eventos culturais carregam, sistematicamente, contribuições subjetivas que podem ser vistas de vários ângulos — complexas construções teóricas — e articulam toda a experiência social. Objetos artísticos — construção de imagens, por exemplo — carregam a síntese de registro, de marca de tempo e espaço de determinada situação social.

Das pinturas rupestres aos desenhos obscenos nas portas de banheiros públicos, das imagens tumulares do Egito Antigo aos scrapbooks que tilintam os perfis dos adolescentes no Orkut, as intenções de registro são orientadas pela narrativa, pela intenção de posse, pela ilustração ou, simplesmente, pela força de marca, o signo maior de ser e estar em algum lugar

Com o adentramento de novos meios de registros e necessidades de ampliar o conceito significativo da imagem em contextos culturais, surgem novas denominações como Antropologia da Imagem, que potencializa a percepção para os processos de produção de imagens e, não apenas o registro.

É necessário, evidenciar, ainda, que não basta, simplesmente, apreciar as imagens criadas e consagradas nos diversos períodos históricos ou cronológicos. Mais que isso: é necessário compreendê-las em seus contextos, fazer analogias, instigar a contradição e trazê-las para nossa contemporaneidade como testemunho da capacidade de o homem, sempre, valer-se da criatividade, da imaginação, da sensibilidade e da habilidade em transformar ideias, sonhos, decepções, medos e crenças em registros que, muitas vezes, escapam à mera interpretação ou julgamento.

Isso porque, à medida que as imagens com as quais lidamos diariamente produzem significados, somamos sentido à nossa experiência visual.

Para Ana Mae Barbosa (2005a), compreender a dimensão da imagem no ensino- aprendizagem da arte é o primeiro passo para valer-se das imensuráveis possibilidades que a contextualização de sua ocorrência engendra. Tais possibilidades ampliar-se-ão, ainda mais, ao mergulharmos no emaranhado de situações que as NTIC (re) configuram, visto que a contextualização da produção e fruição das imagens nesse novo panorama é a sua própria epistemologia (re) significada.

Faz-se necessário, ainda, compreender que, aliada à leitura visual, há uma leitura

social, cultural e estética do meio ambiente (que) vai dar sentido ao mundo da leitura verbal (Barbosa, 2005a, p. 28). Essa leitura é uma experiência de vida. É uma entrega à

subjetividade, à percepção, à interpretação, à contemplação, à fruição.

Já para Rosa Iavelberg e Luciana Arslan, a imagem pode promover a intelectualização advinda da apreciação da obra de arte e no tocante à imagem — as originais e as reproduzidas de vários modos. Essa apreciação essa permite uma aproximação mais intensa com a valorização da arte no ambiente escolar, pois:

Na apreciação, a leitura da imagem é aberta e o aluno pode manifestar-se de múltiplas formas. A orientação da leitura de imagem deve ser realizada em sincronia com o leitor. Este passa por vários momentos conceituais de apreciação, não por estágios, que são estanques e independem da cultura do leitor. (IAVELBRG, ARSLAN, 2006, 16)

Nesse sentido, para a construção dos caminhos metodológicos dessa tese, pretendeu-se responder a duas perguntas iniciais — a partir de provocações — ao evidenciar e valorizar a produção de imagens por alunos do Ensino Médio nas escolas públicas.

A primeira remete a uma questão teórica: Qual importância da produção em Artes

Visuais para a valorização de seu ensino-aprendizagem das escolas públicas de Ensino Médio?

A segunda, envolvida e sensibilizada por um caráter empírico seria: Qual a

importância da experimentação e produção em Artes Visuais para uma sensibilização (subjetivação e identidade) que transcenda os vários sentidos da imaginação e da criatividade, inclusive fora do ambiente escolar?

Logo, a proposição inicial de tais questionamentos seria demonstrar a seguinte hipótese: a arte — enquanto processo de produção — pode ser um meio que permite a

sensibilização, o diálogo e a ampliação de repertórios para a compreensão da complexidade do mundo.

Para dar sentido à inter-relação entre os questionamentos e a formulação de algumas ideias levantadas, faz-se necessário destacar a relevância da produção social da arte, pois dela emana um caráter coletivo, já que ao sair da esfera da produção, valores emitidos no julgamento ou interpretação dessa produção voltam-se ao autor como estímulo de dar continuidade, mudar, em face da receptividade de sua produção ou adequar sua produção ao contexto que está inserido.

De acordo com Janet Wolff, em A Produção Social da Arte, “(...) os artistas e os

produtores culturais enfrentam condições particulares de trabalho que afetam o tipo de obra que produzem e a maneira pela qual produzem“ (WOLFF, 1982, p. 73) e por que

não considerar as condições tão diversas e ricas do ambiente escolar?

O panorama metodológico que emerge no final do século XIX coloca em xeque a limitação de abordagens positivistas nas investigações. Momento em que as investigações nas ciências sociais não mais cabem nos modelos destinados às ciências naturais. Os fenômenos sociais e humanos começam a ser percebidos dentro de um contexto que engendra complexidade e especificidade em outras esferas.

É importante destacar que as contribuições do Positivismo são inúmeras e, ao propor observar — a partir de uma perspectiva positivista — um evento com regras claras e objetivos específicos, estes cientistas abriram precedente para que outras possibilidades de “explicar” fenômenos naturais, sociais e culturais, entre outros, começassem a surgir frente aos novos conhecimentos e, consequentemente, às situações problemáticas a estes atrelados.

Nos eventos sociais, entretanto, o simples relato — descontextualizado — não dá conta de apresentar fatos que surjam de inter-relações oriundas dos contextos diversos.

Na nossa atualidade, por exemplo, não basta entender que apenas 26% dos brasileiros com idade acima de 15 anos dominam plenamente a capacidade de leitura e escrita11. Se analisarmos as singularidades do ambiente social, cultural e econômico, por exemplo, encontraremos informações que colocarão em xeque a validade desse dado.

Logo, não existe neutralidade nesse dado, pois não só geográfica ou historicamente estão implicados fatores neste tipo de pesquisa. Assim, percebe-se que uma abordagem positivista pode findar-se apenas na constatação destas, visto que:

Acreditando na objetividade e neutralidade do conhecimento, e no estabelecimento da verdade como algo flexível e definitivo, as metodologias positivistas propõem para todas as ciências a reprodução do modelo das ciências exatas e naturais. (SANTAELLA, 2002, p.137)

Assim, novas formas de entender os modos como se instauram questões de várias ordens no ambiente escolar e, assim, novas abordagens são necessárias no sentido de não considerar apenas aspectos quantitativos.

Evidenciamos, ainda que, à medida que lançamos novos olhares, o ambiente escolar (re) configura os modos de perceber o diálogo com a sociedade e as relações sociais que se intensificam, perpassando por eventos de outras naturezas e, certamente, os métodos mais abertos e dialogais se adéquam às propostas de abordagens dos novos repertórios que construímos com os avanços e sofisticações tecnológicas, bem como suas reverberações nos campos sociais, culturais, econômicos e filosóficos.

A título de exemplo, podemos citar os entraves provocados com as mídias sociais de comunicação mediadas pela WWW, as possibilidades que as NTIC vêm promovendo para a Educação a Distância ou, ainda, a democratização da TV digital. Pensamos que os fenômenos tecnológicos desencadeiam mudanças sociais, econômicas, culturais. A educação, por sua vez, não se situa na imobilidade cartesiana, mas articula fenômenos complexos que nos circundam, representando instantâneos do mundo.

É necessário, portanto, que passemos a considerar os vários fenômenos que compõem a Educação como todo e, principalmente, as especificidades da escola pública.

Acreditamos que as escolas públicas estão repletas de informações que não se sustentam apenas na mensuração ou descrição, mas exigem procedimentos que emanem das observações sensíveis do pesquisador e suscitem o caráter investigativo e que venham contribuir para o entendimento do complexo e metafórico ambiente da educação, na especificidade da sala de aula. Nesse ambiente, não estamos sozinhos. Estamos com outro. Nas interações, somos o outro.

Nas interações com os outros sujeitos, existem evidências de como a exterioridade do mundo se (re) configura e, com variados graus de complexidade, atinge cada sujeito, pois “cada olhar é único e pode provocar uma infinidade de sentimentos” (MEDEIROS, 2005, p.11). Na sua individualidade e, principalmente, nas trocas — com o outro e com o grupo — são construídas impressões que farão parte dos repertórios, sempre em constante construção.

Os modos como alunos enxergam determinado fenômeno passam, necessariamente pelos modos como o professor aborda tal fenômeno. Contemplar o mundo, os eventos ou corpo, por exemplo, precede uma consciência, uma aceitação, uma rejeição... Precede, também, da realidade e da fantasia.

Na construção de repertórios, o adolescente — tanto no ambiente escolar quanto fora dele — imprime marcas o tempo todo: das relações estabelecidas no âmbito familiar àquelas necessárias em ambientes cujas regras são essenciais para a permanência da estabilidade social (como na escola ou no trabalho), sua espontaneidade, agressividade ou perspectiva em relação ao seu projeto de vida, muitas vezes, findam-se no silêncio das estratégias condicionantes do ambiente social.

Externar suas silenciosas vozes é exercício árduo que enfrenta resistências de cunho cultural e social. A produção textual — escrita ou imagética —, inseridas na proposta escolar carrega muitos sentidos além do simples fazer. O potencial criativo do aluno, muitas vezes, é afetado pela transposição objetiva por meio do desenho, que é afetada pelo potencial efeito da aquisição da escrita.

Nesse sentido evidenciamos o laborioso exercício de pontuar nossos objetivos. Valemo-nos para isso das contribuições da professora e pesquisadora Lucia Santaella, pois, para ela “os objetivos parecem, portanto com uma flecha na direção de um alvo.

Uma vez que o mirar do objetivo antecede o lançamento da flecha, os objetivos também trazem dentro de si o sentido de intenção que guia a mirada” (SANTAELLA, 2002, p.175).

Assim, constitui-se objetivo geral dessa pesquisa investigar a produção visual do aluno de Ensino Médio a partir de sua (con) vivência em aulas de Artes Visuais em suas inter-relações com a construção da identidade.

Os objetivos específicos podem, assim, ser mais bem compreendidos a partir de interseções do que foi apresentado até agora:

h Refletir acerca dos valores da produção em Artes Visuais do aluno dentro e fora do ambiente escolar;

h Analisar os variados modos como as mídias perpassam o universo adolescente no sentido de promover (re) ações em sua visão de mundo; h Identificar como as produções empreitadas no universo adolescente

revestem-se de valores intrínsecos à construção e manutenção de códigos identitários

h Inter-relacionar aspectos conceituais da adolescência à contemporaneidade do público envolvido na pesquisa

Os vários modos como nos aproximamos de nossa problemática — participação efetiva nas propostas de produção, facilitação e mediação nos trabalhos colaborativos, percepção e análise dos variados modos como as produções se desdobraram e o

continuum exercício de inter-relacionar as produções com os referenciais teóricos

constitui-se com metodologia multidimensional visto que incorpora elementos imbricados na complexidade.

Deparamo-nos com possibilidades, até então ignoradas ou despercebidas, que estabelecem um complexo continuum comunicacional e articulam diálogos, igualmente complexos com os segmentos que perpassam o ambiente escolar.

Nesse sentido, reconhecemos a existência de uma complexidade que perpassa os ambientes da educação nessa contemporaneidade marcada pela volubilidade e pela transição na (de)codificação constante dos valores que ora deixam o ambiente escolar e mergulha no entorno social e ora reverberam as dissonâncias sociais no ambiente escolar.