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2.9 MINIMALISMO E SIMBOLISMO NO SOM DO PÓS-GUERRA

Se a História moderna pode ser dividida entre antes e depois da Segunda Guerra Mundial, o mesmo pode ser dito do cinema, em qualquer aspecto. Tanto temática quanto tecnologicamente, todo o universo do cinema se metamorfoseou ao longo do período de 1939 a 1945, afetando também o processo criativo e produtivo do som para cinema de animação.

Nas décadas seguintes ao fim da Guerra, dois grandes fatores passaram a ser determinantes para o estudo da animação, influenciando tanto o conteúdo formal quanto o formato técnico dos filmes e seus meios de produção: a polarização sócio- econômica do mundo entre Capitalismo e Comunismo, e a popularização universal da televisão como meio de comunicação.

A Guerra Fria se caracterizou pela ausência de conflitos bélicos declarados, e os combates se deram no plano social e psicológico. Foi uma era de espionagem, guerra psicológica, e propaganda ideológica; uma guerra para conquistar corações e mentes, onde a mídia, a arte e a cultura foram armas fundamentais para ambos os

lados, e tanto os governos capitalistas quando comunistas apostaram alto na cultura popular como um método simples e eficaz de estabelecimento cultural. Graças a isso, os estúdios de cinema de animação do Leste Europeu e da União Soviética tiveram seus auges durante aquelas décadas, produzindo diversos clássicos da história da animação, e conquistando prêmios em festivais dos dois lados da Cortina de Ferro.

Obviamente, os orçamentos dos filmes não eram tão altos quanto os dos estúdios de Hollywood, e os animadores desses países comunistas dependiam muito mais de seu talento narrativo do que de malabarismos tecnológicos para produzir seus filmes. Entre o final da Segunda Guerra e a queda do Muro de Berlin, estúdios lendários como o Kratky Film da Tchecoslováquia, o Pannoniafilm da Hungria, o SFA da Polônia14, o Zagreb Film da Croácia e o Soyuzmultfilm da União Soviética

produziram milhares de curtas, longas e séries de TV que foram exibidos em salas de cinema, festivais e programas de televisão de todo o mundo, com uma liberdade artística tão grande quanto eram pequenas suas liberdades temáticas. Esses filmes tinham um amplo espectro de técnicas e visualidades, permitindo um grande experimentalismo estético por parte dos artistas, tanto nas imagens quanto no som.

Enquanto isso, nos Estados Unidos, uma nova geração de animadores buscava conciliar os conceitos artísticos mais modernos da época com o já estabelecido mercado de cinema, relegando alguns aspectos mais tradicionais dos estúdios já estabelecidos. Após a conturbada greve que paralisou a Disney em 1941, alguns artistas dissidentes fundaram uma nova empresa, aproveitando o mercado de filmes de propaganda patrocinados pelo governo e outras instituições devido aos tempos de esforço de guerra. A “United Productions of America” reuniu um exército de ex- colegas da Disney que buscavam um estilo menos naturalista e mais iconográfico, que utilizasse os elementos do filme animado de maneiras mais criativas e menos dependentes do conceito de imitação da realidade.

Após alguns filmes de teste, o novo estilo do estúdio funcionou tão bem, que em poucos anos de atividade a UPA já estava disputando mercado com os maiores estúdios de animação de Hollywood. Em 1950, ao vencer o Oscar de melhor curta animado com “Gerald McBoing-Boing”, a UPA quebrou uma hegemonia de 18 anos, derrotando o monopólio da tríade Disney-Warner-MGM na premiação.

Dirigido por Robert Cannon e produzido por Stephen Bosustow e John Hubley, o filme era uma adaptação de um livro do Dr. Seuss que contava a história de um garotinho que não conseguia falar, mas se comunicava através de efeitos sonoros - um verdadeiro foley ambulante que, a princípio, traz confusão e tristeza para sua família, mas finalmente encontra seu lugar na sociedade ao se tornar uma celebridade do rádio.

O sucesso do filme ajudou a redefinir todo o sistema de produção de cinema de animação daquela época, um processo que já havia começado nos anos de contenção de gastos da Segunda Guerra até mesmo nos grandes estúdios. Um grande marco desse novo estilo econômico e exagerado foi o curta “The Dover Boys”15, de 1942.

A pedido da Warner, o produtor Chuck Jones experimentou um estilo de animação diferente do que era padrão na época, derivado dos filmes da Disney que usavam referências filmadas e rotoscopia para criar movimentos naturais e realistas. Substituindo inbetweens por desenhos deformados e borrados16, ou modificando o

design dos personagens para evitar ter que animar movimentos complexos, Jones conseguiu produzir um curta de 7 minutos com pouquíssimos recursos humanos. Além do roteiro de Ted Pierce e da música de Carl Stalling, os créditos do filme listam apenas mais uma pessoa: o animador Robert Cannon - o mesmo que mais tarde iria ajudar a fundar a UPA e dirigir “Gerald McBoing-Boing”. Em tempos de guerra, com quase todos os recursos financeiros direcionados aos filmes de propaganda, e muitos artistas fora do estúdio, alistados nas forças armadas, Chuck Jones conseguiu

15 “The Dover Boys at Pimento University or The Rivals of Roquefort Hall” (1942, dir. Chuck Jones) 16 Essa técnica ficou conhecida como “smearing” ou “smear animation”.

produzir um filme de 7 minutos usando um único animador, uma façanha heróica até mesmo para os padrões de hoje.

Embora a experiência de Jones em “The Dover Boys” quase lhe tenha custado o emprego17, Cannon extraiu uma boa experiência da produção, o que ajudou muito

na formação do conceito artístico da UPA. Enquanto o resto do mundo (como a União Soviética, por exemplo) ainda tentava imitar os movimentos fluidos e realistas dos filmes da Disney, a UPA iria buscar alternativas não apenas mais baratas ou mais fáceis de produzir, mas também mais interessantes visual e sonoramente. No início dos anos 1950, o mundo do design gráfico buscava soluções modernistas que ajudassem as pessoas a superar os anos trágicos, feios e sujos da Guerra. Ao contrário dos expressionistas abstratos da pintura e dos beats da literatura, os designers gráficos dos anos 1950 buscavam leveza, simplicidade e minimalismo, e esses valores transpareciam nos filmes da UPA e dos outros estúdios que acompanhavam de perto a evolução de seus trabalhos.

É difícil identificar com clareza o caminho que os filmes da UPA podem ter feito para influenciar estilisticamente os filmes animados do Leste Europeu e da União Soviética, mas pelo menos uma ligação pode ser identificada com certeza. Em 1959, o animador estadunidense Gene Deitch, foi procurado pelo produtor William Snyder para comandar uma equipe de animadores em um estúdio. Para sua surpresa, Deitch descobriu que o estúdio ficava em Praga, capital da então Tchecoslováquia, do outro lado da Cortina de Ferro. O estúdio em questão era o Bratři v Triku, que tinha três andares dedicados exclusivamente aos filmes financiados por Snyder. Deitch foi até Praga para coordenar alguns esses projetos, e a viagem que deveria durar 10 dias acabou se tornando sua nova vida.

Deitch havia trabalhado na UPA entre 1946 e 1949, e levou consigo algumas cópias dos filmes do estúdio de que havia participado. Sob sua direção, o estúdio tcheco adaptou seu design e sua técnica de animação para se enquadrar melhor nesse

novo visual minimalista, e esses filmes certamente tiveram bastante impacto. Isso se tornou mais claro ainda a partir de 1960, quando Deitch ganhou o Oscar de melhor curta de animação com “Munro”18, um projeto que havia começado a desenvolver

quando ainda estava nos Estados Unidos, e finalizou no estúdio de Praga. A conquista de um dos prêmios mais importantes do mundo do cinema certamente deu muita visibilidade ao seu trabalho, nos dois lados da Cortina de Ferro.

Esse Oscar não foi totalmente surpreendente. Depois que “Gerald McBoing- Boing” havia deixado bem claro que havia um novo estilo de animação no mercado, tanto a UPA quanto alguns de seus parceiros e ex-sócios ganharam o mesmo prêmio nos anos seguintes. Em 1953, por exemplo, a Disney venceu com “Toot, Whistle, Plunk and Boom”19, produzido em um estilo claramente inspirado pelo da UPA. Em

1954, a UPA venceu novamente com “When Magoo Flew”20. O mesmo personagem

ganhou a estatueta novamente em 1956, e em 1959 foi a vez de John Hubley, já afastado da UPA, vencer com “Moonbird”21.

Mas o filme que venceu o Oscar no ano seguinte a “Munro” provocou uma quebra de paradigma ainda maior: “Surogat”22 ganhou o prêmio em 1961, e foi o

primeiro filme não produzido nos Estados Unidos a vencer o Oscar de melhor curta de animação. Em tempos de Guerra Fria, seria estranho o suficiente que um país estrangeiro vencesse um Oscar dessa maneira, mas era ainda mais peculiar que fosse um país comunista: “Surogat” foi produzido pelo Zagreb Film, um estúdio da Croácia, então parte da Iugoslávia comunista.

No ano seguinte, um experiente animador russo lançava seu primeiro curta, que também se enquadra perfeitamente nesse novo estilo de animação econômica e criativa. Trata-se de “A História de um Crime”23 de Fyodor Khitruk, que utilizou

de maneira sábia e interessante os melhor elementos dos filmes da UPA e de Gene

18 1960, dir. Gene Deitch 19 1953, dir. Ward Kimball 20 1954, dir. Pete Burness 21 1959, dir. John Hubley

22 “Surogat” (1961, dir. Dušan Vukotić) 23 “История одного преступления” (1962)

Deitch para criar alguns pequenos clássicos do cinema de animação, como “Cinema, Cinema, Cinema”24 e “A Ilha”25.

Embora esse estilo de animação seja sempre lembrado pela economia de inbetweens, design modernista e cenários cubistas, o estilo minimalista empregado pelos designers não ficava apenas nas imagens. Todos esses filmes, e alguns tantos outros da mesma época, empregavam em seu design sonoro os mesmos princípios artísticos e filosóficos presentes nas imagens. O uso dos três elementos básicos e fundamentais do som cinematográfico - voz, música e ruído - reflete, nesses filmes, os mesmos parâmetros de seu design visual, desafiando convenções e buscando uma comunicação mais direta com o espectador, economizando elementos e apostando na expressividade do resultado final.

Uma das maneiras que os músicos e editores de som encontraram para alcançar isso foi reduzir, quando não eliminar, o uso de diálogos. Em muitos casos citados acima, a narração do filme é feita por uma única voz, a de um narrador não-diegético semelhante à voz de um livro. Um bom exemplo é “Gerald McBoing-Boing”, onde o narrador declama literalmente as frases do livro original, enquanto os personagens se movem pela tela, raramente pronunciando qualquer palavra com voz própria. Outro exemplo claro desse uso da voz narrativa literária é o clássico curta da UPA “The Tell-Tale Heart”, onde o narrador lê trechos do conto original de Edgar Allan Poe, interpretando dramaticamente o texto sem no entanto permitir a interrupção de qualquer outra voz que não a do narrador.

No caso de “Surogat”, vamos além: não existe nenhuma palavra discernível nas falas dos personagens, embora todos eles tenham vozes humanas bem definidas. Essas vozes dão a eles uma certa dimensão de humanidade, sem no entanto oferecer maiores detalhes sobre sua natureza. O personagem principal cantarola a música- tema do filme, tornando a música propriamente dita quase redundante. A história

24 “Фильм, фильм, фильм” (1968) 25 “Остров” (1973)

é toda contada com essa mistura de música-voz, música-instrumento e ruídos, tornando o filme universal em sua ausência de linguagem falada. Esse artifício era muito utilizado por diversos estúdios comunistas para evitar que as línguas de seus respectivos países fossem um empecilho à compreensão dos filmes, possibilitando assim que um filme produzido na Tchecoslováquia fosse facilmente exibido nos cinemas da Rússia, por exemplo. No caso de “Surogat”, esse artifício alcança um nível bastante refinado de complexidade e comunicatividade.

A famosíssima série do Mr. Magoo, da UPA, usava um artifício semelhante e bastante eficiente: não havia um narrador propriamente dito, mas o protagonista falava sozinho o tempo todo, preenchendo o espaço sonoro da voz durante todo o filme, entrecortado por falas esparsas de um ou outro personagem secundário. Em termos de produção, isso era bem mais simples do que usar vários atores e animar diversos diálogos. Magoo fala sozinho o tempo todo, e seus coadjuvantes apenas o observam, quase sempre calados, quase mudos diante do quase-cego.

Refletindo a distorção visual provocada pela visão turva de Magoo, o som de seus filmes também é um tanto deformado, com a música assumindo o papel de alguns efeitos sonoros. Em “When Magoo Flew”, os ruídos são reduzidos a um mínimo necessário, e muitos sons são apenas sugeridos, com a música assumindo esse papel. Quando Magoo caminha, por exemplo, seus passos não fazem o som de sapatos raspando no chão, mas a tuba e as flautas da música de fundo sugerem esse ruído em seu ritmo. O mesmo acontece quando ele pisa nos flaps do avião, e o som que ouvimos é apenas o de um chimbau de bateria, tocado em sincronia com o movimento, mas com um som claramente musical, não-realista.

Outro exemplo interessante do uso que a UPA fazia do som aparece em “The Unicorn in the Garden”26. Enquanto a música pontua e dá ritmo à narrativa,

semelhante ao estilo musical de Carl Stalling, os diálogos e ruídos são mantidos em um mínimo necessário. No final do filme, quando a polícia leva a esposa embora,

a trilha musical toca um único compasso da marcha nupcial de Mendelssohn, fazendo um rápido comentário sobre a real natureza da história do filme. A sugestão musical da cerimônia de um casamento tradicional, somada ao olhar do marido, dá ao filme um novo significado. Bastam algumas poucas notas na trilha musical para compreendermos que não se tratava de um filme sobre unicórnios, afinal.

3 - MÚSICA, VOZ, RUÍDO: OS ELEMENTOS