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CAPÍTULO 2 – O MAR INVADE A CENA

2.1 ELABORAÇÃO DE PERSONAGENS

2.1.3 O surgimento de cada personagem

Tendo feito o exercício da observação e a coleta de materiais, a segunda etapa do processo de criação foi me apropriar das ações corpóreo-vocais durante os ensaios.

Durante os primeiros ensaios comecei a desenvolver paralelamente a dramaturgia do espetáculo. A respeito da elaboração do texto teatral, explicarei mais à frente, para me ater nesse primeiro momento à criação das personagens.

De início resolvi não colocar nome em cada uma das personagens que compõem a história. Meu propósito era que o público pudesse identificar nos pescadores que aparecem na peça, a imagem que eles já tem de um pescador. Assim, mesmo não conhecendo os pescadores que entrevistei, o público poderia se identificar com aqueles personagens e se aproximar um pouco mais desta realidade.

a) Pescador 01

Esta personagem é uma junção dos materiais que não partiram da observação. Após fazer a leitura da entrevista que o pescador, Manoel Crispim de Miranda concedeu a Getúlio Moura, achei que seria interessante transportar as informações que estavam lá para a cena.

Nesta cena, o espectador se depara com a biografia de Manoel: como entrou para a pesca, quando tirou seu documento de pescador, o salário, a dificuldade para sustentar sua família e as aventuras que viveu em alto mar. Contudo, as únicas informações que eu tinha a respeito do Manoel estavam no texto, não cheguei a conhecê-lo pessoalmente.

Seu Manoel é pescador da comunidade de Diogo Lopes, cerca de 30 km de Macau. Por não conhecê-lo, achei que seria uma boa oportunidade somar a entrevista com outros materiais poéticos que tive conhecimento durante a pesquisa, tais como: o vídeo “O velho e o mar”, baseado no livro de Ernest Hemingway, os contos de Mia Couto e algumas fotografias de pescadores de Macau que encontrei na internet.

Em sala, coloquei sons variados de mar e aos poucos fui correspondendo a estes sons corporalmente, criando situações a partir destes materiais que mencionei. Aos poucos fui experimentando as ações das fotos e brincando com os textos.

Embora eu não estivesse fazendo exatamente a mímesis corpórea das fotografias, essa forma de criação foi inspirada nesta metodologia. Em 2016, tive a oportunidade de participar de um workshop7 da atriz Raquel Scotti Hirson, atriz do Lume, em que ela trabalhava a partir de imagens, o que hoje ela denomina de mímesis da palavra. Essa vivência me auxiliou bastante nessa primeira parte da construção do espetáculo dialogando com as experiências da disciplina de Expressão Vocal III.

7 O workshop fez parte da programação do I TUDO AMOSTRA – Mostra dos alunos do Curso de

Assim, por meio desta brincadeira com textos fictícios e depoimentos e imagens reais surgiu o Pescador 01 - um personagem cheio de bravura, de idade mais avançada e que carrega consigo o orgulho de sua história.

Descrição Diário de Bordo – 09/02/2018:

Hoje surge o pescador 01. Apesar de suas falas pertencerem à entrevista do livro “Um Rio Grande e Macau”, suas ações físicas são inspiradas na fotografia 01: Um pescador já de idade que se encontra debilitado. Possui pele desgastada pelo sol com traços fortes. Baseado na fotografia move-se com dificuldades e tem ações lentas. Sua fala é pausada e tem voz rouca. A voz surgiu durante as ações corporais. Lembro-me dessa voz de algum lugar, embora não consiga definir de onde a conheço. Tentei desenvolver outras vozes, mas esta sempre voltava. Esse pescador gosta de contar suas histórias de pesca; uma atrás da outra sem deixar espaços para questionamentos. Enquanto narra, apesar de debilitado, gosta de mostrar através de gestos como foi o acontecido. Seu jeito carrega saudades e orgulho da vida que levou. Ele não exerce mais a profissão, por esse motivo ele gosta de reviver a pesca contando suas histórias. Gosta de tocar violão e cantar modinhas. Pescador experiente com muita coisa a ensinar. Este foi o pescador que surgiu hoje.

Figura 01: Sr. João, um antigo pescador de Macau com muitas histórias para contar. Fonte: Crônicas Macaenses (LUZ, 2013).

b) Marisqueira

Esta personagem é inspirada na pessoa de Sueli. Embora a Marisqueira não seja uma recriação exata dela, as ações físicas e vocais nasceram da tentativa de sua reprodução.

O primeiro passo para o surgimento da Marisqueira foi ouvir as gravações da conversa com a Sueli repetidas vezes buscando a memorização de suas ações vocais. Com as ações em mente, consultei às anotações que fiz no dia daquele encontro.

Em sala de ensaio, o processo de imitação ganhou um novo colorido com as interferências de alguns estímulos musicais, fotográficos e, claro da memória

afetiva8. Estes estímulos numa certa altura do processo me fizeram compreender que não se tratava mais da Sueli, que eu conheço e entrevistei, mas também de minha avó, Maria. Durante os ensaios surgiu uma personagem feminina que representa as mulheres dos pescadores.

Desta maneira, surge a personagem Marisqueira, que vive suas labutas diárias para dar conta de seus filhos e afazeres em casa. E que sofre por medo e saudade de seus companheiros quando estão em alto mar.

Descrição Diário de Bordo – 16/02/18:

Hoje surgiu a Marisqueira. Uma mulher batalhadora como todas as outras. Dá conta dos filhos, da casa e ainda batalha por melhorias na comunidade. Sua fala é apressada, suas pausas são de gaguejos. Às vezes acentua e arrasta algumas sílabas tônicas. Sua fala é bastante alta e tem uma risada como quem emiti um som oco da garganta. A voz surgiu a partir da própria gravação. Contudo, suas ações físicas vieram dá minha avó Maria. Durante a construção corporal foram surgindo algumas lembranças das noites que dormi na casa de minha avó quando meu avô estava na pesca. Lembro exatamente de suas ações quando estava preocupada, quando preparava feijão no fogão a lenha, quando estava raspando coco e, principalmente, quando ela sentava pra conversar e falar dos mais variados assuntos. Suas expressões corporais eram bem delineadas. Hoje teatralizando as ações da Marisqueira surgiram as ações de minha avó. Acredito que seja pelo clima de saudades que me encontro hoje. A saudade de casa, de minha cidade... Todo o trabalho hoje estava sendo desenvolvido sob essa energia. A fala da Marisqueira descreve a comunidade, como é hoje e como era antigamente. Ao experimentar essa fala, eu sabia com precisão do que ela estava descrevendo. É um corpo que gosto de representar, uma vivência ímpar nessa peça. Assim nasceu a Marisqueira, uma mulher que se diverte ao contar suas histórias de vida enquanto prepara um bom cuscuz para os filhos.

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Memória Emotiva é um termo usado por Constantin Stanislavski, que em suas primeiras investigações apostou nas memórias pessoais dos atores como ponto de partida para o desencadeamento de ações internas e externas.

Figura 02: Material de pesquisa. A marisqueira Sueli relatando suas histórias. Foto: João Marcos Oliveira.

c) Pescador 02

De maneira semelhante, o pescador 02 vem do mesmo processo criativo da Marisqueira, os métodos usados foram os mesmos: ouvir as gravações, memorização das ações vocais, consultar as anotações, imitações, estímulos musicais, estímulos fotográficos e memória afetiva. A única diferença é que este pescador é resultado da junção de dois pescadores, o Raimundo e o João Batista. Estes pescadores, por serem irmãos, pescam juntos há muitos anos. Por terem vivenciado muita coisa juntos, resolvi criar um pescador que tivesse as características de ambos. Desta maneira, o processo criativo da personagem transitava entre ações vocais e corporais de um e de outro.

Assim, nasce o Pescador 02 sendo este, o personagem que fala por si e pelos outros, contando suas experiências de vida e experiências de outros companheiros.

Descrição Diário de Bordo – 23/02/18:

Hoje foi a vez de experimentar as ações físicas e vocais de Raimundo e Galego. Ambos de histórias parecidas, situações compartilhadas, vivências em dupla. Na busca de ficar em um, sempre aparecia o outro. Fui deixando as falas e as ações aparecerem organicamente até que se fundissem. Assim nasceu hoje o

Pescador 02, de uma mistura de irmãos. A voz predominante é a do João Batista, embora que nas histórias narradas por Raimundo os ritmos de suas falas não tenham sido perdidos na voz de seu irmão. O corpo tem um pouco de ambos, a forma de sentar vem do João Batista e a forma de se expressar vem do Raimundo. O Pescador 02 tem uma fala pausada, voz um pouco grave vinda do peito. Olha bastante para o horizonte e quase sempre está com pescoço pra baixo. Costuma apontar a direção do acontecimento.

Figura 03: Material de pesquisa. Na ordem: João batista (Galego) e Raimundo. Foto: João Marcos Oliveira.

d) Max Criança

O Max Criança não se trata exatamente de uma personagem criada, mas sim de ações no corpo a partir da memória de minha infância. Esse corpo aparece durante a narração inicial onde apresento a cidade para a plateia. É uma cena que intercala com brincadeiras de minha infância e algumas informações que eu acho importantes para apresentar a cidade a quem não a conhece.

O surgimento desse corpo vem do meu primeiro encontro com a professora/orientadora Melissa Lopes em sala de ensaio. Por não conhecer Macau, ela me desafiou a apresentar para ela a cidade. Não tendo muito tempo para pensar, comecei a brincar pelo espaço trazendo memórias de minha infância utilizando alguns objetos que tinha na sala. Durante as brincadeiras, fui formando com alguns

bastões que havia na sala, um mapa de Macau e, intercalando as brincadeiras, fui apresentando neste pseudo mapa cada um dos lugares que iam aparecer na peça.

Após ter improvisado a cena, vimos que tínhamos um material cênico muito rico e que poderia fazer parte do espetáculo, até mesmo para apresentar a cidade aqueles que por ventura não a conheçam. E, quem sabe, até atrair a curiosidade de espectadores que possam se aproximar de alguma forma deste lugar. Assim, a cena aos poucos foi sendo trabalhada saindo do campo do improviso para uma sequência de ações e partituras corpóreo-vocais.

É uma cena que surge a partir de ações criadas pela memória das emoções.

(...) é por nós chamada de memória das emoções. Assim como sua memória visual é capaz de reconstruir uma imagem interior de alguma coisa, lugar ou pessoa esquecidos, sua memória das emoções também pode evocar sentimentos já experimentados. Tais sentimentos podem parecer estar além da possibilidade de serem evocados mas, subitamente, uma sugestão, um pensamento ou um objeto conhecido fazem com que nos sejam trazidos de volta na plenitude de sua força (STANISLAVISKI, 1997, p. 131-132).

Para desenvolver esta cena inicial, utilizei algumas fotos de crianças brincando e, com isso, fui experimentando ações corporais a partir das posturas das crianças nas fotos e ao mesmo tempo, tentando trazer a memória da minha própria criança.

Descrição Diário de Bordo – 30/02/18:

Hoje busquei reviver momentos de minha infância. Comecei a fazer um aquecimento no início e a partir dele fui correndo pelo espaço. Do próprio aquecimento comecei a brincar alguns jogos de minha infância. Como a cena inicial já estava pré-definida, da brincadeira fui introduzindo os elementos e explicando cada um deles seguindo o texto. Fiz isso sem pressa, as ações corporais e vocais foram mais pensadas. Foi puro experimento. Quando percebia que alguma ação não estava bem encaixada eu refazia de outra forma até encontrar. As imagens utilizadas me ajudaram na memorização do corpo. Assim surgiu o Max Criança. Não exatamente um personagem, mas sim um corpo presente, uma memória revivida no palco durante a narração da cidade.

Figura 04: Material de pesquisa. Criança brincando. Fonte: Diário de Olímpia (CONCON, 2015).

Figura 05: Material de pesquisa. Crianças brincando. Fonte: Narrativas em Jornalismo, 2015.

Figura 06: Material de pesquisa. Pipa. Fonte: Catraca Livre, 2013.

Esta foi a maneira que encontrei para desenvolver o processo de criação das personagens do espetáculo “Ô do Mar”. Um processo rico que serviu de âncora para que eu pudesse me atirar ao mar do espetáculo.

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