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5 POSSIBILIDADES DE HIBRIDISMO ESTÉTICO NA SONORIZAÇÃO DE FILMES ANIMADOS

A maior parte dos teóricos que se dedicaram à questão do som no cinema, como Michel Chion, Alberto Cavalcanti e a dupla Bordwell e Thompson, o dividiram em três categorias: música, vozes e ruído. Essa divisão estabelece um cenário com apenas três possibilidades diferentes. Segundo essas teorias, a voz teria o poder de criar uma conexão de empatia entre o espectador e o filme, humanizando sua paisagem sonora. A música, quase sempre relegada ao papel de “pano de fundo”, teria também a tarefa de direcionar os sentimentos do espectador, manipulando seu estado emocional de maneira imperceptível à medida em que o filme se desenvolve. E os ruídos teriam o papel de criar na imagem em movimento uma ilusão de realidade e tridimensionalidade, dando a sensação de peso e consistência aos objetos manipulados pelos atores, e também reforçando no espectador a sensação de presença em um determinado ambiente. Todos esses três elementos aparecem nessas teorias com uma divisão bastante precisa, e cada um deles tem uma função pragmática bem definida.

A explicação de Cavalcanti é bastante ilustrativa nesse sentido. Em seu antológico livro "Filme e Realidade", onde descreve em detalhes diversos aspectos de sua vasta experiência cinematográfica, o grande documentarista brasileiro expõe sua teoria geral do som cinematográfico partindo do ponto de vista de um produtor de documentários, normalmente preocupado com questões práticas como qualidade técnica do som, clareza da fala, etc. Um dos sinais da maestria e genialidade de Cavalcanti está na natureza aparentemente contraditória de sua fala. Sem abrir mão do pragmatismo quase dogmático da escola de documentários que ajudou a fundar e definir, Cavalcanti também explora, em seus filmes e artigos escritos, possibilidades

poéticas e experimentais, sem que uma coisa exclua a outra. Nas palavras do próprio, em "Filme e Realidade":

Não confie no comentário para contar a sua história: as imagens e o seu acompanhamento sonoro devem fazê-lo; o comentário irrita (...) Não use música em excesso: se você o faz, a audiência deixa de ouvi-la. (...) Não sobrecarregue o filme com efeitos sonoros sincronizados: o som nunca é melhor do que quando empregado sugestivamente. Sons complementares constituem a melhor banda sonora. (...) Não perca a oportunidade de experimentar: o prestígio do documentário só foi conseguido pela experimentação. Sem experimentação o documentário perde o seu valor.

Ao mesmo tempo em que aborda a função dos elementos sonoros, Cavalcanti também atenta à necessidade da experimentação, e em diversos de seus filmes, principalmente da fase dos documentários ingleses, pelos quais é principalmente lembrado, empregou técnicas e idéias vanguardistas, misturando realismo e surrealismo, como em seu filme "Nothing But Time"1, precursor das sinfonias sobre

cidades que foram moda nos anos 1920 e 19302.

Essa visão ilusoriamente paradoxal apresentada por Cavalcanti não é tão estranha quanto possa parecer. Basta lembrar que, como membro do escritório de filmes do GPO, sob o comando de Grierson, Cavalcanti trabalhou com os mais variados artistas, entre eles Len Lye e Norman McLaren, dois grandes nomes da animação experimental. É impossível afirmar com certeza até que ponto algum deles tenha influenciado o outro, e pensar que é mais provável que tenham todos se influenciado entre si, e também por outros artistas e técnicos anônimos que compartilharam com eles aquele determinado lugar e momento da história do cinema. Além disso, tanto McLaren quanto Lye flertaram, em diversos momentos de suas carreiras, com o surrealismo francês, uma das principais influências de Cavalcanti. Todos eles foram frutos de um lugar e de uma época, e não indivíduos isolados com idéias completamente originais, vindas do nada.

1 1926, dir. Alberto Cavalcanti

O surrealismo surgiu na Europa como uma resposta dos artistas às provocantes teorias de Sigmund Freud e outros psicólogos e psicanalistas que começaram, na virada do século XIX para o XX, a questionar o funcionamento do cérebro humano, nossas personalidades e a motivação por trás de nossas ações. Isso atiçou a curiosidade e a imaginação dos artistas, principalmente europeus, e se refletiu na produção artística do período.

O cinema não ficou alheio a essa influência. É interessante notar que tanto o que hoje se chama de movimento surrealista quanto o cinema de som sincronizado surgiram aproximadamente na mesma época: final dos anos 1920, início dos 1930. O momento histórico e estético era propício para o experimentalismo na linguagem, tanto por motivos artísticos (a tentativa de explorar o inconsciente na tela e no texto) quanto por motivos tecnológicos (a influência da nova tecnologia do som sincronizado na linguagem cinematográfica).

Com o passar do tempo, as experiências com o som sincronizado formaram uma linguagem estabelecida, à qual o público se habituou. Cavalcanti também cita em seu livro diversos exemplos de experiências bem e mal sucedidas nesse sentido, descrevendo tanto sessões de cinema mudo sonorizadas por músicos ou dubladores ao vivo, quanto filmes dos primórdios do som sincronizado que dependiam demais do diálogo e de música orquestral inspirada no período final do romantismo. Assim como acontecia na ópera e nas novelas radiofônicas, e também no cinema mudo, a música orquestral era usada como pano de fundo, uma espécie de cenário musical que tapava os pretensos buracos deixados pela falta de diálogos e efeitos sonoros.

Apesar da presença dessa música não-diegética, tanto nos filmes documentais quanto nos ficcionais, a presença do som sincronizado aparece, quase sempre, como uma tentativa para reproduzir a realidade da maneira como ela é percebida pelos seres humanos, e não como uma ferramente de construção de idéias ou sentimentos. Essa obsessão pelo chamado "realismo" sempre esteve presente desde os primórdios do cinema, e os avanços tecnológicos nessa área sempre aconteceram com a intenção

de aprimorar essa imitação dos sentidos humanos: o som sincronizado e o som espacial surgiram com a proposta de imitar a audição, a cor para imitar nossa visão, e assim por diante.

Sendo assim, essa divisão do espectro sonoro em 3 categorias tem um conflito de interesses intrínseco: como pode a música não-diegética ser considerada um elemento normal no filme, quando sua existência contraria a ilusão de realidade? No mundo real que o cinema pretende reproduzir, não existe música de fundo.