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ENTRE A CLÍNICA DA SINGULARIDADE E O TRABALHO MULTIDISCIPLINAR

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BRUNO ESPÓSITO

A PSICANÁLISE NOS CENTROS DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL

ENTRE A CLÍNICA DA SINGULARIDADE E O TRABALHO

MULTIDISCIPLINAR

Pontifícia Universidade Católica

São Paulo

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BRUNO ESPÓSITO

A PSICANÁLISE NOS CENTROS DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL

ENTRE A CLÍNICA DA SINGULARIDADE E O TRABALHO

MULTIDISCIPLINAR

Trabalho de conclusão de curso como exigência parcial para graduação no curso de Psicologia, sob orientação da Profª. Maria Claudia Tedeschi Vieira

Pontifícia Universidade Católica

São Paulo

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Supervisor e Parecerista

___________________________

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AGRADECIMENTOS

À minha família, por suportar as oscilações de humor que qualquer trabalho acadêmico provoca no pesquisador, e em especial à Silvia Leonor Alonso, pela leitura atenta do trabalho;

À colônia argentina radicada em São Paulo, muitos deles psicanalistas, representando minha família estendida;

À Regina Célia Chu Cavalcanti (CHÚ) e aos colegas que me acompanharam na monitoria, com os quais aprendi muito sobre esse universo que é a psicanálise;

À Helena, Renato e Tomás, pela recente mas já feliz parceria no Acompanhamento Terapêutico, e ao nosso ótimo supervisor, Maurício Porto;

Às professoras do Núcleo de Crise, por me transmitirem ensinamentos de uma clínica

das e nas instituições: Felicia, Cris, Bel, Kátia e Ida;

Ao pessoal do Núcleo de Psicose, parceiros de árduas batalhas;

À Camila Pedral Sampaio, por ter me ensinado pacientemente como se pesquisa em psicanálise;

A todos os amigos da faculdade com quem compartilhei importantes momentos da minha formação;

À Maria Claudia Tedeschi Vieira, pela orientação paciente e atenciosa deste trabalho;

À Elisa Zaneratto Rosa, que apostou na validade de minhas idéias no início do trabalho, enquanto elas ainda eram esparsas e confusas;

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Bruno Espósito: A psicanálise nos Centros de Atenção Psicossocial, entre a clínica da singularidade e o trabalho multidisciplinar, 2008

Orientador: Profª. Maria Claudia Tedeschi Vieira

Palavras-chave: Centros de Atenção Psicossocial; Psicanálise; Reforma Psiquiátrica. Área de conhecimento: 7.07.09.01-7 - Análise Institucional

RESUMO

Esta pesquisa teve como principal objetivo a investigação do trabalho psicanalítico no cotidiano de diferentes Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), em São Paulo, na visão de diferentes analistas. Buscou-se compreender como a psicanálise é utilizada como ferramenta, como se articula com os outros saberes e quais as vicissitudes do trabalho analítico nesse âmbito institucional.

Parte-se da constatação de que existem múltiplas entradas da psicanálise no âmbito da saúde mental, nem sempre convergentes, e de que não há consenso sobre seu lugar nos serviços substitutivos criados no âmbito da reforma psiquiátrica – tal como o CAPS. Dessa maneira, abre-se a possibilidade de pesquisar quais são as marcas da psicanálise que podem ou não contribuir nessa clínica, e quais são as características do ofício analítico no dia-a-dia dessas instituições.

A primeira etapa da pesquisa retoma a história da reforma, no contraponto às instituições psiquiátricas tradicionais, e em seguida discute-se as concepções de clínica nos modelos psiquiátrico, psicanalítico e da atenção psicossocial. Mais adiante, nos aproximamos do cotidiano dos serviços através de entrevistas semi-dirigidas à três psicanalistas com inserções distintas no CAPS: uma delas concursada como psicóloga e supervisora, outra diretora de uma unidade e uma terceira na função de supervisora clínico-institucional.

Discute-se que a psicanálise pode prestar-se tanto à intervenção junto aos pacientes, como à própria análise da equipe e instituição, pois não é o setting que delimita sua utilização, mas sim uma construção singular das intervenções precedida de uma postura de escuta – em que o analista despoja-se do seu saber para poder escutar.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 1

I.O ENCONTRO COM A LOUCURA COMO CONTEXTO 1 II.PRIMEIRAS CONCEITUAÇÕES NECESSÁRIAS 2 III.A PSICANÁLISE NA HISTÓRIA DA REFORMA PSIQUIÁTRICA 3

METODOLOGIA 7

CAPÍTULO 1 – DA CONSTITUIÇÃO DA PSIQUIATRIA AO PROCESSO DE

REFORMA PSIQUIÁTRICA 9

I.DA “GRANDE INTERNAÇÃO” À PSIQUIATRIA COMO “SOLUÇÃO” 9

II.APSICOTERAPIA INSTITUCIONAL FRANCESA 13

III.AANTIPSIQUIATRIA INGLESA 15

IV.APSIQUIATRIA DEMOCRÁTICA ITALIANA 16

V.AREFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA 18

CAPÍTULO II - A CLÍNICA NOS DIFERENTES MODELOS 22

I.A ASSISTÊNCIA PSIQUIÁTRICA TRADICIONAL: DO TRATAMENTO MORAL AO

SINTOMATOLÓGICO 22

II.O MODELO PSICANALÍTICO 30

III.A ATENÇÃO PSICOSSOCIAL 42

DISCUSSÃO 50

I.COM A PALAVRA: AS ENTREVISTADAS 50

II.ARTICULANDO AS FALAS E RETOMANDO O PROBLEMA DE PESQUISA 60

CONCLUSÃO 72

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 75

ANEXOS

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INTRODUÇÃO

I. O encontro com a loucura como contexto

A formação em Psicologia nos coloca frente ao enigma da loucura em dado momento, e não só através de abstrações a seu respeito – científicas, literárias, filosóficas –, mas principalmente pelo encontro real com sujeitos em condições de extremo sofrimento, condições que nos impactam tremendamente.

Certamente, o tamanho desse impacto não é imune à própria relação que nossa cultura secularmente estabelece com a loucura, da qual nos separamos radicalmente, a evitamos e não nos reconhecemos minimamente nela. Além disso, os próprios lugares que lhe designamos nessa separação – destacando-se os hospitais psiquiátricos – a associam aos limites da condição humana, como a violência, a sujeira e a ausência de qualquer projeto de vida.

Não obstante, outros modelos de assistência psiquiátrica vem surgindo nas últimas décadas, pautados sobretudo no paradigma da reforma psiquiátrica e na militância da luta antimanicomial. Se, por um lado, as novas formas de pensar o tratamento e os novos serviços constituídos esbarram em milhares de dificuldades – algo compreensível, já que propõem modificar uma lógica secular –, por outro existem incontáveis experiências de êxito, em que é possível diminuir os índices de sofrimento, apagar o hiato entre a loucura e “normalidade” e almejar novos destinos para aqueles que sofrem intensamente.

Muitos de nós compartilhamos dessa visão e vamos construindo nossa atuação, como profissionais da saúde mental, nesse novo paradigma. Aliás, parte desta pesquisa abordará necessariamente o debate em torno desses diferentes modelos de atenção, do modelo psiquiátrico tradicional à reforma psiquiátrica. Mas vejamos isto como pano de fundo, como um contexto mais amplo que sustenta uma questão mais específica sobre a qual nos debruçaremos.

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Da mesma maneira, a psicanálise – como um dos saberes sobre a saúde mental – certamente foi e será convocada por outros saberes à participar desse debate em torno dos diferentes modelos de assistência, bem como da construção de novos, e a partir daí poderá se estabelecer tanto um diálogo em tom amistoso e de ajuda mútua como em tom ríspido e de discórdia.

Ao entrar em contato com a literatura referente ao tema, percebi como esse campo de relações entre psicanálise e reforma psiquiátrica é, ao mesmo tempo, rico, polêmico e desafiador. Existem inúmeras possibilidades de abordá-lo, diferentes posições políticas e complexos debates, tanto no âmbito teórico-epistemológico, como no cotidiano e nas práticas dos trabalhadores da saúde mental.

II. Primeiras conceituações necessárias

Como entendemos a reforma psiquiátrica, a psicanálise e o campo de encontro entre ambos?

De maneira bastante sucinta, podemos dizer que a reforma psiquiátrica caracteriza-se por um processo contínuo de questionamento e transformação do modelo asilar de tutela e tratamento do louco, empreendido pelo modelo psiquiátrico tradicional (Amarante, 2003). Esse processo envolveria não só a destituição do manicômio e seus derivados, construindo locais de atendimentos mais humanizados em seu lugar, mas também uma crítica rigorosa aos fundamentos técnicos, epistemológicos, políticos, jurídicos e etc., que sustentam a lógica de exclusão da loucura e seu estatuto de “doença mental”.

Como aponta Tenório (2001), “a reforma psiquiátrica é a tentativa de dar à loucura uma outra resposta social” (p. 20), radicalmente diferente da proposta psiquiátrica hegemônica desde fins do século XVIII, marcada pela exclusão, pelo estigma e por sua visão negativa em relação ao louco.

Para empreender essa tarefa, a reforma psiquiátrica busca trabalhar em diversas frentes e através de diversos saberes. Procura-se transformar as leis, os paradigmas científicos, a organização dos serviços, as práticas clínicas, etc., para que seja possível estabelecer uma nova relação com a loucura e designá-la um novo lugar social.

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tratamento e cura (inicialmente proposto para as neuroses, depois incluindo a psicose). Por sua proposta, a psicanálise construiu um saber sobre a loucura.

O marco inicial das proposições psicanalíticas acerca da psicose está, possivelmente, no caso Schreber, em que Freud lê as memórias do jurista Daniel Schreber à luz da psicanálise (Freud, 1911/1993). Joel Birman aponta que é nesse momento da obra freudiana que se estabelece uma diferença radical entre a proposta e a clínica psicanalítica da psiquiátrica, pois o delírio, expressão maior da loucura, passa a ser entendido na sua positividade, ou seja: como uma tentativa de cura (Birman, 2007, p. 16), em contraposição à negatividade do sintoma atribuída pela psiquiatria.

Ainda assim, foi somente através dos sucessores de Freud que a psicose passou a ser tratada clinicamente pela psicanálise. Nesse sentido ressalta-se o trabalho de analistas como Ferenczi, Klein, Winnicott e Lacan (Birman, 2007). A partir desse momento, abria-se terreno para os analistas entrarem e atuarem nas instituições, imprimindo a marca que lhes é específica. Nesse sentido, desde as primeiras experiências ditas antipsiquiátricas até a estruturação da reforma como movimento, constrói-se uma inevitável história de diálogos com a psicanálise – seja ele amistoso ou não, como dissemos.

III. A psicanálise na história da reforma psiquiátrica

Podemos observar que, desde as primeiras experiências questionadoras em psiquiatria, o diálogo com a psicanálise já estava dado. Já durante a segunda guerra mundial, François Tosquelles, psiquiatra catalão e precursor da psicoterapia institucional francesa1, chegou ao hospital de Saint-Alban com a tese de doutorado de Jacques Lacan debaixo de seus braços (Moura, 2003), e já demonstrava grande afinidade com a produção psicanalítica sobre as psicoses.

Seus sucessores Jean Oury e Félix Guattari, protagonistas da experiência de La Borde, tinham formação psicanalítica e se utilizavam desse referencial para trabalhar o cotidiano institucional. No entanto, não se tratava de uma aplicação pura da psicanálise à instituição, e sim um trabalho sobre os conceitos assumindo suas especificidades no contexto grupal e institucional. Ambos têm artigos intitulados “A transferência” (Guattari, 2004; Oury, 1988/1989). Tanto um quanto o outro propõem novas direções

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para o conceito: Guattari, em seu texto, busca trabalhar a transferência como fenômeno grupal; Oury contrapõe a transferência entendida como dual à transferência dissociada, reconhecendo que o psicótico constitui vínculos esparsos com pessoas, objeto, instituição (Oury, 1988/1989).

Além da psicoterapia institucional francesa, outros movimentos de reforma levados a cabo tinham clara inspiração psicanalítica, ainda que não fizessem referência tão direta quanto o processo francês. Podemos citar, por exemplo, as comunidades terapêuticas britânicas e a psiquiatria preventiva e comunitária norte-americana (Birman, 2001).

Por outro lado, a experiência italiana levada a cabo a partir dos anos 60/70 não possuía qualquer referencial psicanalítico; ainda assim, os italianos não se esquivavam do debate com os analistas. A psicanálise é comumente entendida pelo movimento como uma psicoterapia de cunho individual e que reproduz a lógica excludente da psiquiatria (Rotelli, 1987). Os psicanalistas, por sua vez, habitualmente justificam essas críticas pelo fato de a psicanálise na Itália, assim como em outros lugares, ter caminhado no sentido de uma psiquiatrização, distante do projeto freudiano inicial (Roudinesco, 1992). A despeito dessa polêmica específica, a desinstitucionalização

italiana é referência fundamental para a reforma psiquiátrica hoje, sendo suas contribuições absolutamente indispensáveis ao campo.

Também no âmbito teórico, o debate não oferece uma resolução fácil, muito pelo contrário. Se entendermos que o livro História da loucura na idade clássica

(Foucault, 1972/2007) representa a crítica mais coerente e sistemática sobre a constituição do saber psiquiátrico e a construção dos espaços asilares, não conseguimos obter do autor a mesma sistematização no que diz respeito à psicanálise. O autor faz a ela poucas menções e, quando faz, entende-a como uma abertura à loucura em determinados momentos, e como um novo encerre em outros. O filósofo e psicanalista Jacques Derrida aponta que Freud e a psicanálise seriam, para Foucault, como uma espécie de dobradiça em relação ao saber sobre a loucura: poderiam abrir/fechar, dominar/liberar e excluir/incluir (Derrida, 1992).

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marcado na tradição italiana, sendo a psicanálise uma teoria com a qual se tomava cuidado (ainda que alguns psicanalistas tenham participado da intervenção). Por outro lado, o primeiro Centro de Atenção Psicossocial do país (CAPS Luiz da Rocha Cerqueira) era coordenado pelo psicanalista Jairo Goldberg e funcionava sob extrema influência do referencial psicanalítico e da psicoterapia institucional.

Como vimos nesse panorama, não há consenso sobre o lugar do analista na reforma psiquiátrica e nos serviços que dela derivam. Não há um lugar dado; a história é marcada por encontros e desencontros, afinidades e diferenças. As influências provenientes da França, de maneira geral, valorizam a presença da psicanálise no trabalho institucional; pode-se dizer, até, que é a partir da psicanálise que se efetuam importantes reflexões e transformações das instituições asilares. Já a tradição italiana tende a buscar meios diferentes de “reformar” a saúde mental e que não se pautam pela psicanálise.

Afirmamos também que nosso país construiu sua reforma desde as variadas tradições, produzindo pensamentos mas também modelos de serviços bastante variados entre si. A discussão sobre a clínica na reforma psiquiátrica abrange uma variedade enorme de posições, desde o não lugar da clínica (Saraceno, 2001), até a necessidade imprescindível de uma clínica reformada (Amarante, 2003).2

Dado esse estado de coisas, ou seja, de uma reforma psiquiátrica que não atribuiu um lugar definido à psicanálise ao longo da história, como se dará o debate na atualidade? Pois, se não há um lugar definido aos analistas, não podemos escapar à constatação de que os serviços substitutivos estão repletos de profissionais com formação psicanalítica. Como será que esses analistas inseridos no cotidiano dos serviços pensam a sua prática?

Tomando os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) como um dos principais serviços propostos pelo modelo da reforma psiquiátrica (Amarante, 2007), e a cidade de São Paulo enquanto um espaço presentificador desse debate, trataremos nessa pesquisa de investigar como alguns dos psicanalistas desses serviços justificam a presença da psicanálise, como ela contribui para sua atuação (se é que contribui) e de que maneira isso se dá no trabalho do dia-a-dia.

Pretendemos ouvir alguns dos analistas através de entrevistas, tendo como eixo as questões suscitadas acima. Dado o fato que esses profissionais exercem diferentes

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funções (alguns são terapeutas contratados, outros são coordenadores dos serviços, outros são chamados como analistas institucionais, etc.), buscaremos abarcar esses diferentes olhares.

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METODOLOGIA

O primeiro capítulo desta pesquisa ocupa-se de uma revisão histórica da reforma psiquiátrica, no seu diálogo com o modelo tradicional de assistência. Retomaremos brevemente o contexto e o sentido das experiências mais importantes de questionamento da ordem psiquiátrica e a implementação de novos modelos de cuidado, desde a psicoterapia institucional francesa à psiquiatria democrática italiana.

Lançaremos um olhar específico ao processo brasileiro, entendendo que os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) – que enfocaremos nesta pesquisa – emergem em função de um contexto que deve ser localizado.

No segundo capítulo, daremos uma mirada especial ao debate acerca da clínica, por representar o ponto de maior debate entre a psicanálise e a reforma psiquiátrica. Veremos brevemente como é a clínica na alvorada da psiquiatria, o modelo sintomatológico que o sucede, a clínica psicanalítica e, por fim, a proposta de clínica na reforma psiquiátrica.

Munidos dessa discussão teórica, estaremos aptos a entrevistar os psicanalistas. Como se darão esses encontros? Elegemos três profissionais que possuem, simultaneamente, formação psicanalítica e vínculos profissionais com algum Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) em São Paulo.

Para abranger diversos aspectos envolvidos no cotidiano do trabalho em CAPS, optamos por escolher profissionais que exerçam funções diferentes: um psicanalista que seja contratado como psicólogo no CAPS, um psicanalista que esteja ocupando a função de coordenador do serviço e um psicanalista que trabalhe como supervisor clínico-institucional, convocado pela própria equipe do CAPS.

A entrevista seguirá o modelo de entrevistas semi-dirigida, ou seja: teremos algumas questões de referência que buscaremos responder, no entanto, permitiremos ao entrevistado que siga o seu caminho para dar a resposta, podendo levar-nos a informações não esperadas previamente. As questões de referência serão basicamente:

● no que sua formação psicanalítica contribui (se é que contribui) para sua atuação?

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● na sua percepção, a reforma psiquiátrica e os desafios cotidianos do CAPS exigem que a psicanálise se transforme em algum sentido? Como seriam essas transformações?

● o que significa, para você, ser psicanalista em um CAPS?

Realizaremos essas entrevistas na casa ou no consultório do entrevistado, desde que não haja qualquer interferência significativa durante o processo. A entrevista terá tempo previsto de quarenta e cinco minutos à uma hora e meia. Utilizaremos um gravador para coletar o material.

A partir do produto dessas entrevistas, poderemos realizar o capítulo da discussão, primeiro retomando as falas dos entrevistados que correspondem ao nosso tema e, em seguida, articulando-as entre si e com o contexto teorizado nos capítulos antecedentes. Nesse momento, caberá retomar algumas das questões das quais partimos nesta pesquisa.

Por fim, o capítulo final discutirá resultados obtidos a partir da discussão, levantando os aspectos em que pudemos avançar e as novas questões que podem surgir.

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CAPÍTULO 1 – DA CONSTITUIÇÃO DA PSIQUIATRIA AO

PROCESSO DE REFORMA PSIQUIÁTRICA

Nosso país vive uma transformação significativa na atenção à saúde mental, reconfigurando saberes, lógicas e equipamentos, que se iniciou no período de redemocratização. As mudanças são intensamente influenciadas por experiências estrangeiras, sobretudo européias, que ocorreram a partir dos anos 1950.

A transformação que presenciamos na concepção de loucura, e nos modelos de tratamento que a ela se oferecem, caracterizam-se fundamentalmente pela ruptura com o modelo psiquiátrico tradicional. Certos componentes históricos haviam estabelecido a psiquiatria, do século XVIII à meados do século XX, como saber e prática de referência em relação à loucura.

Para compreender o sentido das transformações radicais que presenciamos recentemente no campo da saúde mental, é necessário revisitar brevemente as condições históricas que proporcionam o surgimento da psiquiatria, e a consolidação de seu lugar exclusivo no trato ao louco.

I. Da “Grande Internação” à Psiquiatria como “solução”

No ano de 1656, a criação do Hospital Geral de Paris representou o início do período da Grande Internação, como o denominou o filósofo Michel Foucault (1972/2007), fundando uma organização asilar que se consolidou em toda a Europa e colônias. Os hospitais, a partir desse período, deixaram de ser instituições de caridade, como o eram anteriormente – o próprio termo hospital remete à “hospedagem, hospedaria, hospitalidade” (Amarante, 2007, p. 22) – e passaram a abrigar segmentos da população que eram sistematicamente excluídos. Essa exclusão era decidida fundamentalmente pelo poder real, auxiliado pelos poderes judiciário e familiar.

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de então – para abrigar e tratar os desatinados, na tentativa de devolver-lhes sua capacidade normativa.

Se anteriormente era permitido ao artesão organizar o ritmo e a forma de seu próprio trabalho, esta condição lhe foi expropriada quando se dirigiu às fábricas na economia burguesa. A divisão do trabalho, com o desconhecimento sobre o todo do processo produtivo e a adequação a um regime disciplinar no lugar da autodisciplinarização, exigiram uma nova postura dos sujeitos. E, nesse sentido, “aqueles que não conseguem tomar parte na produção, na circulação ou no acúmulo de riquezas serão os desviantes. E para estes [re]criam-se em toda a Europa os estabelecimentos de internação” (Berger, Morettin e Braga Neto, 1991, p. 19).

Simultaneamente, através de René Descartes (1596-1650), dividia-se no plano filosófico razão e desrazão. Até então, tinham sido muitas as representações que a loucura ocupou em relação à razão – exaltada em alguns momentos e depreciada em outros –, mas foi somente através de Descartes que razão e desrazão se separam radicalmente, com o cogito excluindo a dúvida e consolidando o ser da razão como o único capaz de alcançar o verdadeiro conhecimento (Foucault, 1972/2007).

O século XVII, portanto, assistiu simultaneamente e pela primeira vez a exclusão da loucura, seja no plano filosófico com o racionalismo, ou na organização das cidades com o asilamento dos loucos (junto a outras classes de indivíduos que não respondiam ao imperativo da produtividade). Nas palavras de Pelbart (1991),

no mesmo século em que se decidiu pela primeira vez na história do Ocidente europeu enclausurar de forma sistemática os desatinados, ao invés de deixá-los vagando nos campos ou à deriva dos mares e rios, como se fazia na Renascença, no mesmo século XVII um pensador francês de nome Descartes considerado hoje o fundador do moderno racionalismo, decretava a incompatibilidade entre a loucura e pensamento. Enquanto a cidade trancafiava os desarrazoados, o pensamento racional trancafiava a desrazão. (p. 135)

A partir do século XVII, portanto, conseguiu-se certo equilíbrio que permitia o desenvolvimento da vida nas cidades, agenciado pelo poder absolutista: as autoridades reais, com o auxílio dos poderes familiar e judiciário, exerciam poder através de recursos como a internação de segmentos marginais da população.

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criminosos, a ordem jurídica/criminológica era suficientemente decisiva e competente, o louco bambeava em frágeis acordos entre os poderes real, judiciário e familiar. O sociólogo Robert Castel demonstra minuciosamente como os poderes raramente estavam afinados entre si no que se relaciona à loucura. Períodos de tensão de forças e de prevalência de um poder sobre os outros ocorreram frequentemente nessa era da Grande Internação (Castel, 1978).

Já no final do século XVIII e início do século XIX, este desequilíbrio não mais se manteve e pôde ser resolvido de uma nova maneira, justamente com o advento da psiquiatria, bem como os manicômios, lugar asilar restrito particularmente ao louco. Inventou-se, pela primeira vez, “um dispositivo completo de ajuda com a invenção de um novo espaço, o asilo, a criação de um primeiro corpo de médico-funcionários, a constituição de um ‘saber especial’, etc.” (Castel, 1978, p. 21-2). O surgimento da psiquiatria, cujas condições veremos a seguir, permitirá uma nova gestão social sobre o louco, através de um saber e um lugar específico. No entanto, a marca da exclusão que caracterizava não só o doente mental, mas todos os desviantes da moral burguesa, agora lhe corresponderá quase que exclusivamente – sob a justificativa científica médica.

Para compreender o advento da psiquiatria, deve-se salientar o peso fundamental que as revoluções industrial, americana e francesa tiveram para permitir o surgimento dessa ciência, em especial a terceira delas. O lema “Igualdade, Liberdade e Fraternidade”, por si só, proporcionou a libertação de diversos reclusos, cujas internações atrelavam-se claramente ao Antigo Regime. Instituições assistenciais foram sendo criadas para dar conta desse contingente, como orfanatos, casas de correção e reformatórios (Amarante, 2007).

No entanto, os hospitais permaneceram como espaço de permanência para certa parte da população, para a qual não lhe foi designada um novo lugar, em especial enfermos e loucos (que em seguida serão entendidos também como doentes mentais). Foi nesse contexto que o hospital se tornou efetivamente uma instituição médica, pois, com a necessidade de transformar o caráter escancaradamente excludente do hospital, convencionou-se humanizá-lo através da medicina.

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sujeito, é um dos principais alvos de transformação propostos pela reforma psiquiátrica, em especial a de tradição italiana. Há uma frase de Franco Basaglia, principal ator da Psiquiatria Democrática, que sintetiza muito bem essa crítica:

o mal obscuro da psiquiatria está em ter separado um objeto fictício, a doença, da existência complexa e concreta do paciente e do corpo social; sobre esta separação artificial se construiu um conjunto de aparatos legislativos científicos, administrativos, de códigos de referência cultural, de relações de poder, todos referidos à doença (Basaglia, 1975, apud Nicácio, 1989, p.16)

Cabe agora compreendermos como se estabeleceu a especificidade da psiquiatria em relação ao saber médico, com a construção de um espaço asilar específico, bem como os tratamentos empreendidos.

Philippe Pinel (1745-1826) é considerado por muitos o pai da Psiquiatria. Pinel era médico, mas, paralelamente, participou ativamente na implementação dos ideais da Revolução Francesa. No ano de 1793, foi convocado a coordenar parte do Hospital Geral que mencionamos anteriormente, aproximando-se do trabalho com a loucura (Amarante, 2007).

Sua compreensão filosófica acerca da razão-desrazão diferenciava-se da proposta cartesiana. Ao contrário da separação radical entre ambas, Pinel sugeria que, na alienação mental - conceito que utilizava – havia sempre algo que se preservara um

locus de razão na loucura (Tenório, 2001). Essa idéia ajudou a propor um certo tratamento para os alienados, com vistas a reestabelecer e fortalecer a parte racional que lhes restava.

A clínica realizada a partir de Pinel, e que deixa resquícios até os dias de hoje, pauta-se no tratamento moral. Para empreender tal tratamento, o isolamento é novamente condição imprescindível. Isso asseguraria um certo êxito na observação, diagnóstico e, especialmente, na disciplinariedade da instituição: a ordem e a obediência seriam fundamentais “para que a mente desregrada pudesse novamente encontrar seus objetivos e verdadeiras emoções e pensamentos” (Amarante, 2007, p. 31). As práticas de tratamento moral eram por vezes criativas, mas excessivamente normativas e, em geral, violentas. A fundamentação alienista quebrou o estigma anterior de controle social da loucura, resolvendo a questão desde a “Grande Internação”, mas perpetuou simultaneamente a violência e a exclusão, sustentadas pelo saber médico.

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que desacorrentou os loucos e ofereceu-lhes um certo tratamento, era essencialmente paradoxal. “Que estranha instituição seria essa que seqüestrava e aprisionava aqueles aos quais pretendia libertar?”, pergunta Paulo Amarante (Amarante, 2007, p. 37).

Em 1838, aprovou-se na França a lei que ordenou a criação dos hospitais psiquiátricos (Castel, 1978), consolidando o modelo psiquiátrico e institucionalizante. Esse paradigma reproduziu-se de maneira razoavelmente estável em países europeus e suas colônias, com experiências questionadoras somente a partir do último século; certas situações lastimáveis, como a inevitável semelhança entre os manicômios e os campos de concentração, além da percepção do paradoxo no “gesto pineliano”, auxiliaram a humanidade a abrir os olhos para a situação e ensaiar transformações.

A seguir, discutiremos as experiências de transformação mais importantes, começando pela própria França.

II. A Psicoterapia Institucional francesa

Na França, algumas experiências como a de François Tosquelles – psiquiatra catalão – no hospital psiquiátrico francês de Saint-Alban, mostraram que o que se passa nos ambientes de tratamento tem efeito significativo sobre os sujeitos que lá estão inseridos. Durante a segunda guerra mundial, esse hospital acabou perdendo seu caráter de clausura, tanto por abrigar alguns exilados políticos, como por situar-se no meio de passagem dos camponeses que iam à feira local. O hospital converteu-se em um interessantíssimo espaço de encontros e trocas, que mobilizou população, funcionários, psiquiatras e especialmente vários internos, que tiveram melhora significativa em seus quadros clínicos.

Esse fato, junto a outros de semelhante importância, trazem à tona o princípio da Psicoterapia Institucional – da necessidade de tratar a instituição – em oposição ao modelo tradicional que pensa a doença isolada do contexto em que se trata. Dessa maneira, para tratar os “doentes” é necessário tornar a instituição saudável, como um espaço fértil de trocas, assim como a própria equipe precisa problematizar seu lugar no tratamento.

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se constitui em um trabalho que atinge de modo articulado a alienação dos que cuidam e dos que são cuidados” (Moura, 2003, p. 56).

Jean Oury e Félix Guattari são os principais responsáveis, anos depois, pela criação de uma instituição de suma importância no âmbito da Psicoterapia Institucional. É a clínica de “La Borde”, situada em um castelo no interior da França. Seus dois idealizadores tinham formação em psicanálise, mas estiveram sempre abertos ao pensamento grupal, institucional e sociológico que se construía na França da época. Em capítulos posteriores discutiremos esta relação entre psicanálise e o processo institucional mais a fundo, mas cabe aqui explicar o sentido e a história dessa experiência dentro da reforma psiquiátrica.

Ambos levaram à cabo essa experiência durante muitos anos, e a prática lá desenvolvida buscava inserir o interno nos processos institucionais como agente ativo e transformador – o que se revela positivo no próprio processo da psicose. Guattari (1998) relata como a influência da postura institucional sobre a loucura acaba marcando suas características:

[...] é somente com a condição de que seja desenvolvida em torno dela uma vida coletiva no seio de instituições apropriadas que ela pode mostrar seu verdadeiro rosto, que não é o da estranheza e da violência, como tão freqüentemente ainda se acredita, mas o de uma relação diferente com o mundo (p. 183)

Nesse novo modelo, as ações no hospital visavam quebrar o tradicional esquema médico-paciente, funcionário técnico-funcionário operacional. Todos deveriam engajar-se no processo de produção de novas subjetividades. Reuniões entre todos que pertenciam àquele local eram realizadas diariamente, no mínimo. Os temas e problemas eram discutidos e rediscutidos no sentido de aproximar todos, rompendo com a verticalização.

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Ali, Guattari cunhou também o termo “Análise Institucional”, para uma atuação que transcendia a clínica individual: “a análise das formações do inconsciente não dizia respeito apenas aos dois protagonistas da psicanálise clássica, mas poderia se estender a segmentos sociais muito mais amplos” (Guattari, 1998, p. 191).

A separação que vemos claramente até hoje, nos hospitais psiquiátricos, que segrega diferentes tipos de adoecimento e de subjetividades, já é lamentada pelo autor em Práticas analíticas e práticas sociais (1998). Para Guattari, misturar gêneros, idades, estilos e categorias nosográficas tinham efeitos terapêuticos que não poderiam ser ignorados.

Algumas das críticas que posteriormente foram tecidas à Psicoterapia Institucional dizem respeito a um certo “ensimesmamento” da instituição, que cria um ambiente agradável, um certo oásis, mas que não têm efeitos significativos no social mais amplo.

III. A Antipsiquiatria inglesa

David Cooper e Ronald Laing têm papel fundamental na constituição da Antipsiquiatria na Grã-Bretanha, especialmente ao constatar a violência como prática recorrente nos hospitais psiquiátricos. A violência não é necessariamente física, embora possa chegar a esse ponto, mas também é a privação da liberdade de um sujeito pelo outro, além de estratégias de invalidação social.

Para Cooper (1982), o surgimento da loucura está nas relações intrafamiliares do sujeito. Nessas relações, os elementos familiares não permitem um espaço necessário para a pessoa se desenvolver. O hospital psiquiátrico, por excelência, é o lugar que confirma esse impedimento, através de técnicas científicas específicas. A esquizofrenia, sofrimento que representaria fortemente essa trama, define-se por uma

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Cooper retoma a dimensão de que a violência praticada pelos ‘doentes mentais’ não é característica da doença, mas resposta à própria violência que sofrem nas internações.

Seu projeto terapêutico visava um lugar que, em vez de reafirmar a invalidação das pessoas, fosse um espaço de acolhimento onde elas pudessem justamente reverter esse processo de invalidação ao qual elas estariam expostas nas instituições tradicionais.

Cooper desenvolveu uma experiência alternativa ao hospital tradicional, que denominou “Vila 21”. Lá se trabalhava com um modelo de Comunidade Terapêutica, através de grupos que buscavam aproximar a família ao tratamento, além de compreender as formas de invalidação que o sujeito sofreu e questionar as práticas psiquiátricas de caráter fundamentalmente “policial”.

Guattari (1998), ao descrever seu contato com a antipsiquiatria, comenta:

[...] deixando de lado alguns exageros demagógicos aos quais ela dará lugar (do tipo: ‘a loucura não existe’, ‘todos os psiquiatras são policiais’), o movimento antipsiquiátrico teve o mérito de abalar a opinião sobre o destino que a sociedade reservava aos doentes mentais – o que as diferentes correntes renovadoras da psiquiatria européia não haviam jamais conseguido fazer. (p. 192-3)

Outra constatação importante é que a concepção de loucura dessa corrente representava um avanço ao superar a concepção de doença como individual, mas sim constituída familiar e socialmente, idéia bastante apoiada na psicanálise: “ainda é quase revolucionário sugerir que o problema não reside na chamada ‘pessoa doente’, porém na rede de interações de pessoas, particularmente sua família” (Cooper, 1982, p. 47). Contudo, ao desenvolver o trabalho a partir das comunidades terapêuticas, viviam um paradoxo, pois a terapêutica privilegiava o próprio psicótico.

IV. A Psiquiatria Democrática italiana

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funcionários do hospital e a comunidade eram convocados a discutir e transformar esta instituição.

A loucura, que se revestia de um estigma de periculosidade, passou a apresentar faces bem mais interessantes e produtivas. Não havia mais necessidade de manter o isolamento social e as internações compulsivas, os serviços com características de exclusão começaram a ser fechados e engatou-se num projeto de emancipação do louco, visando “aumentar os graus da liberdade pessoal, pois a loucura acarreta a sua restrição” (Rotelli, 1987, p. 14). Era necessário transformar as relações sociais de fato e não somente a representação que o doente tem dela.

A primeira experiência importante deu-se em Gorizia, na década de 60. A partir desta crítica às práticas estabelecidas, constituem-se as comunidades terapêuticas, onde abriram-se espaços de discussão coletiva entre todos os envolvidos e passou-se a questionar veementemente as disparidades sociais, que inclusive fundamentam a existência do manicômio. Quando a proposta de funcionários e usuários de fechamento do hospital e substituição por centros externos não foi acatada, todos os loucos foram considerados curados e houve uma demissão em massa dos funcionários.

O processo de reforma mais importante deu-se em Trieste, na década seguinte, quando Franco Basaglia foi designado diretor de um hospital psiquiátrico de 1200 leitos. A proposta era transformar o hospital a partir de dentro: como no modelo anterior, buscou-se implicar usuários, funcionários e a comunidade na transformação.

Toda situação de crise dentro do hospital deixa de ser reprimida para ser valorizada, com o intuito de promover o debate entre todas [...] considerava-se que a valorização destas situações conflitantes através da participação coletiva era a única forma de mobilização verdadeira contra a inércia da instituição. (Rotelli, 1987, p. 7)

O louco pôde começar a ser valorizado como cidadão e sua vida não estava condenada ao asilo hospitalar. Lentamente, iniciou-se um intenso processo de aproximação entre o que acontecia ali no hospital e a comunidade, desfazendo um estigma do “mentalmente são” ou dos familiares de internados perante a loucura. Segundo Rotelli (1987), “o doente mental passa a ser visto a partir da sua face de sofrimento, e não mais da periculosidade” (p. 10).

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A experiência italiana critica enfaticamente algumas experiências européias e em especial americanas por reduzir a idéia de “desinstitucionalização” ao exclusivo fechamento do hospital. Segundo Nicácio (1989),

[...] essas experiências tiveram em sua maioria, como principal impulso, a tentativa de renovar a capacidade terapêutica da psiquiatria, liberando-a de suas funções arcaicas de controle social, coação e segregação; a análise crítica pode indicar que nesses países a desinstitucionalização foi reduzida à desospitalização. (p. 97)

É necessário que ocorra, para a desinstitucionalização, uma mudança de lógica onde o manicômio passa a ser lido não apenas na sua condição concreta, mas como reflexo de uma maneira da razão relacionar-se com a loucura.

“Colocar a doença entre parênteses” é um famoso lema da psiquiatria democrática italiana. A partir da noção de doença mental, haviam-se construído aparatos científicos, legislativos e administrativos, todos referidos à doença (Amarante, 2007). Desconstruindo esses aparatos, ou seja, a instituição, pode-se encontrar a pessoa que sofre.

Rotelli (1987) afirma, ainda, que é necessário romper com uma visão mecanicista de ciência em relação à doença mental, onde o tratamento seria consertar algo que quebrou. Em contrapartida, é necessário assumir uma postura prática, de construção coletiva, que visa a transformação do entorno do sujeito e sua emancipação. “Contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática”, dizia Basaglia.

V. A Reforma Psiquiátrica brasileira

No Brasil, a história do tratamento da doença mental também é marcada pela lógica manicomial. Um dos primeiros hospitais psiquiátricos foi o Pedro II, fundado no Rio de Janeiro, após a vinda da família real. Em seguida, fundou-se em São Paulo o Juquery, que tem seu surgimento, não à toa, atrelado ao início do processo de industrialização.

Cunha (1986) nos fala claramente como, de forma semelhante ao processo europeu, a criação do manicômio atende às exigências política, econômica e da ordem moral vigente. O indivíduo que não se prestava à força do trabalho, que desafiava o

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[...] o Juquery constitui assim a instauração de um espaço médico para quem já não dispõe do espaço social, ou para indivíduos por diversas razões incapazes de adaptação às disciplinas exigidas pela vida e pelo trabalho urbano (Cunha, 1986, p. 120)

Ademais, a bela construção e os exuberantes jardins do hospital, produzidos pelo arquiteto Ramos de Azevedo, escondiam as práticas de violência que marcavam o cotidiano do hospital. Novamente sob a segurança de um ‘saber médico neutro’ e que visava à cura, a psiquiatria da época praticava todas as maneiras de violência.

Na ditadura militar, o descaso perante o louco perdurou, além de acentuar-se o processo de compra de leitos privados pelo Estado. Os dados que Cesarino (1989) nos apresenta são chocantes:

no Brasil eram 110 os hospitais psiquiátricos em 1965; em 1970 passaram a ser 178; já em 1978 havia 351 hospitais conveniados com o INAMPS [Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social, órgão anterior à criação do SUS]. Com isso o INAMPS gastava a maior parte de sua verba para assistência psiquiátrica com compra de leitos privados (cerca de 90%), sendo esta a única alternativa que praticamente se oferece à população como tratamento. (p. 4-5)

Os serviços privados vinculados ao Estado não demonstraram nenhuma garantia de qualidade no atendimento, muito pelo contrário: o interesse tem sido fundamentalmente lucrativo, transformando o direito a um atendimento de qualidade em um mercado da doença mental.

Foi só no período de redemocratização que a sociedade brasileira se abriu para a discussão e transformação da estrutura manicomial excludente e asilar. O questionamento partiu tanto dos trabalhadores da área de saúde mental, quanto de usuários dos serviços e seus familiares.

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Uma das primeiras e principais expressões concretas deste ideal surgiu em São Paulo, com a criação do “Centro de Atenção Psicossocial Prof. Luiz da Rocha Cerqueira”, o CAPS Itapeva, em 1987. Foi uma das primeiras experiências institucionais que buscava a reabilitação e reinserção social dos pacientes, bastante influenciada pelas experiências estrangeiras (sobretudo a Psicoterapia Institucional), rompendo com a lógica de segregação e cronificação da doença mental que até então vigorava.

Os principais questionamentos e mudanças realizadas por esse CAPS, cujo modelo discutiremos mais a fundo no próximo capítulo, referem-se às mudanças de abordagem em relação à loucura, de um sintoma para uma história de vida; de questionamento do saber médico e psicológico como absolutos para a horizontalidade do tratamento, onde pacientes participam de reuniões gerais e técnicas assim como os profissionais do serviço; da implicação na formação de profissionais com postura anti-manicomial; compromisso terapêutico com o usuário buscando alargar sua capacidade de escolha, e de um poder maior sobre suas próprias vidas.

Outro importante foco de mudança ocorreu em Santos, no ano de 1989. O Anchieta, manicômio que era um verdadeiro “depósito de loucos”, começou a ter suas práticas questionadas e, em 3 de Maio, a Prefeitura determinou intervenção imediata. Muitos dos protagonistas que se aventuraram a transformar a estrutura do hospital haviam ministrado, anos antes, o “Curso de formação para agentes de saúde mental”, no Instituto Sedes Sapientiae, que foi também um importante espaço questionador da lógica manicomial.

De cara, os interventores proibiram celas fortes, eletrochoques e todas as práticas violentas que ali se davam. Iniciou-se também um processo de sensibilização da comunidade, que passou a apoiar a intervenção. A violência e exclusão foram substituídas por um árduo trabalho de acolhimento do sofrimento mental, de intervenção familiar, de reintegração social. Montou-se uma rede de atendimento substitutiva ao hospital, com a criação do primeiro Núcleo de Apoio Psicossocial, o NAPS, o que possibilitou posteriormente o fechamento do Anchieta. Santos tornou-se uma das poucas grandes cidades verdadeiramente “sem manicômios”.

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Buscaram-se também vários referenciais teóricos para sustentar uma prática desinstitucionalizante. Segundo Lancetti (1991),

a psiquiatria democrática não operou como modelo, temos utilizado outros recursos disponíveis como a psicologia social, a psicofarmacologia, a comunidade terapêutica, o psicodrama, elementos da psicanálise, de análise institucional e lateja no âmago dessa práxis um pensamento esquizoanalítico (p. 144)

É sabido, entre os militantes da Reforma Psiquiátrica que Félix Guattari, em sua visita à Santos, enunciou que ali estava ocorrendo “a quarta revolução psiquiátrica da história”.

Em 1989, começa também a tramitar no Congresso Nacional a “Lei Paulo Delgado”, que só viria a ser aprovada em 2001, atraso este que revela a imensa dificuldade política de constituir a reforma no Brasil, mas também a forte pressão do movimento transformador. A lei institui a progressiva substituição dos manicômios por serviços substitutivos de atenção ao sofrimento mental, que devem ser assegurados pelo Estado. Além disso, reverte o processo de privatização do auxílio ao transtorno mental no país e seu respectivo caráter manicomial.

Nos últimos anos vem criando-se uma rede extensiva de serviços como CAPS – que no ano de 2007 alcançou 1000 unidades –, residências terapêuticas, centros de convivência, ambulatórios de saúde mental, toda uma rede com vistas a tornar desnecessária a permanente compra de leitos privados pelo Estado e a própria existência dos hospitais psiquiátricos.

Antes de avançarmos, cabe uma severa ressalva. Por mais recente que seja a criação de serviços substitutivos no Brasil, já podemos constatar em determinados pontos um certo retorno da lógica anterior, resguardada por novas roupagens. Muitos serviços que, de início, representavam uma nova lógica de tratamento, acabaram cronificando-se, tornando-se nada mais do que uma pequena versão mais humanizada do hospital psiquiátrico.

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CAPÍTULO II - A CLÍNICA NOS DIFERENTES MODELOS

Uma das principais acepções do termo clínica vem do grego clinos, que significa cama, leito. Exercer a clínica seria olhar, observar e tratar o doente que está na cama (Saraceno, 2001). Esse conceito remete a Hipocrates, pai da medicina moderna. Não obstante, diversas versões de clínica foram praticadas ao longo da história: algumas delas em sintonia com o sentido etimológico, onde o paciente está passivo frente à atividade do clínico, e outras revertendo-o radicalmente.

Essas diferentes concepções de clínica têm lugar central no complexo debate entre a psiquiatria, a reforma psiquiátrica e a psicanálise. Sem serem conhecimentos estanques, efetuou-se um verdadeiro entrecruzamento histórico entre todas as concepções, com influências mútuas, bem como significativas rupturas.

Para compreender o modelo clínico dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), é imprescindível revisitar esse debate, mesmo que de maneira breve. Vejamos o que corresponde à clínica no modelo psiquiátrico, na psicanálise e na atenção psicossocial pensada a partir da reforma psiquiátrica.

I. A assistência psiquiátrica tradicional: do tratamento moral ao sintomatológico

Como afirmamos no capítulo anterior, Phillipe Pinel e outros alienistas inauguram a psiquiatria através do reconhecimento da loucura como alienação mental, assegurando a ela certa especificidade em relação aos outros desvios da razão. Como a exclusão indiscriminada não combinava com a proposta da Revolução Francesa, fez-se necessário uma justificativa científica para impedir o título de cidadão ao louco, mas que, simultaneamente, oferecesse a ele um lugar específico nessa nova sociedade, onde a ciência se ocupasse de devolver a razão a este alienado.

Desenvolve-se, com o surgimento da psiquiatria, um modelo específico de tratamento que caracterizou a clínica psiquiátrica durante muito tempo, e que ainda deixa marcas na atualidade. Trata-se do tratamento moral, que de longe foi a estratégia mais valorizada no âmbito da psiquiatria dos primeiros tempos.

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atividades são minuciosamente controlados, e inúmeras regras, regimentos e condutas são impostas (Amarante, 2007). Essa prática disciplinadora afastaria os delírios e aproximaria o interno à realidade concreta.

Nas palavras de Pinel,

Não há por que se espantar muito com a importância extrema que dou à manutenção da calma e da ordem num hospício de alienados, e às qualidades físicas e morais que essa vigilância requer, uma vez que essa é uma das bases fundamentais do tratamento da mania e que sem ela não obtemos nem observações exatas, nem uma cura permanente, não importando quanto se insista, de resto, com os medicamentos mais elogiados (Pinel, 1800, apud Foucault, 2006, p. 4).

Havia, a esse tempo, uma escolha privilegiada pelo tratamento moral em relação ao tratamento médico, como vemos sintetizado na afirmação de Pinel. Pode-se dizer, aliás, que o isolamento e a disciplinariedade da instituição eram condições imprescindíveis para a própria percepção aguçada da doença. O isolamento é, nesse momento, necessário para o exercício da clínica.

Muitas instituições psiquiátricas da atualidade, que não passaram pelo crivo da reforma ou que se apropriaram parcialmente das críticas e propostas, apresentam marcas inegáveis desse modelo clínico do tratamento moral. Vale ressaltar: marcas de um modelo que completa 200 anos de existência e que se caracteriza pela violência, cronificação e estigmatização do sofrimento mental. São exemplos de resquícios desse modelo: a uniformização dos internos e a proibição da posse de objetos importantes para o sujeito, o que dessingulariza-o e promove a massificação; a imposição dos horários do despertar, do recolher, das refeições e da medicação; a distância geográfica e a impossibilidade de acesso ao mundo externo, etc.

Afirmamos que o modelo do tratamento moral não foi superado pela assistência psiquiátrica ainda hoje. Ainda assim, pode-se observar que atualmente é o tratamento sintomatológico que ocupa o centro do tratamento nessas instituições, deslocando o tratamento moral para a posição de instrumento acessório. Por modelo sintomatológico entendemos uma clínica que maneja os sintomas presentes no sofrimento mental, visando sua redução e eventual remoção (Tenório, 2001).

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nos momentos de estabilização. Tanto em um quanto em outro, o maior recurso terapêutico é a medicação, e a agudização ou diminuição do sintoma (delírio, alucinação, agitação, etc.) são os critérios maiores de orientação para o tratamento. O psiquiatra ocupa um papel absolutamente central na condução do caso, sendo os outros profissionais auxiliares no tratamento. As psicoterapias pela palavra, quando utilizadas nesse modelo, perdem significativamente sua potência e, como exemplifica Goldberg (1994), “frequentemente nada mais fazem do que adequar o paciente às figuras do sintoma” (p. 25).

A vida do paciente costuma ficar muito restrita a partir desse tratamento, limitando-se às internações ou consultas ambulatoriais. Oferece-se muito pouco no sentido de uma construção de lugares possíveis para o sujeito habitar o mundo – como um possível trabalho, articulações com a comunidade, ou mesmo a tão óbvia e importante inclusão da família no tratamento –, o que veremos aparecer somente nos serviços substitutivos em saúde mental.

Da mesma maneira que a terapêutica incide prioritariamente sobre o sintoma, o próprio paciente passa a “vestir” o sintoma, nesse âmbito restritivo da vida. A clínica sintomatológica subvaloriza os aspectos contextuais do sujeito e prioriza sua doença, transformando o sujeito no próprio diagnóstico – e este acaba por incorporá-lo. Nesse aspecto, medicina e psiquiatria caminham bem próximas (o que não ocorria no tratamento moral), efetuando uma ontologização das enfermidades, como afirma o médico sanitarista Gastão Wagner de Souza Campos:

seria como se a doença ocupasse toda a personalidade, todo o corpo, todo o Ser do doente. Seu João da Silva desapareceria para dar lugar a um psicótico, ou a um hipertenso, ou a um canceroso (Campos, 2003, p. 56).

Colocar o sujeito entre parênteses para entender e tratar a doença, o transtorno: essa é uma das marcas fundamentais do modelo sintomatológico. Este modelo, embora já tenha certa idade, conseguiu sua verdadeira consistência e fundamentação nos últimos 50 anos, com o avanço da psicofarmacologia e das neurociências, o que verdadeiramente “apimentou” o debate entre esse modelo e os da psicanálise e da reforma psiquiátrica.

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voltada para o sintoma. Através do desenvolvimento dos potentes psicofármacos e do investimento maciço nas pesquisas neurocientíficas, a psiquiatria assumiu um novo paradigma, o da neurobiologia, acabando com um debate incerto que rondou esse campo durante muito tempo. Isso pois, embora as descrições das psicopatologias frequentemente remetessem ao modelo biológico, antes das neurociências não havia o rigor e a precisão necessários ao modelo anátomo-clínico, como se efetuou na medicina mais ampla (Birman, 2001).

Pode-se dizer, aliás, que por não conseguir essa correspondência biológica e por ter dado margem à intermináveis debates entre as diferentes escolas de psicopatologia, a psiquiatria nunca teve um lugar privilegiado dentro da medicina, sendo até motivo de gozação por parte de certos médicos. O respeito só vem sendo alcançado através do modelo neurobiológico, reaproximando a psiquiatria da medicina mais ampla.

Contra as incertezas da clínica tradicional, a referência universalizante do modelo neurobiológico. Nessa concepção, onde o medicamento é o direto responsável não só pela regulação do transtorno, como também pela sua classificação, opta-se por uma clínica funcional em psiquiatria, onde as esferas temporal e histórica perdem importância. Os sinais e sintomas são referenciados aos códigos universais de doenças, e as vicissitudes históricas do sujeito, a etiologia e as afetações do campo social, todas tão relevantes na clínica psicanalítica, são em boa dose descartadas por essa visão psiquiátrica (Birman, 2001). Além disso, a particularidade, o entendimento e a construção singular de cada caso, que de alguma maneira produzia-se anteriormente, caem por terra frente a esse referencial universalizante da psiquiatria contemporânea.

Alguns autores têm afirmado que a psiquiatria vem, inclusive, seguindo o caminho da medicina somática, onde o efeito do medicamento define e delimita a patologia (Birman, 2001; Pacheco, 2007). O primeiro exemplo dessa formulação diagnóstica orientada a partir do efeito do medicamento relacionou-se ao transtorno do pânico: quando o quadro respondia à ação da imipramina, passou a ser designado como transtorno do pânico, diferenciando-se dos outros quadros de ansiedade, denominados

transtorno de ansiedade generalizada. Com esse movimento, a idéia de alienação na loucura permanece forte, já que todo o saber sobre esse sofrimento está do lado do médico e da produção científica, e ao que sofre não lhe corresponde esse saber.

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e onde a esfera da biologia supera de longe em importância a questão do sujeito – de sua constituição temporal e histórica –, da instituição e do espaço social.

A clínica psiquiátrica, portanto, pauta-se no manejo sintomatológico, sustentado agora pela psicofarmacologia. Soma-se a isso um ranço significativo das práticas de tratamento moral, que abrandaram-se um tanto, mas permanecem, refletindo um modelo de pensar a psiquiatria.

A seguir, relatarei uma situação da minha prática, e que poderá ilustrar algumas características do funcionamento de instituições que pautam seu trabalho no modelo sintomatológico. Desde 2007, trabalho como acompanhante terapêutico (AT), uma modalidade clínica criada no âmbito da reforma psiquiátrica. Busca-se, nessa clínica, acompanhar o paciente onde sua vida acontece, para além das instituições que o atendem – um dos objetivos do acompanhamento, aliás, é permitir que o paciente se sustente sem a necessidade de internação psiquiátrica.

No entanto, um dos pacientes que acompanho realizou o caminho inverso: nunca havia sido internado, mas circunstâncias de sua vida promoveram-lhe um intenso sofrimento, impondo inclusive um grande risco de suicídio. Em São Paulo, praticamente inexistem dispositivos públicos que acolham no período noturno (momento em que o sofrimento se acentuava), exceto no modelo de internação tradicional. O paciente tampouco possuía convênio médico, e a família passava por dificuldades financeiras, impedindo um serviço privado.

Frente a isso, optou-se por um hospital psiquiátrico que, a primeira vista, trabalhava no paradigma da reforma psiquiátrica. Como veremos no relato, o modelo sustentado é acima de tudo sintomatológico, com resquícios do modelo moral de tratamento:

Após alguns dias da internação, a mãe foi chamada para uma reunião de

família junto à equipe de referência. O terapeuta de referência e eu optamos por

acompanhá-la.

O local é relativamente afastado do centro da cidade, mas é bonito, com muita

vegetação e com as construções bem cuidadas. Uma grade envolve o estabelecimento,

não sendo permitido aos pacientes ultrapassá-la, e uma portaria recebe os visitantes.

As visitas são plenamente permitidas durante a semana, das 9hs às 17hs, mas

deve-se passar por uma série de procedimentos exigidos, como preencher fichas, obter

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Já lá dentro, observamos que todos os pacientes utilizam roupas fornecidas pela

instituição, todas iguais e carimbadas com o nome do hospital. A maioria está com o

cabelo bem curto, raspado à máquina. Alguns recebem a visita dos familiares, trocam

informações e perguntam sobre a vida lá fora, outros circulam pelo espaço aberto, e

alguns outros clinicamente piores estão sentados gritando.

Nosso paciente reclama do tratamento de alguns funcionários, que são

desrespeitosos e chegam até a xingar. O terapeuta de referência observa que há uma

caixa de sugestões presa à parede, e oferece papel e caneta para que ele escreva essa

crítica. Em seguida, somos chamados para a reunião, sem a presença do paciente.

O primeiro encontro é junto à psicóloga e à assistente social, um encontro mais

geral com as quatro famílias marcadas para o dia juntas. A palavra é tomada

imediatamente pela psicóloga, que explica a importância da família na aceitação da

doença mental, na responsabilidade em medicar corretamente, no não-abandono e implicação no tratamento. Afirma que a doença mental não é fácil de ser tratada, que

não se pode prometer uma cura e que frequentemente o paciente pode precisar de um

tratamento mais intenso, sucedendo-se a momentos de melhora e alta. Afirma também

que sempre há partes saudáveis que se preservam na doença mental, e que devem ser

trabalhados. A assistente social completa o discurso com alguns comentários na mesma

direção da psicóloga.

Um casal, pais de determinado paciente, que se mostravam inquietos para falar

desde o início, acaba tomando a palavra para si: contam sobre sua experiência com o

filho, a mobilização na tentativa de formar uma ONG e as dificuldades encontradas,

bem como as duras experiências em hospitais psiquiátricos classicamente manicomiais.

A psicóloga concorda, completando que esses hospitais são de fato horrorosos, mas

não dá continuidade ao assunto, retornando à sua fala (que parece ser estabelecida de

antemão).

Ambas encerram o encontro afirmando que, a seguir, atenderão cada família

particularmente, junto com a psiquiatra. Nesse final, tampouco se passa a palavra para

os familiares.

Após alguns minutos, a mãe é chamada para a conversa, e nós a

acompanhamos. Pode-se observar que a psiquiatra ocupava um lugar muito

diferenciado no tratamento, mesmo sendo uma equipe multidisciplinar. Sem perguntar

os nossos nomes, olhava principalmente para o prontuário e pedia algumas

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perguntas iam no sentido de obter o diagnóstico com maior clareza, perguntando, por

exemplo, se houve algum problema no parto ou como seu filho reagiu após o

falecimento de um familiar.

Em seguida, perguntou ao terapeuta de referência qual era sua hipótese

diagnóstica do caso, ao que ele respondeu de maneira psicodinâmica, buscando um

entendimento histórico das vivências do paciente. Essa informação não pareceu de

grande valor à equipe, que questionou sua validade e imediatamente mudou o assunto.

Nada mais foi perguntado a ele ou a mim.

A psiquiatra encerrou o encontro dizendo que o trabalho estava no seu início,

que iriam investigar hipóteses diagnósticas e que não poderia adiantar mais nada

naquele momento. Frisou que as visitas podiam ser diárias, que o paciente poderia

freqüentar oficinas de Terapia Ocupacional e os espaços de convivência.

Na segunda vez que visitei o lugar, acompanhei-o ao centro comunitário, onde

os pacientes praticavam certos esportes, sendo as condições físicas e materiais do lugar

muito propícias. Não obstante, não eram acompanhados por funcionários e as

atividades pareciam atividades em si.

O paciente apresentava-se claramente em ritmo mais lento e frequentemente

dormia em qualquer canto, atitude que não lhe era comum, levantando a suspeita que

estava bastante medicado.

Ele se queixou das conversas que tinha com psicólogos e psiquiatras, pois

quando lhes contava algumas vivências e lembranças que tinha, eles respondiam que

‘isso era coisa de sua cabeça’ e que deveria esquecê-las. Nesse dia, não conversei

pessoalmente com membros da equipe.

Reclamou também das regras excessivas que marcavam o local, que eram

impedidos de acessar diversos espaços restritos aos funcionários, etc.

Tentando compreender essa vivência, pude pensar de imediato que esse hospital tem diferenças significativas com relação aos manicômios. Estes, verdadeiros “depósitos de gente”, não proporcionam um ambiente digno, sendo geralmente sujos, mal cuidados e sem recursos materiais. A instituição que visitamos tem uma ambiência bastante favorável, apesar de certas restrições, como de circulação.

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em organizar reuniões com a família, etc. No entanto, pudemos observar que tudo isso é utilizado como acessório para o tratamento sintomatológico, de diagnóstico e remoção/abrandamento dos sintomas, com elementos de tratamento moral. Ou, talvez, pode-se dizer que na esteira da humanização dos serviços, essa instituição mudou a parte mais aparente, mas preservou uma certa lógica tradicional em assistência psiquiátrica. É o que afirmamos, em outro momento, como sendo uma reorganização dos serviços, e não uma reforma radical.

A uniformização dos internos, bem como o corte de cabelo homogêneo, representa, como já dissemos, uma prática de tratamento moral, que busca impor um padrão claro, restrito e repetitivo para ater o paciente à certeza cotidiana. O desprender-se dos objetos de pertence importantes para o sujeito, também revela um modelo que muitas vezes não trabalha com a singularidade, com aqueles recursos que ajudam o sujeito a construir e suportar sua existência no mundo.

Ao mesmo tempo em que a família é introduzida no tratamento, o é de maneira insatisfatória, como um acessório para o tratamento sintomatológico: os familiares tem a função de garantir que a medicação seja tomada e que o tratamento seja levado à cabo. Suas angústias, fantasias e implicações não são trabalhados como parte do tratamento – o que teria efeito na saúde mental dos familiares e do próprio paciente e é parte importante no modelo da atenção psicossocial.

O discurso da equipe já prevê, de alguma maneira, a carreira do doente mental, onde o sujeito estaria condenado a sucessivas internações, alternando-se com momentos de tratamento ambulatorial; podemos observar isso a partir de certos comentários dos profissionais. Além disso, a idéia de que há uma parte saudável da personalidade no doente mental que se preserva e que deve ser trabalhada, remete diretamente ao modelo clínico dos tempos de Pinel, muito distinta da concepção psicanalítica da psicose (ainda que a psicanálise do ego tenha preservado essa idéia) ou da atenção psicossocial, como veremos.

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Em suma, no nosso entendimento esse hospital retrata um modelo de assistência psiquiátrica, pautado sobretudo no tratamento psiquiátrico sintomatológico e que é muito presente ainda nos dias de hoje. A seguir, discutiremos outras visões possíveis, através do exame daquilo que sejam as contribuições psicanalíticas para uma clínica das psicoses, e o modelo da atenção psicossocial,

II. O modelo psicanalítico

Como vimos, Paris foi a cidade em que a psiquiatria mais se desenvolveu nos primeiros tempos, sendo os outros lugares um pouco reprodutores do que lá acontecia. Paris avançara na implementação da psiquiatria, naquele tempo, muito mais que a Viena freudiana. E, não à toa, foi no estágio lá realizado por Freud que, aquele que seria o pai da psicanálise, pôde interessar-se pelas doenças mentais, principalmente através do contato com Jean Martin Charcot no Hospital da Salpêtrière (Rodrigué, 1995).

Poucos mencionam o curioso fato de que Pinel, após dirigir o Hospital de Bicêtre foi trabalhar no Hospital da Salpêtrière, esse mesmo que Charcot ingressaria muitos anos depois, na ocasião da divisão administrativa do hospital em dois setores: um para os alienados – denominação clássica dos psicóticos – e outro para epilépticos e histéricas (Roudinesco & Plon, 1998). Enquanto o setor dos alienados seguiu a tradição pineliana, Charcot foi nomeado diretor do outro setor, e impressionava Freud tanto pelo seu conhecimento sobre os fenômenos histéricos (sempre se apoiando nas evidências clínicas), mas principalmente pelas fantásticas apresentações públicas, nas quais produzia e desfazia sintomas histéricos em suas pacientes.

Divisão dos setores do hospital, mas práticas semelhantes: se do lado dos alienados, o interrogatório psiquiátrico buscava produzir no louco o reconhecimento de sua própria condição – e assim legitimar a custódia –, no caso da histeria, o médico literalmente produzia a doença. Ouçamos, a esse respeito, o psicanalista e biógrafo renomado de Freud, Emilio Rodrigué (1995):

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Ao final, o trabalho de Charcot culminou com a “teoria do trauma” – parcialmente superando a situação que descrevemos –, pois introduzia a importância da

história na manifestação da doença: através de entrevistas, poder-se-ia identificar o evento traumático responsável pelo desencadeamento da crise histérica. Com a inserção da história, mesmo que o referencial etiológico para Charcot permanecesse como orgânico e hereditário, dava-se um passo importante para permitir o surgimento da psicanálise.

No entanto, a inevitável constatação de que conteúdos sexuais sempre apareciam de modo central no discurso histérico, fez com que Freud fosse à busca da dimensão da sexualidade no sofrimento daquelas pacientes e, posteriormente, em tudo aquilo que constitui o sujeito. E nesse caminho, nem Charcot nem tampouco Josef Breuer acompanharam Freud, que empreendeu a construção da psicanálise de maneira solitária.

É interessante notar como a histeria teve um lugar social bastante semelhante ao da dita loucura em diversos momentos da história. Ao longo de séculos, a mulher tinha uma representação bem próxima da animalidade, em especial a histérica (Roudinesco & Plon, 1998), assim como o louco, desarazoado e bestial. O contexto pineliano deu a ambos os fenômenos o estatuto de doença mental, mas, como vimos, sem ainda oferecer-lhes voz e um digno cuidado terapêutico.

Foi somente com Freud que um novo lugar à histeria é oferecido, passando-se do modelo anátomo-patológico, em que o sintoma histérico representaria algum tipo de defeito no corpo orgânico, para uma compreensão positiva da histeria, em que haveria um sentido na história do sujeito para a formação de tais sintomas. A correspondência entre o sintoma e seu correlato anatômico e funcional, que Charcot buscava empreender, é superada em Freud através de uma nova compreensão do corpo: o corpo representado

(Birman, 1991). O sujeito é capaz de representar no corpo as marcas traumáticas de sua história; sendo assim, não pode-se correlacionar o sintoma a uma certa disposição anatômica, já que seu sentido se encontra arraigado na história singular do sujeito.

Esse novo paradigma proposto por Freud, sem dúvida, promove um novo entendimento da clínica – primeiramente, no campo da histeria, mas depois estendido às outras neuroses e psicose –, o que definitivamente distanciará a psicanálise do modelo médico-psiquiátrico. Se, de um lado, este último trabalha sobretudo com a idéia de que o sintoma representa uma falha, a psicanálise opera o sintoma como uma forma de

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