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Revolução Darwiniana

O diálogo com as demais ciências, ou seja, a interdisciplinaridade, é extrema- mente necessário na aplicação do Direito, pois, caso contrário, ele seria um fim em si mesmo, ou seja, um instrumento a serviço do poder. A todo momento o operador do Direito é convidado a lidar com questões que escapam do âmbito meramente jurí- dico54. Um exemplo é a circunstância judicial da personalidade do agente, levada em

consideração quando da primeira fase da fixação da pena do indivíduo condenado criminalmente. Nos parece tratar de análise que necessita de conhecimentos do ramo

54Para Nicola Abbagnano, a própria especialização, que é por certo uma exigência imprescindível do

mundo moderno, requer, em certa altura de seu desenvolvimento, encontros e colaboração entre dis- ciplinas especializadas diversas: encontros e colaboração que vão muito além das competências es- pecíficas e exigem capacidade de comparação e de síntese, que a especialização não oferece (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 264).

da psicologia ou psiquiatria. Da mesma forma, a definição dos sujeitos que serão titu- lares de direitos não deveria prescindir do auxílio de outras ciências, tais como a Ética, a Filosofia e Biologia.

A propósito, segundo o biólogo inglês Richard Dawkins55:

Hoje, a teoria da evolução está tão sujeita à dúvida quanto a teoria de que a Terra gira em torno do sol, mas as implicações mais profundas da revolução de Darwin ainda não foram amplamente compreendidas (...) A filosofia e ou- tras disciplinas como “humanidades” continuam a ser ensinadas quase como se Darwin nunca tivesse existido. Não há dúvida de que isso se modificará com o tempo.

No mesmo sentido, Yuval Noah Harari56, em seu best-seller internacional, cons-

tata que:

Os cientistas que estudam o funcionamento interno do organismo humano não encontraram ali nenhuma alma. Eles argumentam cada vez mais que o comportamento humano é determinado por hormônios, genes e sinapses, e não pelo livre-arbítrio – as mesmas forças que determinam o comportamento de chimpanzés, lobos e formigas. Nossos sistemas jurídicos e políticos ten- tam varrer tais descobertas inconvenientes para debaixo do tapete. Mas com toda a franqueza, por quanto tempo poderemos manter o muro que separa o departamento de biologia dos departamentos de direito e ciência política. O naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882) pode ser considerado um dos maiores revolucionários de todos os tempos, desconstruindo, pedra após pedra, mitos que eram, por séculos, considerados verdades absolutas pelos humanos.

De início, convém trazer à baila as palavras de Telmo Pievani57, que bem di-

mensionam a singular importância dos estudos de Darwin para o conhecimento do ser humano acerca de si e de seu lugar junto às demais espécies:

O evolucionismo darwiniano (e com ele a filosofia materialista que se conso- lidou no pensamento de Darwin após a publicação da Origem do homem em 1871) rompia com alguns princípios que pertenciam ao senso comum e às convicções indiscutíveis de uma época. Darwin desafiou as ideias de que o mundo era imutável; de que a Terra tinha apenas 4 mil anos de idade e não os milhões de anos necessários para a evolução; de que a diversidade da vida podia ser atribuída a um ato de criação por parte de um Deus benévolo; de que o homem tinha um lugar privilegiado no centro da criação; de que a mente humana tinha uma origem especial; de que na natureza estavam ins- critas causas finais e princípios teleológicos. Tudo isso foi posto em discussão

55DAWKINS, Richard. O gene egoísta. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 38.

56 HARARI, Yuval Noah. Uma breve história da humanidade: Sapiens. Tradução de Janaína Marcoan-

tonio. 7ª Ed. Porto Alegre: L&PM, 2015, p. 245.

57PIEVANI, Telmo. Introdução à filosofia da biologia. Tradução: Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Lo-

pelo “longo raciocínio” de um único homem, firmemente convencido da pró- pria concepção da vida fundada da diversidade, na evolução que é decorrente dela e no primado da história.

Charles Darwin, oriundo de uma família economicamente abastada, foi enviado a Edimburgo, capital da Escócia, para estudar medicina. No entanto, ele não chegou a concluir seus estudos, pois já se mostrava mais interessado pelas pesquisas botâ- nicas. Assim, em 1831, nesse contexto, o então jovem Darwin, a contragosto da famí- lia, partiu, a bordo do pequeno navio HMS Beagle, rumo a América do Sul. Durante a viagem58, foi nas ilhas Galápagos, pertencentes ao Equador, que o britânico, obser-

vando tartarugas, iguanas e as variações entre as aves tentilhões, formulou a tese de que uma espécie poderia ser modificada para melhor se adaptar ao meio ambiente. A natureza, portanto, não era imutável e fruto de uma criação repentina, conforme acre- ditavam os criacionistas.

Darwin, que já tinha em sua avó – Erasmus Darwin (1731-1802) – um estudioso da evolução das espécies, na sexta edição de sua obra A origem das espécies e a seleção natural, citou 34 autores que tratavam da ideia da evolução dos seres vivos. O naturalista britânico, no entanto, teve o grande desafio de conceber a seleção na- tural em suas acepções negativa (essa – critério de avalição dos não adaptados – já era aceita até por teólogos naturais) e construtiva: a seleção natural como mecanismo de conservação dos organismos mais bem adaptados ao ambiente, em virtude de mutações casuais vantajosas deles (organismos), que seriam selecionados e gera- riam descendentes com cada vez melhores condições de sobrevivência59.

Pela teoria darwiniana, descobriu-se que o mundo natural é governado pelas regras da evolução e não por forças sobrenaturais. Todas as espécies possuem uma origem comum. As espécies não são imutáveis, sendo que o nascimento de novas depende da variação dos indivíduos e das populações. As mudanças são lentas. O motor da evolução é a seleção natural. Uma importante questão no pensamento dar- winiano é a refutação da ideia de superioridade. O naturalista, inclusive, recomendou a si próprio jamais dizer “superior” ou “inferior”. Para Darwin, a noção de evolução não tem relação com alguma característica especifica presente em algum ser vivo, mas

58LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos Animais. Fundamentação e Novas Perspectivas. Porte Alegre:

Sergio Antonio Fabris, 2008, p. 276.

59PIEVANI, Telmo. Introdução à filosofia da biologia. Tradução: Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Lo-

sim com a adaptação ao meio ambiente. Assim, se uma ameba está tão bem adaptada a seu meio ambiente, não há razão dizer ser ela inferior a seres mais complexos60.

Para o naturalista, a figura da escada não poderia representar a evolução, por- quanto nem sempre o ser mais complexo evoluía do ser mais simples. Um exemplo é caracol caecum que, bastante simples, evoluiu de um caracol mais complexo. Desse modo, em vez de uma escada, um arbusto é que poderia simbolizar a evolução, com alguns de seus ramos (que seriam os seres vivos) terminando, outros se tornando mais simples e outros mais complexos61.

Darwin comprovou que os seres humanos também são animais, não havendo uma diferença, portanto, de categoria entre nós e os demais animais, mas sim de grau62 (seria, mutatis mutandis63, como comparar uma Ferrari com uma Brasília, que,

embora tenham uma diferença de nível, são, ambos, carros), ou seja, possuímos mai- ores habilidades cognitivas que os outros animais, mas não há diferenças que permi- tam nos colocar em uma categoria diversa de todos os demais animais.

Observa Heron José Santana Gordilho64 que:

Ao longo dos últimos centos e cinquenta anos, a ciência só tem confirmado a teoria de Darwin, o que nos obriga a admitir que muitos animais não humanos são dotados de atributos espirituais, antes considerados exclusivos da espé- cie humana, tais como a razão, a consciência, a linguagem, a sociabilidade, a cultura e a liberdade.

60GOULD, Stephen Jay. Darwin e os Grandes Enigmas da Vida. Tradução de Maria Elizabeth Martinez.

São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 27.

61WERNER, Dennis. Culturas Humanas. Comida, sexo, magia e outros assuntos antropológicos. Pe-

trópolis: Vozes, 1987, p. 23.

62 Cabe ressaltar que a diferença mental entre o homem e os animais superiores, por maior que seja,

é certamente de grau e não de tipo. Acabamos de ver que os sensos e intuições, e que as várias emoções e faculdades, tais como o amor, a memória, a atenção, a curiosidade, a imitação, o raciocínio, etc., das quais o homem se vangloria, podem ser encontradas em condições incipientes, ou às vezes até mesmo desenvolvida, nos animais inferiores. Eles também são capazes de algum grau de aperfei- çoamento hereditário, como se constata no caso do cão doméstico, quando comparado ao lobo ou ao chacal (DARWIN, Charles. A Origem do Homem e a seleção sexual. Tradução Eugênio Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 2004, p. 75).

63 Não se deve olvidar, por evidente, que diversos animais não humanos são detentores de habilidades

que não possuímos. Por exemplo, o periódico "Gut" divulgou um estudo no qual um labrador foi capaz de, por meio do cheiro de amostras de fezes, identificar a presença de câncer em humanos. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe0102201101.htm. Acessado em 24/11/2014. Além disso, o animal humano possui a singular característica de matar outros animais, humanos ou não, por motivos diversos que não seja a necessidade de sobrevivência. Existe vida na terra há mais ou menos quatro bilhões de anos. O primeiro ancestral do homem surgiu no planeta terra há aproximadamente um milhão de anos. O Homo sapiens (nós) vive na terra há aproximadamente 35 mil anos. Apesar de tão pouco tempo de existência em um planeta no qual a vida existe há bilhões de anos, o homem já causou grande devastação à Terra (poluição, aquecimento global, extinção de espécies, devastação ambiental e etc.), sendo a única espécie do planeta capaz de destruir a si mesma.

Consoante Carlos Naconecy65:

Desde Darwin, sabemos que todos somos animais. Só aqueles que desco- nhecem o legado darwinista pensam que os macacos estão mais próximos dos sapos do que dos humanos. Essas pessoas consideram que somos cri- aturas “sobrenaturais”, já que só nós pensamos. Mas Darwin nos ensinou que as habilidades entre os animais (humanos e não humanos) não são uma questão de tudo ou nada, mas sim, de grau, de um continum. Essas habilida- des crescem à medida que se sobe na escala evolutiva. E, se levarmos a sério a contribuição darwiniana, teremos que revisar nossa opinião sobre o tratamento que damos aos animais.

As ideias de Charles Darwin, conforme Dawkins já lobrigou, não foram assimi- ladas pelas nossas concepções morais e jurídicas. Não obstante comprovadamente demonstrado pela teoria darwiniana que temos parentesco biológico com todos os demais seres vivos, nossas preocupações morais ainda não ultrapassaram o círculo de nossa espécie. Dessarte, mesmo a evolução tendo forjado em diversos animais, assim como fez em nós, mecanismos de sobrevivência, tais como a dor, consciência e capacidade de compreender e refutar aquilo que é danoso à vida deles, continuamos a entender que tais características merecem valor somente quando se referirem à espécie humana.