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CAPÍTULO II A CLÍNICA NOS DIFERENTES MODELOS Uma das principais acepções do termo clínica vem do grego clinos, que significa

II. O modelo psicanalítico

Como vimos, Paris foi a cidade em que a psiquiatria mais se desenvolveu nos primeiros tempos, sendo os outros lugares um pouco reprodutores do que lá acontecia. Paris avançara na implementação da psiquiatria, naquele tempo, muito mais que a Viena freudiana. E, não à toa, foi no estágio lá realizado por Freud que, aquele que seria o pai da psicanálise, pôde interessar-se pelas doenças mentais, principalmente através do contato com Jean Martin Charcot no Hospital da Salpêtrière (Rodrigué, 1995).

Poucos mencionam o curioso fato de que Pinel, após dirigir o Hospital de Bicêtre foi trabalhar no Hospital da Salpêtrière, esse mesmo que Charcot ingressaria muitos anos depois, na ocasião da divisão administrativa do hospital em dois setores: um para os alienados – denominação clássica dos psicóticos – e outro para epilépticos e histéricas (Roudinesco & Plon, 1998). Enquanto o setor dos alienados seguiu a tradição pineliana, Charcot foi nomeado diretor do outro setor, e impressionava Freud tanto pelo seu conhecimento sobre os fenômenos histéricos (sempre se apoiando nas evidências clínicas), mas principalmente pelas fantásticas apresentações públicas, nas quais produzia e desfazia sintomas histéricos em suas pacientes.

Divisão dos setores do hospital, mas práticas semelhantes: se do lado dos alienados, o interrogatório psiquiátrico buscava produzir no louco o reconhecimento de sua própria condição – e assim legitimar a custódia –, no caso da histeria, o médico literalmente produzia a doença. Ouçamos, a esse respeito, o psicanalista e biógrafo renomado de Freud, Emilio Rodrigué (1995):

Como ocorrera com a bruxa no Santo-Ofício, e o psicótico no asilo, a crise histérica passa agora a ser fabricada com grande regularidade nas apresentações clínicas da Salpêtrière. O objetivo da hipnose era o controle da situação. Através da sugestão hipnótica, o médico obtém um conjunto de sintomas bem definidos: a histeria, lembra Foucault, torna-se um produto do desejo do médico (p. 229).

Ao final, o trabalho de Charcot culminou com a “teoria do trauma” – parcialmente superando a situação que descrevemos –, pois introduzia a importância da

história na manifestação da doença: através de entrevistas, poder-se-ia identificar o

evento traumático responsável pelo desencadeamento da crise histérica. Com a inserção da história, mesmo que o referencial etiológico para Charcot permanecesse como orgânico e hereditário, dava-se um passo importante para permitir o surgimento da psicanálise.

No entanto, a inevitável constatação de que conteúdos sexuais sempre apareciam de modo central no discurso histérico, fez com que Freud fosse à busca da dimensão da sexualidade no sofrimento daquelas pacientes e, posteriormente, em tudo aquilo que constitui o sujeito. E nesse caminho, nem Charcot nem tampouco Josef Breuer acompanharam Freud, que empreendeu a construção da psicanálise de maneira solitária.

É interessante notar como a histeria teve um lugar social bastante semelhante ao da dita loucura em diversos momentos da história. Ao longo de séculos, a mulher tinha uma representação bem próxima da animalidade, em especial a histérica (Roudinesco & Plon, 1998), assim como o louco, desarazoado e bestial. O contexto pineliano deu a ambos os fenômenos o estatuto de doença mental, mas, como vimos, sem ainda oferecer-lhes voz e um digno cuidado terapêutico.

Foi somente com Freud que um novo lugar à histeria é oferecido, passando-se do modelo anátomo-patológico, em que o sintoma histérico representaria algum tipo de defeito no corpo orgânico, para uma compreensão positiva da histeria, em que haveria um sentido na história do sujeito para a formação de tais sintomas. A correspondência entre o sintoma e seu correlato anatômico e funcional, que Charcot buscava empreender, é superada em Freud através de uma nova compreensão do corpo: o corpo representado (Birman, 1991). O sujeito é capaz de representar no corpo as marcas traumáticas de sua história; sendo assim, não pode-se correlacionar o sintoma a uma certa disposição anatômica, já que seu sentido se encontra arraigado na história singular do sujeito.

Esse novo paradigma proposto por Freud, sem dúvida, promove um novo entendimento da clínica – primeiramente, no campo da histeria, mas depois estendido às outras neuroses e psicose –, o que definitivamente distanciará a psicanálise do modelo médico-psiquiátrico. Se, de um lado, este último trabalha sobretudo com a idéia de que o sintoma representa uma falha, a psicanálise opera o sintoma como uma forma de

Evidentemente, essa notável diferença irá produzir mudanças nas posições e posturas de terapeuta e paciente na psicanálise, em relação à clínica de Charcot, Pinel ou Bernheim (outro importante mestre para o jovem Freud, adepto incondicional da idéia de sugestionabilidade). O termo clínica foi preservado na psicanálise, mas, certamente, foi lhe dado um sentido absolutamente inédito e radicalmente distinto da passividade que o sentido etimológico evoca.

Não cabe aqui uma reflexão minuciosa sobre as características da clínica na psicanálise, em contraposição a outros modelos; no entanto, vale citar algumas das mudanças fundamentais propostas a partir de Freud, para identificarmos a especificidade da clínica psicanalítica.

Um primeiro ponto diz respeito à ênfase atribuída ao olhar e a escuta. No seu método clínico, Charcot trabalhava fundamentalmente com o olhar: tanto nos espetáculos visuais que oferecia com as histéricas da Saltpêtrière, como nas descrições clínicas que construía a cada caso, pautadas sobretudo no que era visto (Birman, 1991). O olhar, no dispositivo médico-psiquiátrico, possui até hoje um valor inestimável. Freud, por sua vez, construiu uma clínica da escuta. Com a associação livre, empregada no lugar da sugestão hipnótica, concede-se a palavra ao paciente, que pode falar tudo que lhe venha à cabeça, sem censurar-se e nem tampouco sofrer censura do analista. O próprio setting analítico é inicialmente construído privilegiando a palavra em detrimento do ver e ser visto: contato visual indireto, luz baixa, etc.

Evidentemente, nesse dispositivo onde a fala e a escuta são privilegiados, o paciente ocupa uma posição consideravelmente ativa, muito diferente do sujeito frente ao olhar médico.

Outra mudança fundamental postulada pela Psicanálise propõe a passagem da assepsia médica para o campo da transferência, ou seja, da objetividade para a inter- subjetividade. Ou, pode-se dizer ainda, a noção de transferência supera os limitados métodos empreendidos por seus imediatos precursores (e até pelo jovem Freud): o método sugestivo-hipnótico (Charcot e Bernheim) e o catártico (Breuer).

Enquanto que, na clínica fora do modelo psicanalítico, não exige-se a presença afetiva do terapeuta e do paciente – pelo contrário, frequentemente busca-se eliminar esse tipo de variável –, a transferência é condição sine qua non para o tratamento psicanalítico.

No percurso de Freud, a transferência foi ganhando significativa importância, chegando a se tornar, por excelência, a ferramenta mais importante no trabalho

analítico. São distintas as definições desse conceito, tanto em Freud quanto em seus principais sucessores. No entanto, desde sua formulação e adoção em detrimento da sugestão, a transferência nunca foi relegada a um segundo plano. Aqui, utilizaremos sua definição por Freud em A dinâmica da transferência (1912⁄1993), por nos parecer madura e consistente, ainda que não abarque ainda a transferência nas psicoses.

Todo ser humano realiza investimentos pulsionais, sobre os mais variados objetos, com vistas a obter satisfação. Parte desses investimentos consegue ser trabalhado pela parte consciente do aparelho psíquico, permitindo ao sujeito um relativo manejo dessas pulsões na realidade concreta. No entanto, uma parte considerável dessa energia permanece em estado inconsciente, sendo investida sobretudo no campo da

fantasia.

Quando a necessidade de amor do sujeito não está plenamente satisfeita pela realidade, o que ocorre na maior parte das vezes, os objetos colocados frente a ele serão investidos consciente e inconscientemente de expectativas, idealizações, desejos. Na situação clínica, o analista é evidentemente investido pelo paciente, e isso é a condição que poderá permitir a superação das resistências e uma possível transformação subjetiva do analisando. Quando não se estabelece algum tipo de transferência, seja ela de caráter amoroso ou hostil, não se pode fazer nada em análise – dirá Freud.

Claro que, quando o paciente empreende esse investimento ao analista, projetará nele figuras identificatórias importantes de sua vida – como imagos materna e paterna – o que permitirá recordar vivências primitivas, revivê-las com o analista e elaborá-las.

A técnica da transferência envolveria, evidentemente, um aprofundamento maior que não nos convém neste trabalho. No entanto, é fundamental ressaltar aquilo que Freud afirma e reafirma: “no es correcto que durante el psicoanálisis la trasferencia se presente más intensa y desenfrenada que fuera de él”3 (Freud, 1912⁄1993, p. 99). A transferência estaria plenamente presente em outros contextos e, dirá Freud, ela é vista com grande intensidade nas instituições de tratamento das doenças nervosas, só que, nesse contexto, ela não será trabalhada para além da sugestão. Portanto, a transferência corresponde a uma propriedade da neurose (e, em seguida, da psicose), e não do contexto psicanalítico estrito.

3

“Não é correto que durante a análise a transferência se apresente mais intensa e desenfreada do que fora dela”, em castelhano. Optamos, neste trabalho, pela tradução castelhana das obras de Freud, em

Nesse sentido, o trabalho com a transferência é uma marca do trabalho do psicanalista, que certamente o singulariza frente ao modelo institucional dominante, marcado fundamentalmente pelo paradigma médico-psiquiátrico. Não porque não haja transferência no contexto não-analítico, mas sim porque o psicanalista opta por trabalhá- la, seja qual contexto o for, ao contrário de outras linhas terapêuticas.

Outro grande mérito freudiano que merece ser citado corresponde ao apagamento das fronteiras entre normal e patológico, que se faziam tão nítidas no discurso psiquiátrico. Já em A interpretação dos sonhos (1900/1993), Freud identifica o sonho como um mecanismo análogo aos fenômenos presentes na neurose e na psicose: delírios, fobias, obsessões, etc. Nesse momento, Freud começa a constatar e postular que o aparelho psíquico é, em qualquer condição, palco de um intenso conflito de forças, e que através da ação da defesa ganha diferentes destinos e maneiras de expressão desse conflito. Em Psicopatologia da vida cotidiana (1901/1993), os sonhos, chistes, atos falhos e lapsos são entendidos finalmente como expressões desse conflito inconsciente e que, sendo assim, está absolutamente presente no psiquismo dos ditos “normais”.

As nuances entre, por exemplo, neurose, psicose e perversão, não devem estabelecer-se do ponto de vista classificativo, ou seja, buscando suas características independentemente da experiência clínica. É a relação analítica, e sobretudo a forma como se estabelece a transferência, que permitem estabelecer essas diferentes nuances. Segundo Birman (1989), na psicanálise “existiria menos uma preocupação nosográfica do que uma postura de escuta sustentando o desdobramento diferenciado dessas estruturas no plano inter-subjetivo” (p. 137). As diferentes organizações psíquicas, pode-se dizer, não ganham autonomia como uma doença em si, algo que poderia ser exteriorizado da clínica, pois dependem intrinsecamente da relação analítico- transferencial. Na psicanálise, não pode-se depreender essa doença e estabelecer sua

universalização, o que corresponde a uma importante característica do modelo

sintomatológico, como vimos.

Por fim, as noções de cura e doença em psicanálise também destoam das concepções secularmente assumidas pelo modelo médico. Enquanto que o médico objetiva extirpar a doença e, dessa maneira, reestabelecer a condição de saúde que a precedia, isso não é possível nem sequer almejado na relação analítica. Nesta, a condição anterior à doença é justamente aquilo que culminou na situação atual e

portanto não é o reestabelecimento a uma situação anterior que a análise propõe. Nas palavras de Mezan (2006):

A atividade psicanalítica se distingue de todo e qualquer projeto médico pela simples razão de que este visa à ‘restauração da saúde’, isto é, à eliminação dos fatores nocivos que desencadeiam uma doença, e o retorno ao statu quo ante. Nada mais distante do projeto analítico, em que a associação e a interpretação não podem ser reduzidas a restauração alguma, pois o statu quo ante conduziu justo à situação problemática em que se encontra o analisando (p. 160)

Para pensar o trabalho psicanalítico, evocamos novamente Joel Birman (1996), que pensa a clínica psicanalítica como uma estilística da existência. Grosso modo, o paciente em análise deve dar-se conta do desamparo que o percorre de fio à pavio (condição que denomina como feminilidade, ou seja, ausência de qualquer referência fálica), e frente a isso, criar um estilo para si, uma maneira singular de existir no mundo. Essa idéia representa, certamente, um contraponto à noção de cura vigente no pensamento médico-psiquiátrico.

Por tudo o que pincelamos até agora a respeito da clínica psicanalítica – especialmente na sua relação com o discurso médico-psiquiátrico –, não seria um exagero afirmar que a psicanálise representou, na virada do século XIX ao XX, um forte contraponto ao discurso cientificista e ao homem da razão do Iluminismo; para tanto, Freud precisou reverter significativamente a lógica psiquiátrica, que estava muito mais identificada ao projeto racional da modernidade.

A própria expulsão da loucura do universo da razão, sendo reduzida à condição de falha e não de verdade (como opera a psicanálise), permite a nós compreender o lugar social que ocuparam psiquiatria e psicanálise: a primeira, um dispositivo que fez valer sobretudo o racionalismo, e a segunda uma abertura para o campo da desrazão, deslocando o sujeito para o campo do inconsciente e do pulsional, apostando na loucura como uma forma de verdade e sendo a clínica um dispositivo de escuta e de articulação dessa verdade, na tentativa de produzir um sentido.

Pois bem, passaremos agora a discutir a especificidade da clínica psicanalítica no campo das psicoses, sintetizando algumas das contribuições freudianas e pós- freudianas.

Como sabemos, Freud nunca exerceu a clínica com pacientes psicóticos. Em certos momentos, chegou até a afirmar que esses pacientes não se beneficiariam pelo

método psicanalítico, pois não poderiam desenvolver a neurose de transferência necessária ao processo, permanecendo sua libido investida no próprio eu.

Ao mesmo tempo, desde o início de sua produção, Freud indicava que não era somente nas neuroses que havia um saber do sujeito sobre si próprio, portanto o sintoma não seria algo a ser extirpado e sim decifrado, mas também nas psicoses havia um saber, uma verdade. Os delírios – assim como sonhos, lapsos, atos falhos, chistes ou conversões histéricas – não seriam aberrações desprovidas de significação, mas justamente a expressão dessa verdade do sujeito, que poderia ser alcançada através da relação transferencial (Birman, 2001).

Portanto, quase paradoxalmente, a construção freudiana foi progressivamente permitindo uma nova escuta do psicótico, bem distinta daquela empreendida pela psiquiatria – isso porque, como afirmamos, os pressupostos psicanalíticos implicavam em uma abertura para a desrazão, e sendo assim, nada mais expoente da desrazão que a própria experiência da loucura.

O texto freudiano Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia

(dementia paranoides) descrito autobiográficamente (1911⁄1993), mais conhecido

como “O caso Schreber”, foi o marco de entrada definitivo da Psicanálise no campo das psicoses – ainda que as condições para tal alcance já vinham sendo assentadas nos anos anteriores.

Não à toa, o texto não foi bem recebido pela psiquiatria da época, pois a principal idéia proposta ali por Freud é a de que o delírio é uma tentativa de cura (e aqui cura não é colocada no sentido médico, como vimos); na acepção psiquiátrica, o delírio seria por excelência o representante da condição patológica do sujeito, sua inadequação absoluta à ordem racional. Para Freud, o trabalho delirante permitiu que o quadro de Schreber se estabilizasse, podendo assim sair de uma internação de nove anos, retornar ao convívio social e retomar suas tarefas de vida.

Schreber passou por uma primeira crise, e foi internado na clínica do Dr. Flechsig durante seis meses, aparentemente com um quadro de intensa hipocondria. Retomou suas atividades e, pouco tempo depois de ser nomeado presidente do Superior Tribunal, teve sua crise mais aguda, com seguidas tentativas de suicídio, agressões ao médico (que seria para ele um “assassino de almas”), pensamento confuso, enfim, um verdadeiro doente dos nervos, como se definia (Freud, 1911⁄1993).

Tempos depois, já na clínica do Dr. Weber, Schreber passou a apresentar mudanças subjetivas significativas: demonstrava interesse pelos fenômenos da ciência e

cultura, tinha idéias e pensamentos ricos, coerentes e lineares, com boa memória e lógica de raciocínio. Não obstante, na descrição de Weber, tinha um núcleo patológico fixado, que não condizia com a realidade objetiva, que era um delírio paranóico complexo e que formava um sistema completo (Freud, 1911/1993).

Para Freud, esse delírio complexo e articulado que Schreber desenvolveu foi o que o permitiu curar-se, ou melhor, voltar a viver no mundo de maneira possível. Antes, o jurista pensava que era seu médico (Fleschig) que tentava transformá-lo em mulher, o que o aterrorizava; com o delírio plenamente construído, essa tentativa era obra de Deus, proveniente do plano divino, e dessa maneira lhe seria possível viver no plano mundano. Segundo Tenório (2001), “foi o trabalho continuado de elaboração delirante que modificou o que antes era uma maldade perpetrada contra ele em uma iniciativa divina, harmônica com a ordem das coisas e com seu bem-estar pessoal” (p. 82).

Poderíamos ir longe em Schreber, o que não caberia exatamente às intenções de nossa pesquisa. No entanto, parece-nos precioso destacar que, mesmo Schreber tendo conseguido articular uma maneira de estar no mundo satisfatoriamente, seu médico, a esse tempo, resistiu imensamente à conceder-lhe a alta, em função do delírio que apresentava – mesmo que esse não prejudicasse seu lugar no convívio social. O pensamento do Dr. Weber, pode-se dizer, traduz um pensamento da psiquiatria daquele contexto, em que esse núcleo delirante consistia em algo da ordem do patológico e que, dessa maneira, deveria ser extirpado.

Extirpar esse delírio seria destituir qualquer possibilidade de estar no mundo para Schreber, mas seria muito difícil para essa psiquiatria reconhecer essa faceta

positiva do delírio que, mesmo incoerente com a razão objetiva, tinha uma função

restauradora para o sujeito que é por ele acometido.

O não-reconhecimento desse movimento curativo do delírio pela psiquiatria estaria, segundo Birman (2001), baseado no próprio discurso científico pelo qual ela se fundamenta. Qualquer produção que não possa ser reconhecida e compartilhada universalmente, no paradigma racionalista, representaria uma antiverdade, como, por exemplo, um delírio.

De volta ao mundo, Schreber conseguiu a publicação de suas memórias, defendendo-as de maneira estupenda frente à ordem judicial, e sempre reconhecendo a existência de seu delírio.

Na psicanálise, o delírio, portanto, ocupará um lugar muito distinto do modelo médico-psiquiátrico, podendo ser um movimento restaurador do sujeito e de sua

possibilidade de estar no mundo, por mais que não tenha qualquer sentido aparente à luz da razão. Não se trata de acreditar piamente no delírio, como se de fato Schreber fosse ser transformado em mulher por Deus, mas sim em apostar que isso representa uma verdade singular daquele sujeito, uma construção dele sobre si que lhe permite enlaçar- se no social, enfim, realizar uma obra, enquanto a Psiquiatria tenderia a identificar esse gesto com o que Foucault denominou ausência de obra (Foucault, 1972/2007).

Não só na paranóia de Schreber, mas também na esquizofrenia (e, como vimos, em qualquer sintoma neurótico), a equação do sintoma como forma de verdade a ser

decifrada segue valendo. Mesmo o delírio esquizofrênico sendo estilhaçado, totalmente

invadido pelo horror do Real e muitas vezes assustador para nós que o escutamos, é portador de verdade e sentido; assim, caberá ao analista suportar esse caos, escutar e ajudar o paciente a decifrar esse tal sentido, absolutamente singularizado na história desse sujeito.

Portanto, observamos que o sintoma no discurso psiquiátrico é compreendido sobretudo como doença, como uma anomalia no corpo, à ser extirpada ou reduzida. Nesse sentido, a fala do paciente é examinada à luz dos critérios de verdade ou erro, ou seja, se o que diz possui correspondência com a realidade externa, ou se destoa dela (Birman, 1991). No campo da loucura, essa posição se radicaliza: frequentemente o profissional de saúde mental tenta convencer o paciente dessa incongruência entre seu pensamento e a realidade objetiva. Isso é coisa da sua cabeça, dizia uma das terapeutas à meu paciente de Acompanhamento Terapêutico na ocasião daquela internação,

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