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4.1 Breve exposição histórica

4.1.3 Modernidade

O pensamento moderno traz algumas inovações na relação homem-animal, ca- raterizada por avanços e retrocessos, mas, como acontece até hoje, mantém, em re- gra, a ideia da exploração desassociada de questionamentos morais204.

202LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos Animais. Fundamentação e Novas Perspectivas. Porto Ale-

gre: Sergio Antonio Fabris, 2008, pp. 148/150.

203 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos Animais. Fundamentação e Novas Perspectivas. Porto Ale-

gre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p. 138.

204Segundo Keith Thomas, ao traçar uma sólida linha divisória entre o homem e os animais, o principal

propósito dos pensadores do início do período moderno era justificar a caça, a domesticação, o hábito de comer carne, a vivissecção (que se tornara prática científica corrente, em fins do século XVII) e o extermínio sistemático de animais nocivos ou predadores (THOMAS, Keith. O homem e o mundo na- tural. Mudanças de atitudes em relação às plantas e aos animais (1500-1800). São Paulo: Companhia de Bolso, 2010, p. 55).

É conhecida a vinculação da frase de Protágoras (o homem é a medida de todas as coisas) com o humanismo renascentista dos séculos XV e XVI, que, no âm- bito da filosofia, valoriza as ideias platônicas. O homem foi ainda mais valorizado, trazendo como consequência pouca ou nenhuma mudança da nossa visão a respeito dos animais. Assim, apesar de ser um marco do pensamento moderno, a renascença reproduz os paradigmas anteriores no que refere as nossas atitudes com os animais. Como sempre, podem ser citados como vozes dissonantes: Leonardo da Vinci (1452- 1519), que foi duramente criticado por sua preocupação com sofrimento animal (re- puta-se que tenha se tornado vegetariano em virtude disso) e Michel de Montaigne (1533-1592), que no ensaio “Da crueldade”, afirma ser intrinsicamente imoral a cruel- dade para com os animais205.

Conforme já visto, René Descartes (1596-1650) combina matemática com me- cânica, e sustenta que tudo aquilo que é composto por matéria é governado por prin- cípios puramente mecanicistas. Descartes sustenta a teoria do “animal-máquina”. Para diferenciar os homens dos animais, Descartes embaralha os conceitos de cons- ciência com o de alma. Animais não teriam alma e, portanto, não teriam consciência. Não tendo consciência, seriam apenas matéria, meros seres inanimados, sujeitos às leis mecânicas tais como qualquer outro objeto. Assim, animais não sentiriam absolu- tamente nada, nem dor, nem prazer.

Em sua obra discurso do método, Descartes afirma que não há qualquer ho- mem, por mais demente que seja, que não consiga expressar seu pensamento. Ao contrário, qualquer animal, por mais perfeito que seja, não consegue expressar seu pensamento206. Não que os animais tenham menos razão que os homens, eles não

têm absolutamente nenhuma.

A doutrina cartesiana foi bastante aceita pela Igreja, pois, como os animais não praticaram o pecado capital, seria uma injustiça divina que pudessem sofrer.

Além disso, a ideia cartesiana de animal máquina foi muito utilizada para impe- dir a discussão ética a respeito das experiências com animais vivos. Consta que o próprio Descartes dissecou animais vivos para estudar sua anatomia207.

205 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos Animais. Fundamentação e Novas Perspectivas. Porto Ale-

gre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p. 163.

206 DESCARTES, Rene. Discurso do Método. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: L&PM Pocket,

2004, pp. 96/97.

207 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos Animais. Fundamentação e Novas Perspectivas. Porto Ale-

A concepção de animal-máquina cunhada por Descartes foi completamente afastada pela ciência. A etologia (estudo do comportamento social e individual dos animais em seu habitat natural) demonstrou que grande parte dos animais possuem meios de comunicação naturais próprios. Assim, ampliando-se a interpretação do que seja a linguagem, é possível dizer que ela não é um atributo exclusivo do homem. Inúmeros experimentos, conforme já expusemos, demonstram, inclusive, que grandes primatas conseguem dominar razoavelmente a linguagem dos mudos utilizadas pelos humanos.

Espinosa (1632-1677) foi mais longe que Descartes ao afirmar que podemos instrumentalizar os animais em razão de sermos humanos208.

Na filosofia de Thomas Hobbes (1588-1679), em virtude do contratualismo, a questão da linguagem é fundamental. Ela é formadora das capacidades mentais que distinguem o homem dos demais animais. Para a formação do Estado é necessário um pacto, cuja adesão é preciso linguagem. Hobbes afirmava ser impossível fazer pactos com animais, pois eles não entendem nossa linguagem. Não podem nem acei- tar nem transferir qualquer direito. Como não podiam negociar, os animais não pode- riam figurar como contratantes209.

Segundo John Locke (1632-1704), a natureza era propriedade de Deus. Deus, com sua sabedoria, deu os animais para nós. Assim, os homens tinham não apenas o direito de usá-los, mas sim o dever, de acordo com a vontade divina. Os animais não passavam de meras commodities, são possuindo qualquer significado moral. Como eram o degrau mais baixo da criação, não teríamos qualquer obrigação moral com eles. Apenas deveríamos ser mais gentis com eles se isso fosse relevante para o homem. Segundo Locke, maltratar os animais poderia, progressivamente, causar a brutalização da mente humana210.

Jean-Jaques Rousseau (1712-1778) entendia que a qualidade de agente livre diferencia o homem do animal. Afirmava, ainda, que o homem possui uma qualidade específica e ausente nos animais: a faculdade de aperfeiçoar-se. Diferentemente do homem, o animal é, no fim de alguns meses, o que será toda a vida, e sua espécie,

208 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos Animais. Fundamentação e Novas Perspectivas. Porto Ale-

gre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p. 199.

209LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos Animais. Fundamentação e Novas Perspectivas. Porto Ale-

gre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p. 223.

210LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos Animais. Fundamentação e Novas Perspectivas. Porto Ale-

ao cabo de mil anos, o que era no primeiro desses mil anos211. Rousseau defende, ainda, a inclusão do homem na categoria dos frugívoros, sugerindo que teríamos mai- ores condições de viver em paz se assim nos alimentássemos212. Ele, também, reco-

nhece que são execráveis as experiências com animais213.

François Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire (1694-1778), chegou a condenar o consumo de alimentos de origem animal, mas não se sabe se ele mesmo deixou de fazê-lo214. Voltaire, também, criticou as ideias de Descartes que concebiam

os animais como seres sem sentimentos e semelhantes a máquinas215.

211 ROUSSEAU, Jean-Jaques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os

homens. Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2014, p. 56.

212 Parece, pois, que o homem, tendo os dentes e os intestinos como os têm os animais frugívoros,

deveria naturalmente ser incluído nessa classe; e não somente as observações anatômicas confirmam essa opinião, mas os monumentos da antigüidade lhe são ainda mais favoráveis. (...) Porque, sendo a presa quase o único motivo de combate entre os animais carniceiros, e vivendo os frugívoros entre eles em uma paz contínua, se a espécie humana fosse deste último gênero, claro que teria tido muito mais facilidade de subsistir no estado do natureza, e muito menos necessidade e ocasião de sair dele (...) A respeito de tudo isso, haveria muitas observações particulares e reflexões que fazer, mas não há aqui lugar para isso e me basta haver mostrado, nesta pequena parte, o sistema mais geral da natureza, sistema que fornece uma nova razão de tirar o homem da classe dos carnívoros e de o colocar entre as espécies frugívoras. (ROUSSEAU, Jean-Jaques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2014, pp. 120/121 e 125).

213 O estudo dos animais nada é sem a anatomia; é através dela que se aprende a classificar, a distin-

guir os gêneros, as espécies. Para estudá-los segundo seus costumes, seus caracteres, seria preciso ter aviários, viveiros, jaulas; seria preciso obrigá-los de alguma maneira a permanecerem reunidos à minha volta. Não tenho nem o gosto nem os meios para mantê-los cativos, nem a agilidade necessária para segui-los em seus deslocamentos quando em liberdade. Seria preciso, portanto, estuda-los mor- tos, despedaçá-los, desossa-los, vasculhar à vontade suas entranhas palpitantes! Que aparato terrível esse anfiteatro anatômico, de cadáveres fétidos, de gotejantes e lívidas carnes, de sangue, de intesti- nos repugnantes, de esqueletos horríveis, de vapores pestilentos! Não será ali, dou minha palavra, que Jean-Jacques buscará seus passatempos (ROUSSEAU, Jean-Jaques. Os devaneios do caminhante solitário. Porto Alegre: L&PM, 2008, pp. 95/96).

LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos Animais. Fundamentação e Novas Perspectivas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p. 228.

214 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos Animais. Fundamentação e Novas Perspectivas. Porto Ale-

gre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p. 232.

215 Que ingenuidade, que pobreza de espírito, dizer que os irracionais são máquinas privadas de co-

nhecimento e sentimento, que procedem sempre da mesma maneira, que nada aprendem, nada aper- feiçoam! Então aquela ave que faz seu ninho em semicírculo quando o encaixa numa parede, em quarto de círculo quando o engasta num ângulo e em círculo quando o pendura numa árvore, procede aquela ave sempre da mesma maneira? Esse cão de caça que disciplinaste não sabe mais agora do que antes de tuas lições? O canário a que ensinas uma ária, repete-a ele no mesmo instante? Não levas um tempo considerável em ensiná-lo? Não vês como ele erra e se corrige? Será porque falo que julgas que tenho sentimento, memória, idéias? Pois bem, calo-me. Vês-me entrar em casa aflito, procurar um papel com inquietude, abrir a escrivaninha, onde me lembra tê-lo guardado, encontrá-lo, lê-lo com ale- gria. Percebes que experimentei os sentimentos de aflição e prazer, que tenho memória e conheci- mento. Vê com os mesmos olhos esse cão que perdeu o amo e procura-o por toda parte com ganidos dolorosos, entra em casa agitado, inquieto, desce e sobe e vai de aposento em aposento e enfim en- contra no gabinete o ente amado, a quem manifesta sua alegria pela ternura dos ladridos, com saltos e carícias. Bárbaros agarram esse cão, que tão prodigiosamente vence o homem em amizade, pregam- no em cima de uma mesa e dissecam-no vivo para mostrar-te suas veias mesaraicas. Descobres nele todos os mesmos órgãos de sentimento de que te gabas. Responde-me, maquinista, teria a natureza

Para Immanuel Kant (1724-1804), o homem é um fim em si mesmo. Apenas o ser humano tem um valor intrínseco. Os animais eram um meio, um instrumento para a realização das finalidades humanas. Na retórica kantiana, o fundamento da moral é a racionalidade humana. Assim, os animais estariam fora das considerações morais. Embora reconhecesse que os animais pudessem sofrer, Kant negava que teríamos qualquer obrigação moral com eles, pois não eram racionais. Os animais eram apenas instrumentos para os nossos fins, não possuindo qualquer valor intrínseco216.

Importante citar, ainda, Jeremy Bentham (1748-1832), cuja existência física perpassou do período moderno para o contemporâneo. Como já exposto, o filósofo inglês utilitarista teve o mérito de considerar moralmente o sofrimento animal, inde- pendentemente da incapacidade de falarem ou raciocinarem. A despeito de não ter questionado a propriedade animal, o filósofo, conforme observa Gary Francione, inau- gurou uma nova forma no ocidente de se enxergar nossa relação com os demais ani- mais, pois até Bentham, o pensamento moral e legal ocidental geralmente conside- rava os animais meras coisas sem quaisquer interesses passíveis de proteção. Ben- tham afirmou que, como os animais podem sofrer, e como todos consideram o sofri- mento indesejável, uma sociedade justa e civilizada reconhece que os animais têm interesses moralmente significativos em não sofrer e que temos uma obrigação moral

direta de não lhes infligir sofrimento217.

Yuval Noah Harari observa que não obstante os últimos 300 anos sejam retra- tados como o período no qual as religiões perderam importância, outras religiões, ba- seadas não no sobrenatural, mas em leis naturais, ganharam força, tais como o libe- ralismo, o comunismo, o capitalismo, o nacionalismo e o nazismo. Segundo Noah, as religiões humanistas cultuam a humanidade ou, mais corretamente, o Homo sapiens. O humanismo é a crença de que o Homo sapiens tem uma natureza única e sagrada,

entrosado nesse animal todos os elatérios do sentimento sem objetivo algum? Terá nervos para ser insensível? Não inquines à natureza tão impertinente contradição. Perguntam os mestres da escola o que é então a alma dos irracionais. Não entendo a pergunta. A árvore tem a faculdade de receber em suas fibras a seiva que circula, de desenvolver os botões das folhas e dos frutos: perguntar-me-eis o que é a alma da árvore? Ela recebeu estes dons. O animal foi contemplado com os dons do sentimento, da memória, de certo número de idéias. Quem criou esses dons? Quem lhes outorgou essas faculda- des? Aquele que faz crescer a erva dos campos e gravitar a Terra em torno do Sol. (VOLTAIRE. Dici- onário filosófico. Tradução: Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2004, pp. 319/320).

216KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Tradução: Leo-

poldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 59. KANT, Immanuel. Metafísica dos Costumes. Tradução e notas: Edson Bini. Bauru: Edipro, 2008, pp. 284/285.

que é fundamentalmente diferente da natureza de todos os outros animais e todos os

outros fenômenos218. Noah219 constata, ainda, que: mais ou menos na mesma época

em que o Homo sapiens foi elevado a um status divino pelas religiões humanistas, os animais de criação deixaram de ser vistos como criaturas vivas capazes de sentir dor e sofrimento e passaram a ser tratados como máquinas.