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5 O LÉXICO MENTAL

5.2 Modelos semânticos do léxico mental

A seguir apresentaremos alguns modelos teóricos sobre como os significados das palavras estão representados em nossa mente, pontuando também alguns contra-argumentos

feitos aos modelos. Posteriormente apresentaremos qual posicionamento teórico assumimos nesta dissertação.

5.2.1 A semântica de traços

A semântica de traços ou teoria dos traços utiliza a noção de semas (unidades mínimas de sentido) para definir as unidades lexicais. Os semas que também podem ser chamados de traços de conteúdo são binários, podendo ser positivos (+) ou negativos (-). Nesses termos, entidades lexicais estariam presentes ou ausentes em determinadas categorias, de acordo com esses traços de conteúdo. “A análise em termos de ‘presença (+) / ausência (-)’ dos traços distintivos é na verdade um expediente útil para introduzirmos categorizações em grandes linhas, mas deve ser refinada com ajuda de ferramentas descritivas aptas ao processamento do contínuo.” (PIETROFORTE; LOPES, 2016, p. 119). Por outro lado, Wittgenstein (2009) propõe que um único traço não é suficiente para incluir ou não elementos em classes específicas, mas uma “complicada rede de semelhanças que se sobrepõem umas às outras e se intercruzam.” (WITTGENSTEIN, 2009, p. 52).

Observe, p.ex., os processos a que chamamos “jogos”. Tenho em mente os jogos de tabuleiro, os jogos de cartas, o jogo de bola, os jogos de combate etc. O que é comum a todos estes jogos? -Não diga: “Tem que haver algo que lhes seja comum, do contrário não se chamariam jogos” - mas olhe se há algo que seja comum a todos, mas verá semelhanças, parentescos, aliás, uma boa qualidade deles. (WITTGENSTEIN, 2009, p. 51).

5.2.2 Teoria dos protótipos

Rosch (1973) reportou os dados encontramos em uma investigação com 162 membros de uma cultura da idade da pedra28 que não tinham inicialmente termos para cores e

nem para formas geométricas. A principal hipótese do estudo de Rosch (1973) era a de que os domínios perceptuais de cor e de forma são estruturados em categorias semântica que se desenvolvem em torno de “protótipos naturais”. Um dos achados foi que os protótipos das categorias, isto é, os melhores representantes da classe, tendiam a ser aprendidos mais rapidamente do que os outros estímulos. Além disso, os estímulos mais prototípicos também tendiam a ser escolhidos como o exemplo mais típico da categoria do que outros estímulos.

À luz dessa teoria, também existem protótipos nas categorias linguísticas, o que confronta a ideia de que a representação lexical é constituída com base em semas. Para esclarecer como a teoria é aplicável em termos linguístico, simularemos, a seguir, uma tarefa experimental, com base em uma exemplificação de Scliar-Cabral (1991) da teoria. O objetivo da nossa tarefa hipotética é saber quais são os protótipos da categoria “animal doméstico”. Para alcançar este objetivo, podemos entregar aos nossos participantes uma lista formada por trinta exemplares da categoria, por exemplo, gato, coelho, cachorro, tartaruga etc. A tarefa experimental do nosso estudo hipotético é simples: os participantes devem organizar os itens em uma ordem crescente, de forma que o item um seja o melhor representante da categoria e o item 30 o pior. Como podemos inferir, as listas podem variar. Rosch (1999 apud FERRARI, 2016) explica a nossa possível variação, pois, conforme a autora, algumas propriedades podem interferir na formação de um protótipo, por exemplo, frequência e experiência individual. Se o animal doméstico de um dos nossos participantes for uma tartaruga, o nome tartaruga pode ser o primeiro da lista, mesmo que o rótulo cachorro seja considerado o melhor exemplar da categoria para a maioria dos participantes. Como foi destaca por Ferrari (2016), o ideal, isto é, o protótipo, seria salientado, no caso da experiência individual, em função do significado emocional.

5.2.3 A teoria das redes semânticas de Collins e Quillian (1969)

A proposta do modelo das redes semânticas (COLLINS; QUILLIAN, 1969) é explicar a organização da memória semântica, considerando a existências de nós conceituais e de propriedades ou atributos. Os autores da teoria utilizam o termo “nó conceitual” para explicar a organização das palavras através de uma hierarquia, isto é, considerando o critério de inclusão, por exemplo, o laço conceitual “canário” está incluído no laço conceitual “pássaro” que está contido no laço conceitual “animal”. Os atributos ou propriedades, por sua vez, também seguem uma ordem hierárquica e pontuam as especificidades da representação conceitual, como “Canários podem cantar” ou “Canários são amarelos”.

Os experimentos de Collins e Quillian (1969) foram formados por estímulos distribuídos em diferentes níveis: nível zero, nível um e nível 2. Em termos conceituais, o nível zero sempre é uma sentença tautológica, como: “Um canário é um canário”; uma sentença do nível um do exemplar “canário” seria, conforme os autores, “Um canário é um pássaro”; e uma do nível dois: “Um canário é um animal”. Além dos nós conceituais, para esta teoria, a

representação do significado de uma palavra também é formado por propriedades que também estão distribuídas em níveis. As frases a seguir exemplificam os níveis zero, um e dois, em termos de propriedade, do exemplar canário: “Um canário pode cantar”, “Um canário pode voar” e “Um canário tem pele”. Conforme a teoria, os níveis das propriedades estão em conformidade com os níveis conceituais, isto é, a propriedade 2 de canário, “Um canário pode voar”, está inserida no nível conceitual 3, “Um canário é um pássaro”.

Em síntese, para Collins e Quillian (1969) podemos pensar em duas organizações da memória: (i) os indivíduos armazenam na memória que o atributo “voar” está relacionado a cada pássaro existente, por exemplo, canários voam, pardais voam, sabiás voam etc.; ou (ii) o atributo “voar” não está relacionado a cada exemplar especificamente, mas apenas ao laço “pássaro”, logo a informação armazenada na memória semântica é a de que “pássaros voam”, logo canários e pardais voam, pois estão incluídos na classe pássaros. A principal previsão dos autores é que quanto maior a proeminência do nó conceitual e do atributo maior seria o tempo de reação em tarefas de decisão da veracidade da sentença.

A primeira tarefa do experimento era avaliar se as sentenças eram verdadeiras. A previsão dos autores foi confirmada neste teste, uma vez que o tempo de reação (em milissegundos) aumentou conforme a proeminência do nó conceitual e do atributo, de forma que a diferença temporal entre os níveis (zero, um e dois) foi significativa.

Apesar das confirmações, inúmeras críticas já foram feitas à teoria. Uma das principais críticas ao modelo é que o dado que suporta a existência de laços semânticos inferiores e superiores não pôde ser replicado com outras classes semânticas, por exemplo, em outro experimento, os participantes demoraram mais tempo para validar a assertiva “um cachorro é um mamífero” do que “um cachorro é um animal”, contrariando a ideia de que seria mais custoso conectar laços conceituais mais distantes.

5.2.4 Nosso posicionamento teórico à luz do mapa semântico do cérebro

Huth et al. (2016) investigaram as representações semânticas da linguagem no córtex através de imagens por ressonância magnética funcional (fMRI), enquanto sete participantes ouviam passivamente um programa de rádio. Os pesquisadores utilizaram um modelo probabilístico (PrAGMATiC) para a construção do mapa semântico. Entre os achados, estão os padrões consistentes de seletividade semântica entre os participantes do teste, isto é,

áreas específicas do córtex desses participantes foram seletivas a palavras que têm sentidos similares.

Estes mapas semânticos nos dão, pela primeira vez, um mapa detalhado de como o significado é representado através do córtex humano. Em vez de limitar-se a algumas áreas do cérebro, descobrimos que a linguagem envolve regiões muito amplas do cérebro. Nós também achamos que essas representações são altamente bilaterais: respostas no hemisfério cerebral direito são tão grandes e variadas quanto as respostas do hemisfério esquerdo. Isso desafia o atual dogma (herdado de estudos de produção de linguagem, em oposição à compreensão da linguagem como aqui estudado) sustentando que a linguagem envolve apenas o hemisfério esquerdo. (HUTH et al., 2016, tradução nossa).29

Os pesquisadores identificaram onze categorias semânticas (violência, social, pessoa, mental, tempo, número, lugar, parte do corpo, visual, tátil, ao ar livre). Estas redes podem não considerar necessariamente o que foi proposto, por exemplo, por Collins e Quillian (1969), pois podem ter outro tipo de organização. Uma rede semântica compila as representações semânticas que compartilham traços conceituais aproximados, o que nos faz considerar que o processo de categorização precisa de um conceito nuclear (OSHERSON; SMITH, 1981). A representação de palavras numéricas foi destacada no mapa semântico on- line.

O trabalho de Huth et al. (2016) está relacionado aos interesses investigativos desta dissertação, pois inicia o detalhamento do sistema semântico e sugere que este sistema é organizado em redes conceituais, como uma rede específica para palavras e para números. A seletividade para palavras numéricas, apresentada a seguir, foi identificada em outras áreas do cérebro, como no lobo occipital e no lobo parietal esquerdo (FIGURA 6), o que sugere que o processamento dessas palavras não está restrito a uma área específica.

29 “These semantic maps give us, for the first time, a detailed map of how meaning is represented across the human

cortex. Rather than being limited to a few brain areas, we find that language engages very broad regions of the brain. We also find that these representations are highly bilateral: responses in the right cerebral hemisphere are about as large and as varied as responses in the left hemisphere. This challenges the current dogma (inherited from studies of language production, as opposed to language comprehension as studied here) holding that language involves only the left hemisphere”.

Fonte: https://gallantlab.org/huth2016/

Percebemos através do mapa que há uma seletivamente simultânea para a categoria semântica número e para a categoria visual em uma mesma área. Algumas palavras são destacadas, como “amarelo” e “colorido”, no mesmo espaço semântico de palavras numéricas. Em relação à sinestesia, a seletividade dessas redes semânticas em uma mesma área cerebral pode sugerir uma conexão conceitual entre indutores e sensações concorrentes, palavras para números e para cores, respectivamente. Além disso, como já reportamos na sessão anterior, segundo Ramachandran e Hubbard (2001), é tentador postular uma relação entre o giro angular e as áreas relacionadas ao processamento de cor no giro temporal inferior, encontradas na adjacência dessa região. A nossa interpretação, considerando as informações reportadas até aqui, é que essas conexões podem acontecer em um nível conceitual, dentro de uma mesma área, e em um nível neurofisiológico, por meio da conexão de áreas diferentes.

Esses dados foram coletados enquanto os participantes ouviam histórias narrativas autobiográficas. Sendo assim, o gênero da história pode ter interferido, em alguma medida, na seletividade desses campos semânticos. Outra questão pontuada pelos pesquisadores é que os mapas semânticos podem ser diferentes, dependendo da cultura e da língua nativa do indivíduo.