• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 01 – O MENINO E O MAR DE TEATRO

1.3 MEU ENCONTRO COM OS PESCADORES

Tendo apresentado o contexto da pesca em Macau, trago neste capitulo o meu encontro com os pescadores e como os observei durante as entrevistas, que em alguns momentos misturavam-se a contações de histórias. Descrevo a partir destes encontros, como pude perceber a espetacularidade de cada um daqueles pescadores ao darem seus depoimentos. Assim como escreveu o encenador Peter Brook:

O teatro não tem categorias, é sobre a vida. Este é o único ponto de partida, e além dele nada é realmente fundamental. Teatro é vida. [...] Para se fazer teatro somente uma coisa é necessária: o elemento humano. Isto não significa que o resto não tenha importância, mas não é o principal (BROOK, 1999, p. 7-12).

Cresci na no bairro de pescadores ouvindo várias histórias de sobre o que acontecia em alto mar, muitas vezes histórias curiosas e cheias de riscos. Como toda criança com imaginação aguçada, eu sempre ouvia as histórias imaginando como elas haviam acontecido. A contação de histórias ajuda no desenvolvimento do raciocínio da criança e na sua criatividade.

Dentro de casa, sempre gostei de sentar numa roda e ouvir causos. Alguns deles eram comentados por minha avó ou minha mãe. Por meu avô ser pescador, ele sempre falava das situações que ele enfrentava no mar. Não somente as dele, mas também histórias antigas sobre alguns casos e curiosidades de pescadores que já tinham morrido. Contudo, pouco me recordo de como conheci estas histórias, pois na verdade o que ficou gravado na minha cabeça foi mais as próprias histórias contadas pelos pescadores, do que os pescadores contando as histórias.

Sempre tive vontade de fazer um espetáculo que fosse inspirado nestas referências. Quando me veio a oportunidade do TCC, fui recolher estes materiais diretamente com os pescadores. Eu precisava ver e ouvir pessoalmente cada um deles contando as histórias para entender como seus corpos contavam essas histórias.

O recorte geográfico onde foi desenvolvida a minha pesquisa se chama Porto da Pescaria, lá se concentra uma comunidade de pescadores situada em Macau/RN. Antes de ir até lá, relacionei os nomes de quem eu iria procurar, pois seria quase impossível ouvir todos os pescadores e suas histórias.

Busquei conversar com pescadores que, de certa forma, fizeram parte da minha infância, mesmo que indiretamente. Os escolhidos foram os seguintes pescadores: Raimundo, João Batista (conhecido por Galego) e meu avô Cícero (conhecido por Cicinho). Também escolhi uma marisqueira e mulher de pescador chamada Sueli. Com Raimundo, Galego e meu avô a conversa foi realizada ao mesmo tempo e o assunto foi sobre a vida de pesca no mar de um modo geral. Ambos relataram não só histórias deles, mas também de outros pescadores que eles conheciam.

Já com a Sueli, o assunto acabou girando em torno da ansiedade e da preocupação de quem fica em terra esperando a volta dos companheiros. Além deste tema, no relato da marisqueira também apareceram fatos da vida naquela comunidade.

Ressalto, que mesmo tendo ido ao Porto, não existe um momento próprio ou um lugar específico onde eles compartilham suas histórias. Elas podem surgir num papo de calçada, no rancho onde fazem suas redes ou até mesmo entre eles durante o trabalho. Na verdade, basta alguém puxar o assunto, que as histórias brotam e fluem uma após a outra. No meu caso, especificamente, pedi ao meu avô

que me levasse ao rancho de Raimundo e Galego para que eu pudesse conversar com eles. Os dois não estavam esperando a minha chegada.

Achei melhor não avisar, porque não queria que eles se preparassem para contar as histórias, eu queria que tudo acontecesse da forma mais natural possível. Da mesma forma foi com Sueli, fui até sua casa sem que ela estivesse esperando minha chegada.

O Porto da Pescaria é uma região popular, a pesca artesanal é a principal renda desta comunidade. Esta atividade é repassada de geração em geração pelas famílias que buscam através da pesca o sustento. Este modo de vida traz consigo situações de perigo e aventuras que são rapidamente compartilhadas por viverem em comunidade. Todo morador desta comunidade saberá contar pelos menos uma destas histórias vividas em alto mar, e é neste momento de compartilhamento que a memória ocupa um papel importante de registro, já que não existem muitos documentos sobre essas vivências.

A narrativa oral nesse caso é de suma importância para preservar a memória daquela comunidade. Estar numa destas rodas de conversa com os pescadores é uma experiência tão rica quanto assistir a uma peça teatral. Tem narrador, personagem, fábula, conflito, as imagens da narrativa muitas vezes repercutem no corpo e na voz destes pescadores, mesmo que eles não se deem conta desta teatralidade que aparece através da sua espontaneidade.

Na medida em que as histórias são contadas, é possível viajar com a imaginação. Durante as histórias, os pescadores conseguem situar muito bem o tempo e o espaço da ação e facilmente, nós ouvintes, entramos na dimensão física e psicológica das personagens que compõem aquelas histórias.

O primeiro encontro com os pescadores, João Batista, Raimundo e meu avô Cícero, se deu no dia 22 de Janeiro de 2017. Ambos pescam juntos há muitos anos. Minha família de vez em quando gostava de fazer passeios de barco nos finais de semana para uma costa que se chama “Pontal dos Anjos”. Em quase todos estes passeios o barco que utilizávamos era o de Raimundo, uma navegação denominada de “Charmoso”. Assim, Raimundo e Galego estavam sempre conosco nestes passeios e é daí que vem a minha aproximação com estes pescadores.

Inicialmente, meu avô e eu nos dirigimos até a comunidade em direção ao rancho de Raimundo. Ao chegarmos lá, encontramos no local somente o João Batista. Meu avô falou para ele que eu queria saber sobre as histórias contadas

pelos pescadores. Nesse momento me aproximei e expliquei que estava fazendo uma pesquisa sobre a comunidade e a vida dos pescadores no mar. Rapidamente ele me convidou a sentar e, ali mesmo na calçada, compartilhou comigo suas experiências e também histórias de outros pescadores. Ainda durante o início da conversa, Raimundo chegou e ao perceber que João Batista estava me contando as histórias de pesca, senta conosco e começa a contribuir com mais histórias, enquanto meu avô entre uma história ou outra fazia um comentário.

A conversa aconteceu de forma bem interativa, não busquei observar um pescador de cada vez, observei a todos de forma simultânea. Deixei-os a vontade e busquei não interferir enquanto gravava as histórias. Enquanto um contava, outro acrescentava e dava ênfase em determinados pontos. E eu, somente observava e “embarcava” no diálogo como se naquele momento, eu fosse um tripulante que estava apenas aproveitando a viagem.

Mesmo sendo um ambiente familiar, eu sempre fico fascinado com a forma como eles se expressam. Às vezes soa como um dialeto um pouco arcaico, a entonação da voz gera alguns suspenses na narração das histórias e outras vezes, as brincadeiras entre eles quase sempre geram risadas. Ao contar as histórias, as vozes destes pescadores entravam em estado de representação. Os relatos dos acontecimentos ganhavam ricos detalhes que ampliavam a visão dos ouvintes. Com relação a voz, identifiquei que ela continha foco, força, imagens e sensações.

O ambiente também contribuiu bastante para a ocasião. A roda de conversa foi na calçada de uma casa chamada por eles de “rancho”, onde é guardado todo material de pesca e é o local em que eles fazem as redes e manutenção do material. Por acontecer numa calçada, houve bastante interferência de sons externos como barulhos de motos ou carros, pessoas conhecidas que passavam e nos cumprimentavam, barulhos de motor de barco, entre vários outros. Mesmo assim, parecia que em determinadas horas, o som externo contribuía com a narração, por exemplo, o barulho do motor dos barcos, o som do mar ao fundo e até mesmo o silêncio nos raros momentos que ele aparecia. Dependendo do assunto, eles sempre apontavam para o mar indicando a direção e também para os locais onde estão concentradas as residências daquela comunidade, ou até mesmo para as casas de alguns pescadores.

O pescador João Batista tem uma voz muito grave, ele conta as histórias sem pressa e privilegia as pausas. Mesmo contando as histórias de maneira informal, era

interessante ver que ele sempre buscava formalidade nas palavras, procurava usá- las de forma correta. Sua fala era dividida em momentos de narração e de diálogos entre as personagens daquelas histórias, inclusive recriando as vozes de cada uma. Durante a narração, seu olhar raramente era direcionado para mim, estava sempre olhando para o horizonte, como se visualizando toda a história novamente.

Com relação a isso, me recordei de um livro que li certa vez chamado “Um Ator Errante”, de Yoshi Oida (1999). No prefácio deste livro, Peter Brook escreveu o seguinte:

Um dia Yoshi me falou a respeito de umas palavras de um velho ator de kabuki: “Posso ensinar a um jovem ator qual o movimento para apontar a lua. Porém, entre a ponta de seu dedo e a lua a responsabilidade é dele”. E Yoshi acrescentou: “Quando atuo, o problema não está na beleza do meu gesto. Para mim, a questão é uma só: será que o público viu a lua?”. Com Yoshi, eu vi muitas luas. (BROOK apud Oida, 1999, p. 11)

Eu não olhava para o horizonte como João Batista, meu olhar se fixava nele durante sua fala e com ele eu via toda a situação que estava sendo narrada.

Era interessante ver também que ele continuava com seu olhar para o horizonte enquanto Raimundo ou meu avô contava alguma história. Esse comportamento me fazia pensar que ao escutar os demais relatos, ele parecia reviver cada um daqueles momentos e pude perceber nesse olhar direcionado para o horizonte que ele parecia ter orgulho de sua luta. Era bonito perceber tal comportamento sendo confirmado com falas de agradecimentos a Deus por nunca ter chegado a acontecer algo com ele que tirasse a sua vida, e também sempre repetindo a frase com um ar de saudade “... são muitas histórias!”. Não que a prática da pesca antigamente fosse melhor do que hoje, até porque muita coisa melhorou de lá pra cá. Mas em seus depoimentos e olhares havia uma espécie de nostalgia e saudade de tudo que já viveu.

Já o pescador Raimundo tinha uma voz um pouco rouca e mais firme. Ele não dava pausas de reflexão como João Batista, mas sempre detalhava com exatidão os acontecimentos. Seu olhar era direcionado a mim com mudanças, a direção da narrativa precisava direcionar o foco de quem estava escutando. Sempre que ele terminava uma história, ele fazia questão de dizer que não gostava quando as

pessoas não acreditavam, e que tudo que ele dizia era verdade. Raimundo me transmitiu uma valentia, e muita experiência da vida de pescador.

A participação do meu avô Cícero se deu mais por meio dos comentários. Sua fala é mais explicativa, ele descreve as cenas como quem está ensinando como é a vida lá fora. Não sei se essa impressão que tive tem a ver com o fato de ele ser meu avô e ter me ensinado muita coisa na infância. De qualquer modo, ele deixou Raimundo e João Batista falarem mais, servindo como uma espécie de mediador.

Meu segundo encontro foi com a marisqueira Sueli. Minha aproximação com ela vem desde minha infância. Sueli sempre gostou de organizar alguns eventos na comunidade, e também de ir atrás de melhorias, cobrando aos políticos de suas promessas. Por meu pai realizar vários eventos culturais na comunidade, além da convivência por ter morado muito tempo neste bairro, Sueli é uma pessoa amiga da família.

Meu encontro com ela aconteceu na manhã do dia 01 de Fevereiro de 2017. Desta vez meu avô ficou de fora e levei apenas um amigo comigo para fazer algumas fotos.

Na casa de Sueli fui recebido em um cômodo onde é guardado todo o material de pesca. As redes e os demais instrumentos de trabalho deixavam aquele lugar com um cheiro forte de maresia, cheiro este que senti em boa parte de minha infância e que já me era bem familiar. De imediato, o ambiente me levou para uma atmosfera que lembrou muito a antiga casa de minha avó, um lugar simples, um barulho de TV ao fundo, o som do óleo quente na frigideira, e claro, aquele cheiro de mar entranhado nas redes de pesca. Quando ela chegou, fez questão de chamar o seu esposo Chicó e dizer “Olha Chicó o fí de Norma”. Foi aí que me senti à vontade e pensei “estou em casa”.

Com Sueli, como falei anteriormente, a conversa foi mais sobre este lugar da espera. Este lugar da mulher de pescador que fica apreensiva por seu marido não voltar do mar. Apesar de ter um dialeto um pouco arcaico, sua fala é bem precisa, demonstra sempre uma indignação pela falta de atenção para a comunidade por parte das autoridades. Ao mesmo tempo, falou com muito orgulho daquele lugar e de como viu tudo aquilo mudar com o passar dos anos. Seu jeito de falar carrega um forte traço de uma vida dura. Seu corpo também expressa essa dureza junto ao cansaço.

Mesmo com falas de preocupação, Sueli também transmitiu muita alegria. Em seu depoimento muitas vezes fomos interrompidos com o som de suas risadas altas em vários pontos das histórias. Não vemos em Sueli uma figura feminina comum. Acredito que o fato de ter uma vida cheia de compromissos e ter que dar conta de várias obrigações na ausência do marido quando este está pescando, lhe atribui uma força diferente das outras mulheres que vivem naquela comunidade.

Ao ver Sueli narrando às histórias, senti uma conformidade com sua realidade de vida, que mistura perigo, ansiedade e a luta.

Entendendo todos os seus afazeres de dona de casa, não estendi tanto a conversa para não atrapalhar seus afazeres domésticos. Já tendo ouvido bastante, disse que iria embora e que iria deixá-la fazer o almoço. Agradeci e Sueli pediu licença para fritar uns peixes e preparar a refeição. Em meio a esta cena, a luta diária ficou mais nítida saindo do campo da narrativa para uma realidade bem ali à minha frente. Saí de lá refletindo sobre estas questões e pensando como eu poderia retratar todas estas situações dentro de meu espetáculo. Como dar corpo e voz àquelas pessoas numa peça teatral? Como dramatizar a realidade?

Sem dúvida, estes pescadores durante a roda de conversa jamais poderiam pensar suas histórias como teatro. Havia o “Intérprete/Narrador” que era o pescador, o “público/ouvinte” que era eu e o “evento” que foi a nossa experiência coletiva com as histórias. Por já ser um espectador de teatro, apreciei cada detalhe que já me possibilitava diversas imagens de como as situações poderiam ter ocorrido. Com certeza esta visita aos pescadores contribuiu enormemente com meu processo de criação. Este encontro foi clareando na minha cabeça a gestualidade que eu poderia experimentar em cena, as histórias que seriam interessantes de serem contadas e as personagens que poderiam aparecer ao longo da peça.

Finalizo este capítulo, com uma citação do historiador e crítico literário, Paul

Zumthor, que está em seu livro “Introdução à Poesia Oral” (1997), que reafirma a

importância de mantermos vivas estas histórias, as memórias do nosso povo e a nossa tradição.

A sociedade precisa da voz de seus contadores, independente das situações concretas que vive. Mais ainda: no incessante discurso que faz de si mesma, a sociedade precisa de todas as vozes portadoras de mensagens arrancadas à erosão do utilitário: do canto, tanto quanto a narrativa. Necessidade profunda, cuja manifestação mais

reveladora é, sem dúvida, a universalidade e a perenidade daquilo que nós designamos pelo termo ambíguo de teatro. (ZUMTHOR, 1997, p. 56)

E assim, após meu encontro com os pescadores voltei para Natal entendendo mais ainda a importância de realizar este trabalho. A escrita é sobre Macau, sobre os pescadores, sobre minha família, meu teatro. Mais ainda, a escrita é sobre mim.

Documentos relacionados