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3.1 COLONIALIDADE, MODERNIDADE E RACISMO: (RE) CONTEXTUALIZANDO A

3.2.1 O Mito da Democracia Racial e a necessária Educação das Relações Étnico-Raciais

No Brasil, à medida que a nação foi sendo construída, pós-abolição, uma crença em torno desta começou a ser fomentada – A Democracia Racial – Na qual de fato os brasileiros em seu imaginário político, social e econômico, acreditavam viver (GUIMARÃES, 2005).

O mito da democracia racial no Brasil, conforme Guimarães (2002), teve início em 1937, em Lisboa, na conferência “Aspectos da influência da mestiçagem sobre relações sociais e de cultura entre portugueses e lusodescendentes”. Na ocasião, Gilberto Freyre apresentava a democracia racial como um legado da população luso-brasileira. Transmitia, assim, a ideia de que a sociedade brasileira não fazia distinção de cor e que todos tinham as mesmas oportunidades, ou seja, mostrava uma sociedade sem preconceitos e discriminações raciais, que vivia harmoniosamente o encontro das três raças (RIBEIRO, 2017, p. 54).

Segundo Guimarães (2002), a expressão “democracia racial” só veio aparecer na literatura na introdução escrita por Charles Wagley, em 1952, nos estudos sobre relações raciais patrocinados pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

O projeto de uma representação da nação formada pelo “encontro” e “fusão” de várias culturas, foi amplamente defendido: uma sociedade sem linha de cores e nem barreiras legais que impedissem a ascensão de negros e pardos. Essa representação serviu para se contrapor a nações como Estados Unidos e África do Sul, países considerados racistas quando comparados ao Brasil. (AGUIAR; CORREA; PIOTTO, p.377, 2015).

Florestan Fernandes (1965; 2004; 2008), sendo um dos integrantes da comissão de estudos da Unesco, conhecendo bem a realidade do negro, como o mesmo afirma: “Vivi em cortiços, em vários bairros de São Paulo, e sabia muita coisa sobre as condições reais de vida do negro entre nós[...]” (FERNANDES apud MAIO, 1997, p. 176). Buscou a análise da desagregação da sociedade escravagista e da formação da sociedade de classes, tendo em vista as contradições presentes na organização social e cultural, "evidenciando-se de que maneira a assimetria presente nas relações raciais do passado foi reabsorvida e redefinida 'sob a égide do trabalho livre e das novas condições histórico-sociais'" (SOARES et al., 2002, p. 38).

Na medida em que o negro, nesse espaço marcado pelas relações sociais modernas, passou a sofrer, com a sua nova realidade de "desintegração" à emergente sociedade de classes, em virtude das políticas de criminalização a ele especificamente direcionada, e devido à ausência de um processo de ressocialização para a nova ordem estabelecida. Realidade esta, que veio a tornar a condição dos “antigos escravos” ainda mais adversa e perversa, ao passo que a este grupo foi negada toda e qualquer possibilidade de socialização e consequente ascensão, através do trabalho e da educação, respectivamente, com a intensificação da imigração estrangeira e negação do status de cidadão para ingresso nas instituições pública de educação, no período do pós-abolição.

Inserido neste contexto, Florestan Fernandes concentrou-se num trabalho de desmitificação, e ao se referir às relações entre negros e brancos no Brasil, passou a utilizar a expressão “Mito da Democracia Racial”. “Para ele, a ausência de conflitos raciais abertos e violentos transformou a miscigenação em índice de integração social. Esta, só promoveria essa integração se não se combinasse a uma estratificação racial que associa aos negros as posições mais subalternas da sociedade” (AGUIAR; CORREA; PIOTTO, p.377, 2015).

Florestan Fernandes aponta para o caráter hipócrita da formulação, mostrando que o mito se baseia na afirmação de que a ordem social competitiva é aberta a todos igualmente, forjando-se a crença de que há um paralelismo entre a estrutura social e a estrutura racial da sociedade brasileira. [...] O mito da democracia racial funda uma consciência falsa da realidade, a partir da qual “acredita-se” que o negro não tem problemas no Brasil, já que não existem distinções raciais entre nós, e as oportunidades são iguais para todos. [...] Não se trata de uma formulação sem sentido. Serve a uma constelação de interesses, entre os quais isentar as elites de culpas e evitar a realização efetiva da integração racial democrática. É a forma pela qual as elites exorcizam a ameaça dos movimentos sociais (BASTOS, 1987, p. 148).

Segundo Fernandes, o mito da falsa verdade, da existência de uma rela democracia racial, decorria de dois equívocos básicos ligados à proposição de que o preconceito racial seria neutro. O primeiro deles seria fruto da compreensão de que a miscigenação foi tomada “como índice de integração social e como sintoma, ao mesmo tempo, de fusão e de igualdade raciais” (p. 43-44, 2008a). Ao contrário do que havia demonstrado Gilberto Freyre, seu contemporâneo e colega de comissão, Fernandes observava que a miscigenação, durante o período colonial, serviu antes para “aumentar a massa da população escrava e para diferenciar os estratos dependentes intermediários, que para fomentar a igualdade racial” (p. 44, 2008a). O segundo equívoco, decorrente do primeiro, estaria na confusão entre a existência de padrões de tolerância racial que imperariam “na esfera do decoro social com igualdade racial propriamente dita” (p. 67, 2006).

Carneiro (1995, p. 35-36) pontua que:

Em vez de ameaça, a mestiçagem foi transformada por Gilberto Freyre em solução para os problemas do Brasil, graças ao legado cultural português. O brasileiro estaria a caminho de produzir uma nova raça através do processo de miscigenação, que [...] possibilitou ao mulato, que atendia aos padrões estéticos e eugênicos, do senhor branco, melhores condições de vida e ascensão social.

Buscando se inserir na sociedade de classes, sob a égide da hipocrisia e do racismo velado.

O negro muda em função de uma história que não é a dele, mas a do branco. O homem de cor é, de modo geral, um homem dividido, dilacerado. Socializado no seio da cultura dominante do branco, ele aprende desde pequeno a internalizar os modelos, os valores, os ideais dos brancos. Sofre um processo de embranquecimento psíquico compulsório: “existe nele um brancor”; “ele deveria ser uma coisa, e ele é outra” (LÉPINE, 1987, p. 134).

Essa conjuntura, orquestrada pelo Mito da Democracia Racial no Brasil, denota as faces da colonialidade do “poder, ser e saber”, incidindo sobre a história do povo preto em todas as dimensões da vida em sociedade, em especial na sua educação. Que por muito tempo, a esses sujeitos foi negada, e quando lhes foi concedido restrito acesso, foi utilizada como mecanismo

e instrumento da política de embranquecimento, que lhes usurpou a identidade. Assim, Gomes (2005, p. 57) denuncia, que:

O mito da democracia racial pode ser compreendido, então, como uma corrente ideológica que pretende negar a desigualdade racial entre brancos e negros no Brasil como fruto do racismo, afirmando que existe entre estes dois grupos raciais uma situação de igualdade de oportunidade e de tratamento. Esse mito pretende, de um lado, negar a discriminação racial contra os negros no Brasil, e, de outro lado, perpetuar estereótipos, preconceitos e discriminações construídos sobre esse grupo racial. Se seguirmos a lógica desse mito, ou seja, de que todas as raças e/ou etnias existentes no Brasil estão em pé de igualdade sociorracial e que tiveram as mesmas oportunidades desde o início da formação do Brasil, poderemos ser levados a pensar que as desiguais posições hierárquicas existentes entre elas devem-se a uma incapacidade inerente aos grupos raciais que estão em desvantagem, como os negros e os indígenas. Dessa forma, o mito da democracia racial atua como um campo fértil para a perpetuação de estereótipos sobre os negros, negando o racismo no Brasil, mas, simultaneamente, reforçando as discriminações e desigualdades raciais.

O imaginário social insidioso e facínora, que constitui a construção histórica da sociedade brasileira, forçou o negro a buscar integração numa sociedade não-inclusiva. O que gerou como resultado: perda da identidade étnico-racial; o apagamento e silenciamento dos saberes e conhecimentos ancestrais; o desconhecimento da figura preta como sujeitos produtores e a (auto) desvalorização como capazes de produzir conhecimento; bem como a perda de seu pertencimento e referencial cultural.