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A questão é que o som “realista” de um filme não reproduz a realidade – ele apenas cria uma sensação de realidade. Essa exigência do espectador leigo pelo realismo é uma auto-ilusão proveniente de uma enorme rigidez em sua imaginação. O que importa no filme não é o realismo, mas a verossimilhança. Não importa se o que se vê e ouve é real, mas sim se passa a sensação de ser real. Prova disso é que quase sempre o áudio que é gravado na locação em que as imagens foram filmadas é depois editado, modificado ou mesmo substituído completamente por outros sons.

Já falamos anteriormente sobre a música não-diegética, que, apesar de ser utilizada amplamente no cinema até hoje, já foi motivo de chacota inúmeras vezes devido a sua natureza quase non-sense. Sua própria existência dentro de um filme comprova que o som do cinema não depende da realidade e muito menos do que está aparecendo na imagem. As vozes dos atores também são muito menos realistas do que possa parecer. Mesmo hoje em dia, com as facilidades que existem no registro do som direto, é muito comum que os atores precisem regravar suas falas, usando sistemas de ADR, é muito comum que os atores dublem a si mesmos, aprimorando o som que foi captado diretamente, principalmente no caso de filmagens feitas fora

do estúdio. A tecnologia digital não substitui esse processo, apenas tornando-o mais rápido, eficaz e barato.

O trabalho de foley existe no cinema desde o surgimento do som sincronizado, quando filmes recentes que haviam sido produzidos sem som eram dublados e re- lançados com uma nova trilha sonora. Desde então é prática comum na produção cinematográfica acrescentar e acentuar sons pontuais como o barulho de passos de uma pessoa caminhando, portas abrindo e fechando, tiros de armas de fogo, etc. Alguns desses sons são regravados ou substituídos usando as mesmas coisas que os teriam produzido na "vida real", mas em muitos muitos casos os ruídos são ilusórios. Por exemplo, se o filme exige o ruído de um galope de cavalo, o artista de foley não coloca um cavalo dentro do estúdio, preferindo usar algum artifício como cascas de coco secas sendo batidas em uma almofada. Se a imagem de um filme mostrar um mestre das artes marciais atingindo um oponente com um poderoso golpe, o artista de foley não precisa machucar ninguém para produzir um som verossímil para acentuar o impacto do golpe. Ao invés disso ele pode utilizar um martelo de bife e um pedaço de filé, e misturar esse som ao de um talo de aipo sendo quebrado. Se o filme mostra dois carros em alta velocidade se envolvendo em um acidente, o técnico de som não precisa provocar outro acidente de carro para gravar um áudio realista, podendo recorrer a outros objetos, como latas de alumínio amassadas, caixas cheias de latas sendo chutadas, etc. Diversos sons diferentes podem gravados e depois misturados, criando a ilusão de um único som "realista". O som que nossos ouvidos escutam vindo de um filme não tem nenhuma relação direta com a imagem que nossos olhos estão vendo, mas cria a ilusão de realidade por se encontrar em sobreposição sincronizada às imagens em movimento.

Essa relação não é fixa e direta, e pode variar dependendo do conteúdo das imagens e do objetivo do filme. Quanto mais fantasiosas são as imagens mostradas na tela, maior é a necessidade de convencer a platéia de que tudo aquilo é real. Enquanto os artistas de efeitos especiais precisam estar constantemente inovando as

técnicas usadas para criar essas imagens fantasiosas, os engenheiros de som precisam fazer o mesmo no espectro sonoro do filme, criando sons artificiais que convençam o espectador de aquilo que está aparecendo na imagem é um mundo real. No cinema fantástico essa necessidade é premente, e os artistas de foley que trabalham com esse tipo de filme precisam se desdobrar para construir paisagens sonoras totalmente imaginárias.

Um caso emblemático desse tipo de sonorização é o trabalho do engenheiro de som Ben Burtt na série “Star Wars”, mais especificamente no primeiro filme da série3. O universo ficcional apresentado no filme era totalmente inventado e alienígena, e Burtt precisou criar uma infinidade de novos sons que dessem às imagens uma ilusão de realidade. O que se via na tela (seres de outros planetas, naves e estações espaciais, sabres de luz) era obviamente fictício, e precisava soar ao mesmo tempo estranho e realista. Não bastava pesquisar em um banco de sons e associar um som natural diretamente a cada elemento do filme: era preciso imaginar como seriam os sons, e, a partir disso, criá-los com uma mistura de gravações e efeitos. O enorme sucesso do filme e da série como um todo comprovam que Burtt alcançou seu objetivo.

O cinema de animação, com suas imagens sintéticas e obviamente irreais, depende ainda mais dessa ilusão de realidade conseguida pelo som do que os filmes de ficção-científica filmados com atores. A própria essência do filme animado destoa da necessidade que o cinema filmado sente em se pretender real. Suas imagens irreais não se adequam, por mais que se esforcem, ao conceito que o ser humano tem do que é real, ou pelo menos foto-realista.

Talvez por isso mesmo seu som seja mais permissivo, por não se tratar de um som “esperado”. Geralmente o espectador de um filme animado não espera que ele seja totalmente realista, e aceita muito mais facilmente qualquer estranheza que o som daquele filme possa ocasionar. Por isso, quem trabalha com o som de um filme de animação pode se aproveitar desse universo essencialmente inventado e expandir

os limites das possibilidades de sonorização para muito além das regras e normas estabelecidas pelo cinema de filmagem direta.