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Objeto do habeas corpus

No documento O HABEAS CORPUS PARA ALÉM DA ESPÉCIE HUMANA (páginas 167-171)

5.2 Habeas Corpus

5.2.3 Objeto do habeas corpus

É a liberdade de locomoção, ou seja, o direito de ir, vir e ficar.

Pontes de Miranda436 enxerga a importância fundamental da liberdade de ir vir

e ficar, entendendo que ela fez com que o homem, animal, se criasse, ou seja, ga- nhasse sua identidade. Confira-se:

434ISHIDA, Válter Kenji. Prática Jurídica de Habeas Corpus. São Paulo: Atlas, 2015, p. 99. 435ISHIDA, Válter Kenji. Prática Jurídica de Habeas Corpus. São Paulo: Atlas, 2015, p. 99.

436MIRANDA, Pontes. História e Prática do Habeas Corpus. 3ª ed. Vol 1, São Paulo: Boookseller, 2007,

Tão relevante, tão fundamental, para o homem, para o animal, que, com o fazer-se livre se criou como “homem”, é a liberdade de ir ficar e vir, que na alvorada do direito sobre habeas corpus já se punha em cima, já se alcan- çava, melhor diremos, ao plano do direito constitucional, com o caráter de pretensão pré-processual e de pretensão processual, o habeas corpus. Segundo o Supremo Tribunal Federal, o habeas corpus só pode ter por alvo, lógico, a liberdade de locomoção do paciente. (...). Afinal, habeas corpus é, literal- mente, ter a posse desse bem personalíssimo que é o próprio corpo. Significa requerer ao Poder Judiciário um salvo-conduto que outra coisa não é senão uma expressa ordem para que o requerente preserve, ou, então, recupere a sua autonomia de von- tade para fazer do seu corpo um instrumento de geográficas idas e vindas. Ou de espontânea imobilidade, que já corresponde ao direito de nem, ir nem vir, mas sim- plesmente ficar. Autonomia de vontade, enfim, protegida contra ilegalidade ou abuso de poder parta de quem partir, e que somente é de cessar por motivo de flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei (HC 110946, Relator (a): Min. AYRES BRITTO, Segunda Turma, julgado em 29/11/2011). O apreço pela liberdade física não é uma característica apenas humana, es- tando presente nos seres do reino animal, que desenvolveram, através do processo evolutivo, a possibilidade de locomoção para a satisfação de seus próprios interesses.

A propósito, Sônia T. Felipe437 observa que

Uma das características semelhantes mais relevantes, compartilhadas por to- dos os seres que aparecem como unidades móveis de vida é a liberdade física, uma espécie de determinação natural de mover-se e orientar-se no ambiente para prover-se, expandindo-se tal determinação para o cuidado da prole e dos pares. Na condição humana podemos ser singulares nessa de- terminação natural, mas não somos a exceção e sim a regra. Mas ao estabe- lecermos leis, consideramos apenas nossas próprias expectativas de sobre- vivência biológica. A dos demais seres julgamos não dever levar em conta, no ideal de uma distribuição justa de bens naturais ambientais.

Desse modo, se a liberdade física é uma característica natural dos seres do reino animal, sendo o seu cerceamento, como visto por exemplo nos zoológicos, cau- sador de distúrbios psicológicos, apenas em condições excepcionalíssimas, como nos casos de comprovado perigo à integridade humana e de outros animais, poderia ser ela restringida.

437MOLINARO, Carlos Alberto; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang;

FENSTERSEIFER (organizadores). A dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos hu- manos: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Fórum, 2009, pp. 66/67.

Aceito o manejo do writ para a proteção eficaz, célere e desburocratizada da liberdade de outras espécies animais, poderia ser ele utilizado em situações percebi- das como ilegalmente cerceadoras da liberdade animal mesmo pela leitura formal do atual ordenamento jurídico. Sendo assim, animais presos em circos, utilizados em ex- periências, quando possível o manejo de meios substitutivos.

A ordem a ser concedida no remédio constitucional pode ter caráter preventivo ou repressivo.

O primeiro se impetra quando se deseja afastar uma ameaça à liberdade de locomoção, ainda não estando efetivada a restrição a esse direito. Referida ameaça deve ser séria e advir de um ato concreto. Em tal hipótese expede-se um salvo-con- duto em favor do paciente, obstando-se a ilegal ou abusiva prisão.

O habeas corpus repressivo, lado outro, é utilizado quando já efetivada a res- trição da liberdade, do direito de ir e vir do paciente. Nesse caso expede-se contra- mandado de prisão, não mais se falando em salvo-conduto.

Saliente-se, por oportuno, que nos textos das primeiras Constituições que tra- taram do habeas corpus (1891, 1934 e 1937) e no Código de Processo Penal de 1941, deveria existir, para cabimento do writ, a “iminência” do perigo à liberdade de locomo- ção. Esse termo foi excluído da Constituição de 1946 e desde então não mais seria ele importante no momento de se aferir a respeito da concessão ou não do writ.

Nesse sentido, Dante Busana438:

A dispensa do requisito da “iminência” da ameaça ao direito de ir e vir facilitou a evolução do habeas corpus em meio de controle da legalidade de toda a persecução penal. Assim, tornou possível reconhecer, sem maior esforço, a falta de justa causa para a instauração do inquérito policial ou do processo penal, apesar de solto o suspeito ou acusado, porque embora não haja risco iminente à liberdade, não deixa ela de estar amaçada pela eventualidade de condução coercitiva, prisão temporária, prisão preventiva, ou prisão decor- rente de sentença condenatória”.

Conforme explica Valter Kenji Ishida439, “a ação de habeas corpus é ação de

conhecimento, com o objetivo de cognição completa e definitiva sobre a legalidade da limitação ao direito de locomoção”. O autor argumenta que o remédio constitucional pode ter provimento de cunho declaratório (por exemplo, quando se pugna pelo reco-

438 BUSANA, Dante, Op. Cit., p. 35. 439 ISHIDA, Válter Kenji. Op. Cit., p. 29.

nhecimento da prescrição), constitutivo (como no pedido de anulação de um ato pro- cessual), mandamental (quando proferida a ordem para que não mais ocorra a ilega- lidade ou abuso de poder) ou condenatório (regra de pouca utilização cotidiana, dis- posta no art. 653, do Código de Processo Penal, com determinação de pagamento de custas dirigida àquele que atuou com má-fé ou abuso de poder).

No que se refere ao caráter do provimento, assinalou Pontes de Miranda440 que

“a sentença concessiva de habeas-corpus, preponderantemente, não declara, nem constitui, nem condena, nem executa – manda. (...) O que em verdade ela faz, mais do que outras, é mandar: manda soltar, manda prestar fiança, manda que se expeça o salvo-conduto, ou que se dê entrada em tal lugar, etc.”.

O alcance do habeas corpus pode ser explicado de acordo com três teorias, quais sejam, a teoria restritiva (conservadora-tradicionalista), a teoria ampliativa (libe- ral-inovadora) e a teoria mista (evolutivo transformadora). A teoria restritiva compre- ende que o habeas corpus serve para tutelar o direito de ir e vir, a circulação da pes- soa. Pela corrente ampliativa, poderia ser o remédio constitucional impetrado para garantir que nenhum ato ilegal ou em abuso de poder fosse perpetrado, não se resu- mindo ao direito de locomoção. A Constituição Federal de 1891 trazia texto que abar- cava esse entendimento. De acordo com a teoria mista441, o direito à liberdade, tute-

lado através do remédio constitucional, seria um direito-meio para o alcance de um direito-fim, e, por tal motivo, em determinadas situações seria cabível a impetração do writ com o fito de preservar direito fundamental do indivíduo. Assim, estaria presente o direito de ir e vir para a impetração do writ, mas isso culminaria na proteção reflexa a outro direito da mesma maneira protegido.

Preconiza Walter Kenji Ishida442que “atualmente, o alcance do habeas corpus

parece se aproximar dessa terceira tendência, com a exclusão das hipóteses explíci- tas em que caiba o mandado de segurança. Incidiria nos casos de restrição à liberdade física, com algumas exceções...necessário que o alcance do habeas corpus seja de- limitado pela ameaça ou efetiva lesão à liberdade de locomoção e que haja possibili- dade direta ou indireta de prisão ou ao menos de restrição da liberdade. Deve existir essa vinculação ao jus libertatis”.

440 MIRANDA, Pontes de. Op. Cit., p. 283.

441 Neste sentido o posicionamento do Supremo Tribunal Federal: “o habeas corpus não é cabível so-

mente em caso de ameaça direta ao direito de ir e vir, mas também nas hipóteses de ameaça reflexa ou até mesmo remota a esse direito fundamental” (HC 112.851, j. 05.03.2013).

No documento O HABEAS CORPUS PARA ALÉM DA ESPÉCIE HUMANA (páginas 167-171)